No Governo que agora solta as amarras, não há somente mar ao redor. Foi considerado uma prioridade do anterior Governo, e até teve direito à sua própria estratégia nacional para a década, publicada em setembro do ano passado. No entanto, na terceira parte de Executivos de António Costa, o mar baixou de ministério a secretaria de Estado, sob a alçada da Economia. Mas não só. Durante a próxima legislatura, as políticas da economia azul vão navegar entre, pelo menos, quatro ministérios.
Economia, Agricultura e Alimentação, Infraestruturas, e Ciência, Tecnologia e Ensino Superior vão repartir diretamente os dossiês que derem à costa nos próximos quatro anos. Isto para além da Presidência do Conselho de Ministros, cuja secretaria de Estado do Planeamento será responsável pela gestão das verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que terá 252 milhões de euros para o mar. E ainda do Ministério da Coesão Territorial.
Significa esta separação de águas que o mar perdeu profundidade na agenda do Governo?
As opiniões divergem. Para o ministro cessante, Ricardo Serrão Santos, a nova arquitetura do Governo não significa a despromoção da área. “Será o Ministério da Economia e do Mar. O Ministério do Mar continua a existir, associado a uma área muito importante para o mar, que é a Economia. Não vejo que venha daí dramatismo algum. O mar continuará a ter a projeção que já tinha. E terá um bom secretário de Estado”, afirma Serrão Santos ao Observador.
Para os ambientalistas, não é bem assim. Se é verdade que o mar já se espraia por vários ministérios, para Francisco Ferreira, da associação Zero, deveria chegar a ainda mais. Nomeadamente, ao Ambiente. “Uma das componentes mais importantes dos oceanos é a sua valorização como ecossistema. Imagino que essa dimensão esteja na Economia, mas não faz sentido”, ressalva.
Para o responsável, a separação entre portos, pescas e economia do mar “não faz confusão” e é até “natural”. O que “não é natural”, na visão da Zero, é a provável junção entre a economia do mar e a valorização dos oceanos e salvaguarda marinha, nas vésperas de Portugal receber a Conferência dos Oceanos da ONU. “Mesmo que essa componente fique nos três ministérios, não é adequado. No nosso entender, esta componente deveria estar no Ambiente. E tanto quanto conseguimos perceber, não está”, destaca o presidente da Zero.
A divisão de bens do anterior Governo ainda não é clara. Mas ao que tudo indica, no barco que a partir de agora será comandado por António Costa Silva, novo ministro da Economia e do Mar, vai entrar a Direção-Geral de Política do Mar (DGPM). Um organismo que tem por missão “desenvolver, avaliar e atualizar a Estratégia Nacional para o Mar (ENM), elaborar e propor a política nacional do mar nas suas diversas vertentes, planear e ordenar o espaço marítimo nos seus diferentes usos e atividades, acompanhar e participar no desenvolvimento da Política Marítima Integrada da União Europeia e promover a cooperação nacional e internacional no âmbito do mar”.
A entidade estava sob a tutela do extinto ministério liderado por Ricardo Serrão Santos. Passa agora para a rede do secretário de Estado do Mar, o ex-autarca de Viana do Castelo, José Maria Costa. E deverá mesmo ser este o responsável pela organização da Conferência dos Oceanos da ONU, que vai decorrer em Lisboa entre 27 de junho e 1 de julho.
O ministério de Costa Silva será o pivô da Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030, que agrega 185 medidas a concretizar no setor ao longo da década. Aumentar em 30% o emprego na economia azul até 2030, aumentar o valor acrescentado bruto (VAB) da economia do mar em 30% no mesmo prazo, aumentar o contributo da economia do mar para 7% do VAB da economia nacional ou duplicar o número de instrumentos de financiamento dedicados à economia azul na década são alguns deles.
Da zona de desclassificação para o “top 10”
Quando apresentou a sua visão estratégica para a economia portuguesa, que serviu de base ao PRR, António Costa Silva defendeu, desde logo, que o país deveria criar uma “nova relação” com o mar. A palavra aparecia 31 vezes no documento elaborado pelo novo ministro, que encarava a “economia azul” como esteio do desenvolvimento. O reforço do investimento nos portos de Sines e Leixões e a modernização da frota de pesca foram algumas das propostas avançadas. O papel da ciência e tecnologia também não foi esquecido por Costa Silva, que adiantou ainda a ideia de criar “uma grande Universidade do Atlântico” nos Açores, que considerou “um dos melhores sítios do mundo para estudar” os oceanos.
