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"Há quase cinco anos que não vejo os meus filhos". Quatro histórias de rapto parental

Rui ganhou na justiça, mas os filhos continuam na Roménia. Marco tentou ver S. e acabou preso na Finlândia. Nos primeiros 7 meses do ano, já foram abertos 28 processos de rapto parental em Portugal.

Rui Araújo ainda estava a dormir quando, na manhã de 18 de outubro de 2018,  por volta das 8h, ouviu o telemóvel assinalar a entrada de uma mensagem. Ainda ensonado, abriu o Messenger e viu que tinha sido Miriam, a prima dos filhos, a escrever-lhe. Depois, leu a frase que lhe apareceu em romeno e despertou de vez: «Eu sunt Ana». «Eu sou a Ana». Era a primeira vez desde maio de 2016 que entrava em contacto com a filha, na altura com 8 anos — ou que ela entrava em contacto com ele.

Com a ajuda do tradutor do Google — as aulas de romeno que chegou a ter no passado já não estavam assim tão frescas quanto isso –, conversou com ela durante cerca de uma hora. Não se arriscou a fazer uma vídeo-chamada, limitou-se a escrever. Perguntou por Ioachim, o filho mais novo, hoje com 6; contou que o avô, seu pai, tinha morrido há três meses, cheio de saudades dos netos; quis saber como corria a escola. Ana disse-lhe que tinha muitas saudades e mandou-lhe uma fotografia, em que aparecia com o irmão e a prima Miriam, dona da conta de Facebook: “O Ioachim agora está grande”.

Depois, de forma tão repentina como começou, a comunicação foi cortada. “Soube mais tarde, pelo pai da prima, que descobriram e castigaram as miúdas, acho que lhes bateram e tudo, e agora a Miriam também já não tem Facebook”, conta o bolseiro de doutoramento e técnico de investigação do CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical) ao Observador, cerca de 10 meses depois.

2013 foi o ano em que Ioachim nasceu. E foi também o ano em que as coisas entre Rui Araújo e Mara Fortu, a investigadora e professora de Música romena que tinha conhecido seis anos antes nos corredores do CESEM, em Lisboa, começaram a correr mal. “Quando a conheci, a Mara era normal, simpática, bem disposta. Falava perfeitamente português, dava aulas em escolas públicas, estava integrada. A certa altura, começou a dar-se com o pessoal da Igreja Ortodoxa Romena e passou a ter um discurso intolerante, dizia que Portugal era um país imoral e de depravados, porque permitia o casamento gay, que os homens eram todos psicopatas, pedófilos e agressores. Ia para a igreja e eu, que sou ateu, ficava lá fora, com os miúdos — a Ana tinha uns três anos e meio, o Ioachim era bebé”, recorda Rui, agora com 46 anos.

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"Quando a conheci, a Mara era normal, simpática, bem disposta. Falava perfeitamente português, dava aulas em escolas públicas, estava integrada. A certa altura, começou a dar-se com o pessoal da Igreja Ortodoxa Romena e passou a ter um discurso intolerante, dizia que Portugal era um país imoral e de depravados, porque permitia o casamento gay, que os homens eram todos psicopatas, pedófilos e agressores."
Rui Araújo, pai de Ana e Ioachim, de 9 e 6 anos

Ioachim nasceu em Lisboa às 14h57 do dia 23 de maio. No dia 5 de junho, às 11h45, a PSP foi chamada à casa onde Rui e Mara moravam com os filhos pequenos, em Oeiras, para registar uma queixa de violência doméstica. Vítima: Rui Alexandre Fernandes de Araújo. “Após uma divergência de opinião com a sua esposa, foi agredido pela mesma com vários estalos e murros nas costas”, pode ler-se no auto policial apenso à certidão do processo-crime entretanto aberto pelo DIAP de Lisboa. “O nosso filho tinha 15 dias, ela agrediu-me ao murro e ao pontapé, partiu um tablet, tive de sair de casa e tudo”, recorda Rui. Dois meses mais tarde, estaria a embarcar num avião, com a mulher e os filhos, para passar férias em Bârlad, a cidade no norte da Roménia, junto à fronteira da Moldávia, de onde Mara era natural. Seria o princípio do fim.

Apesar de os quatro terem bilhete de ida e volta, só Rui regressou no final das férias — Mara ficou com as crianças, alegadamente para apoiar a irmã, que estava a divorciar-se. “Como a Roménia, apesar de ser União Europeia, não faz parte do Espaço Schengen, assinei uma procuração para a Mara poder voltar com eles em setembro. E também fizemos passaportes romenos — a Mara disse-me que era mais barato lá do que cá, e não me chateava nada que os miúdos tivessem dupla nacionalidade”, conta o músico e investigador.

Um mês depois, quando foi chamado a prestar declarações no âmbito do processo por violência doméstica, achou por bem não falar, não fosse a ainda mulher nunca mais regressar ao País com as crianças.

O processo foi arquivado. Mas, antes de março do ano seguinte, Mara não voltaria a Portugal. Consigo trouxe Ioachim, então com 10 meses. Ana, quase a fazer 4 anos, ficou com a avó — “O que estava acordado é que ela voltava em abril, nas férias da Páscoa, com a avó, mas nunca dava. Primeiro as viagens eram muito caras, depois a avó estava doente e não podia viajar. Até que chegou uma altura em que a avó foi internada, com um linfoma, e a Mara disse-me que tinha de voltar, porque a Ana estava sozinha (a doença era real, a mãe dela morreu em dezembro de 2016). Como já tínhamos comprado as viagens para passar o Natal e a passagem de ano na Roménia — íamos a 17 de dezembro e regressávamos todos a 6 de janeiro — concordei e ela foi com o Ioachim para a Roménia no dia 5 de novembro de 2014. Nem ela nem os meus filhos regressaram mais a Portugal”.

"Há quase cinco anos que não vejo os meus filhos", queixa-se Rui Araújo, pai de Ana e Ioachim

No dia 26 de dezembro de 2015, Mara Fortu, que se mostrou indisponível para falar com o Observador, expulsou o ainda marido da casa da família. “Era de noite e estavam 20 graus negativos, tive de ir à procura de uma pensão. Sujeitei-me, não queria deixar de estar com os meus filhos”, justifica-se o português, que tinha viajado para a Roménia carregado de presentes e grão de bico. “Quis fazer bacalhau, quis que os meus filhos também experimentassem a nossa tradição, para juntar à deles: íamos comer sarmales, que são feitos de carne picada com arroz enrolados em folhas de videira, e salada russa com carne. Assim que ela viu as coisas, começou a gritar. «Isso não é tradição romena!». Era Natal e ela partiu-me um cabo de vassoura em cima, à frente dos miúdos. Depois, pôs-me fora: «Vai-te embora, pega nas tuas coisas e vai-te embora!».

Assim que regressou a Portugal, fez queixa à Autoridade Central que, ao abrigo da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, que reúne 101 estados e pretende agilizar e promover o “rápido regresso” de “crianças raptadas ou retidas ilegalmente” aos seus países de origem, deu início ao processo de repatriamento das crianças.

Foi efetivamente rápido: em janeiro de 2016, os filhos foram localizados na Roménia e, nesse mesmo mês, Mara Fortu foi notificada para regressar voluntariamente a Portugal com as crianças. Como não respondeu, o processo arrancou e a 8 de julho, em Bucareste, foi pronunciada a sentença que decretou o regresso das crianças, Ana e Ioachim. Como tanto a mãe como o Ministério Público romeno recorreram da decisão, houve novo julgamento em outubro . “A sentença definitiva e sem possibilidade de recurso foi pronunciada a 7 de Novembro de 2016, rejeitando os recursos e confirmando a sentença da 1ª instância”, recorda Rui Araújo. Por outras palavras, as crianças tinham mesmo de voltar a Portugal.

“O Joaquim tem 6 anos e a Ana tem 9. Já perdi a infância dos meus filhos. O Joaquim era bebé quando o vi pela última vez, nem sequer sabe quem é o pai, disse-me a Ana. Os meus filhos estão em Bârlad, a 300 quilómetros da capital da Roménia, na zona mais pobre de toda a União Europeia. Moram numa casa que não tem saneamento. Tudo o que sei deles é através da página de Facebook do avô."
Rui Araújo, pai de Ana e Ioachim, de 9 e 6 anos

Quase 5 anos depois, viu os filhos, Ana e Ioachim, duas vezes: nos dias 17 e 31 de maio de 2016 quando, depois de ir a Bucareste, para duas audiências em tribunal, viajou para Bârlad para os ver. “Já não tenho expectativas absolutamente nenhumas. Nos tribunais eu ganho tudo, o problema é depois executar as sentenças. Ao fim de três anos sem ela cumprir qualquer decisão do tribunal, não houve consequências nem vai haver”, confessa ao Observador.