Como ministro da Economia e do Mar do XXIII Governo, Costa Silva não terá supervisão direta sobre nenhuma das três matérias. A gestão dos portos vai manter-se sob a tutela de Pedro Nuno Santos, no ministério das Infraestruturas, onde está desde que saiu, precisamente, do Ministério do Mar liderado por Ana Paula Vitorino entre 2015 e 2019.
Já para o Ministério da Agricultura, ao qual foi agora acoplada a Alimentação, passa a pasta das Pescas, que mantém a secretária de Estado, Teresa Coelho. Aqui, a trasladação de competências será simples, uma vez que o organismo que gere os fundos europeus e as verbas nacionais das duas áreas é o mesmo, o Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP). A ministra Maria do Céu Antunes deverá ganhar ainda a Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM). O Instituto do Mar e da Atmosfera (IPMA) deverá manter-se no Mar e na Ciência.
A dispersão pode ser vista “com o copo meio cheio ou meio vazio”, considera Ruben Eiras, secretário-geral da Fórum Oceano, a Associação da Economia do Mar, que resultou da fusão entre a Oceano XXI – Associação para o Conhecimento e Economia do Mar e a AFEM – Associação Fórum Empresarial da Economia do Mar. “Por perder o ministério setorial e, consequentemente, uma série de competências agregadas, a perceção é de que a área sai a perder”, afirma.
No entanto, acrescenta, “se o ministério existir per si e não tiver força por si próprio devido à hierarquia funcional do Governo”, poderá acontecer o contrário. No caso em concreto, o Ministério do Mar era o último da hierarquia do Executivo que agora cessa. Ao passar para a Economia, a pasta “sobe ao top 10”, ressalva Ruben Eiras.
Além disso, face à conjuntura atual, marcada por várias crises, “pode revelar-se mais eficaz agregar o mar a outro ministério, nomeadamente à Economia, para ajudar a perceber as prioridades de investimento do setor”. A área fica ainda “muito mais perto das sinergias com os instrumentos financeiros, tanto os específicos para o mar como os mais generalistas”, conclui Ruben Eiras.
E, nos próximos anos, haverá dinheiro para deitar ao mar. O capítulo do PRR dedicado ao oceano, que está autonomizado, conta com recursos totais de 252 milhões de euros. Uma parte do bolo, 30 milhões, será destinada aos Açores. Os restantes 222 milhões serão alocados ao financiamento de “atividades diversas, desde as de investigação, às de desenvolvimento de um hub de incubadoras de empresas associadas à economia azul e à criação de melhores condições de segurança para a atividade pesqueira”, explicitou o primeiro-ministro, em abril do ano passado.
O setor conta ainda com o Programa Operacional Mar 2020, ainda em vigor, que tem uma dotação global de 508 milhões de euros, dos quais 116 milhões de euros correspondem à contrapartida prevista no Orçamento do Estado.
Até ao final de 2019, no âmbito do Portugal 2020, foram apoiadas mais de cinco mil operações, que representaram investimentos na ordem dos 2,6 mil milhões de euros, de acordo com a ENM.
Fora do contexto dos apoios, mas dentro das perspetivas de investimento, há que incluir ainda o offshore flutuante, que passou a estar incluído no novo enquadramento legal do Sistema Elétrico Nacional, e que o próprio Governo, pela voz do reconduzido secretário de Estado da Energia (e agora também do Ambiente) João Galamba, já afirmou estar a despertar o interesse dos investidores.
“Temos, neste momento, uma convergência de fatores entre gente que está a inovar, gente que está a investir e condições para investir que dificilmente encontramos nesta área há muito tempo. Mas este Governo tem de melhorar a clareza dos processos administrativos. É urgente resolver isso. Neste momento, em muitas áreas, não há clareza”, avisa o responsável da Forum Oceano.
Na segunda metade da última década, o peso da economia do mar no PIB praticamente duplicou, de 2,6% para 5,1% do PIB.
Conseguirá o novo Governo de António Costa caminhar sobre as águas?