Ainda assim, também admite que não consegue parar de lutar: em 2018, quando descobriu que o Tribunal de Cascais tinha arquivado o processo que lhe dava a guarda provisória das crianças antes de passar a decisão a definitiva, tratou de arranjar forma de abrir novo processo no Tribunal de Sintra; escreveu para os eurodeputados portugueses em Bruxelas a denunciar o estado romeno; reuniu com os grupos parlamentares de BE e PCP, que, por seu turno, interpelaram o Governo sobre a situação.

No final, nada deu resultado e está hoje no mesmo sítio onde estava há quase cinco anos. Ou num sítio ainda pior: “O Joaquim tem 6 anos e a Ana tem 9. Já perdi a infância dos meus filhos. O Joaquim era bebé quando o vi pela última vez, nem sequer sabe quem é o pai, disse-me a Ana. Os meus filhos estão em Bârlad, a 300 quilómetros da capital da Roménia, na zona mais pobre de toda a União Europeia. Moram numa casa que não tem saneamento. Tudo o que sei deles é através da página de Facebook do avô e todas as imagens em que eles aparecem são em liturgias e na igreja”.

Cinco anos, várias sentenças e 10 mil euros depois, continua sem ver os filhos

“O objetivo da Convenção de Haia é garantir que não existam deslocações ilícitas de crianças a partir do estado de residência habitual para os países signatários. A Convenção prevê um mecanismo que deve ser posto em prática com alguma rapidez — o prazo de que se fala são seis semanas para uma decisão do tribunal. O problema está nas questões práticas, muitas vezes estes processos não podem ser feitos em tão pouco tempo, logo a começar na localização das crianças”, explica ao Observador António José Fialho, o representante português na Rede Internacional de Juízes da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado.

“Há uma série de exceções previstas, segundo as quais o Estado pode recusar o regresso da criança, e depois há Estados que, à partida, já se sabe que vão demorar muito tempo, porque a própria máquina judicial funciona de forma mais lenta. O Brasil, por exemplo, não resolve nenhum caso sem pedir uma perícia psicológica, o que, por sua vez, não se faz em menos de um ano”, continua o magistrado. “O tempo de regresso das crianças a nível europeu tem andado pelos 150 dias. Agora, é evidente que há situações que duram mais tempo. Recordo-me de um caso, que até acabou com uma condenação da mãe no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em que nunca foi possível encontrar as crianças. Foi encontrada a mãe, na Alemanha, mas as crianças não. Veio a descobrir-se depois que, como morava numa zona junto à fronteira, a mãe tinha residência na Alemanha mas, para que ninguém encontrasse as crianças, levou-as para a Suíça.”

No caso da Roménia, o problema é outro, garante Rui Araújo: “Vê-se claramente que as autoridades não estão minimamente interessadas no processo nem em executar as decisões dos tribunais. E não é apenas no meu caso. Conheci, entretanto, outro pai na mesma situação. O Mihai é romeno, mas tem cidadania portuguesa e vive em Portimão. A ex-mulher desapareceu com o filho em 2014, foi localizada na Roménia nesse ano e a decisão definitiva a ordenar o regresso a Portugal é de março de 2016. Estamos em 2019 e ele continua sem ver o filho. Foi informado em abril pela Autoridade Central que ela e o filho se mudaram para a Alemanha. Falei com ele hoje e disse-me que já enviaram a documentação para para iniciar outro processo de rapto internacional de menor, agora na Alemanha”.

“O tempo de regresso das crianças a nível europeu tem andado pelos 150 dias. Agora, é evidente que há situações que duram mais tempo. Recordo-me de um caso, que até acabou com uma condenação da mãe no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em que nunca foi possível encontrar as crianças. Foi encontrada a mãe, na Alemanha, mas as crianças não. Veio a descobrir-se depois que, como morava numa zona junto à fronteira, a mãe tinha residência na Alemanha mas, para que ninguém encontrasse as crianças, levou-as para a Suíça.”
António José Fialho, representante português na Rede Internacional de Juízes da Conferência de Haia

Tudo poderia ser diferente, acredita Rui, se o Estado português interviesse. “Da parte das autoridades portuguesas há uma grande indiferença em relação a casos como o meu, como os nossos. Estamos a falar dos meus filhos, que são menores e cidadãos portugueses. O Estado português tinha a obrigação de zelar pelos interesses deles”, acusa. Em outubro de 2018, em resposta à interpelação feita pelos deputados do PCP sobre o processo, o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros limitou-se a responder que não tinha qualquer informação sobre o assunto e a remeter o caso para a Autoridade Central — onde, recorde-se, Rui Araújo deu início ao processo de recuperação dos filhos no final de 2015.

De acordo com a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), que é, em Portugal, a Autoridade Central responsável pelos aspetos civis do rapto internacional de crianças e também pela execução de decisões em matéria de responsabilidade parental, em 2019, só até 31 de julho, já deram entrada 28 processos de rapto ao abrigo da Convenção de Haia — e só 5 foram resolvidos. No ano anterior, de acordo com os números facultados pela DGRSP ao Observador, foram registados 28 processos no total — 9 continuam por resolver. No que concerne ao incumprimento das responsabilidades parentais nos países da União Europeia — e onde se incluem também os casos de deslocações ilícitas de crianças — a DGRSP registou 222 processos em 2018 (51 estão ainda a decorrer) e 135 até 31 de julho de 2019 (107 ainda continuam a ser tramitados).

“É essencial ir para o país onde está a criança, contratar um advogado local e lidar diretamente com o sistema judicial, se assim não for será muito complicado resolver a situação. O problema é que há quem não tenha dinheiro para isso.”
Ricardo Simões, presidente da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos

Apesar do aumento do número de casos, Ricardo Simões, presidente da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos (APIPDF), garante que já foram bem mais: “Há duas variantes nestes casos: os nacionais, em que a pessoa deliberadamente sai do país para afastar o pai ou a mãe; e depois há a realidade dos casais de países diferentes, que dispararam durante a crise financeira, sobretudo com naturais do Brasil e dos países do leste europeu. Nessa altura, a situação foi claríssima, agora a sensação que temos é que já não existem assim tantos casos”.

Claro que apenas um já seria um caso a mais, ressalva Ricardo Simões: “Quando há uma deslocação ilícita de criança, é necessário informar imediatamente o SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], para que não seja levada para fora de Portugal. As pessoas não sabem, mas as autoridades só podem fazer alguma coisa se houver uma oposição expressa. Claro que só controlam as fronteiras aéreas — basta ir de carro para Espanha e de lá apanhar um avião que ninguém vai ter problemas, até podem mostrar os papéis da regulação paternal, ninguém vai ler aquilo em português”.

“Acordo todos os dias às 4h, 5h ou 6h da manhã a pensar quando é que vou ter uma relação normal com os meus filhos. Todos os dias vejo o portal da justiça da Roménia, para ver se ela abriu mais algum processo, estou constantemente a pensar em como é que vou resolver isto."
Rui Araújo, pai de Ana e Ioachim, de 9 e 6 anos

Em caso de rapto consumado, e apesar de todas as prerrogativas legais existentes nestes casos, o presidente da APIPDF avisa: à distância, é pouco provável que o caso se resolva. “É essencial ir para o país onde está a criança, contratar um advogado local e lidar diretamente com o sistema judicial. Se assim não for, será muito complicado resolver a situação. O problema é que há quem não tenha dinheiro para isso.”

Rui Araújo, por exemplo, diz que já gastou cerca de 10 mil euros, em custas processuais e advogados, em Portugal e na Roménia, e em deslocações a Bucareste ou a Bârlad, para ir a audiências ou execuções coercivas de sentença a que a agora ex-mulher nunca comparece.

Ainda assim, garante, o pior não é o dinheiro: “Acordo todos os dias às 4h, 5h ou 6h da manhã a pensar quando é que vou ter uma relação normal com os meus filhos. Todos os dias vejo o portal da justiça da Roménia, para ver se ela abriu mais algum processo, estou constantemente a pensar em como é que vou resolver isto. Por outro lado, reconstruí a minha vida e voltei a casar, há cerca de um mês. É importante mostrarmos que conseguimos continuar a nossa vida, até porque, a qualquer momento, posso ter de provar que tenho condições para estar com os meus filhos. Não faz sentido nenhum, mas a pessoa que perde os filhos é que tem de provar que pode ser pai ou mãe. Eu cheguei ao ponto de ter de dizer ao tribunal da Roménia que não era homossexual — porque a Mara insiste em dizer que eu sou gay, pedófilo e satânico, porque ouço rock, e porque a minha advogada me disse que essa era uma acusação muito grave lá.”

De Portugal para França e de lá para uma cela na Finlândia

No passado dia 11 de agosto, quando viu a carrinha da polícia de Järvenpää aparecer, Marco Mourão ficou contente. Estava já há largos minutos à porta da casa que a mãe do filho tinha inscrito nos documentos entregues ao Tribunal de Família de Versalhes, em França, como sendo a sua morada na Finlândia, mas ninguém lhe abria a porta. Ainda não eram 14h. Desde as 10h, hora a que a visita a S. devia ter acontecido — a primeira desde dia 23 de fevereiro — que estava ansioso por ver o filho.

Depois de esperar três horas por ele no apartamento que tinha alugado, resolveu ir à esquadra mais próxima, mas estava fechada — era domingo, teria de esperar pelo dia seguinte para apresentar uma queixa por não apresentação de menor. A seguir, seguiu para a morada da mãe do filho, que não tinha como saber sequer se era a correta — o nome sob a campainha não condizia, não havia brinquedos visíveis, o jardim estava em mau estado e não seria a primeira vez que a ex-companheira lhe dava uma informação propositadamente errada. Esperou que passassem vizinhos e pediu ajuda — mas ninguém lhe confirmou sequer que ali morava uma mãe com uma criança de dois anos.

Já estava a achar que tinha feito a viagem desde os arredores de Paris em vão e que, mais uma vez, não ia conseguir encontrar Katia Carvalho, que há meses deixava sem resposta os e-mails em que, semana após semana, tentava combinar as visitas parentais ordenadas pelo tribunal francês, quando finalmente apareceu a carrinha da polícia de Järvenpää, pequena cidade a 40 km de Helsínquia.

Fez-lhes sinal para parar: os agentes iam poupar-lhe não só a viagem do dia seguinte à esquadra como também a noite de espera. Ainda começou a tentar explicar-se em inglês. Quando deu por si, estava a ser agarrado pelos braços e atirado para dentro da carrinha. Antes de ser transportado até uma esquadra em funcionamento, ainda conseguiu ver Katia Carvalho na soleira da porta a que tinha batido insistentemente durante a manhã inteira — “Afinal morava mesmo ali”, conclui Marco, 46 anos, natural de Portalegre a viver em França desde 2015, em conversa com o Observador.

Marco Mourão viajou para a Finlândia para tentar ver o filho. Foi detido um dia depois de aterrar

Uma vez no posto da polícia, foi trancado numa cela, sem direito a comer, beber ou fazer o telefonema a que legalmente teria direito. “Disseram-me que ia passar a noite na prisão. Tentei mostrar-lhes o documento da regulação parental, que diz que eu e a Katia partilhamos as responsabilidades parentais e que tenho direito a visitas aos sábados e domingos, mas não quiseram saber: «We don’t give a shit about that, it’s in French!». Implorei que ligassem para a embaixada, para os serviços sociais da Finlândia, que me dessem um cigarro e que me levassem ao hospital — deviam ser umas 22h ou 23h quando comecei a bater à porta descontroladamente, estava em pânico, a ter um ataque de ansiedade. Mas não veio ninguém. Passei a noite preso, cheio de frio e sem comer. Às 8h, libertaram-me, disseram-me que tinha sido apresentada uma queixa contra mim e que os serviços sociais — com quem eu mantinha contacto e que estavam a acompanhar o caso há meses — tinham dito que não me conheciam. Percebi depois que tinham ligado para uma linha de atendimento permanente em vez de para o assistente social que me tem ajudado”, resume o português.

De acordo com o auto da polícia, a que o Observador teve acesso, Katia Carvalho pediu ajuda às 13h53 daquele domingo, alegando que o ex-marido, que já antes a tinha agredido, estava no quintal de sua casa a ameaçar bater-lhe e retirar-lhe o filho. Na queixa, Katia explicou também que já por várias vezes tinha sido obrigada a refugiar-se com o filho em casas abrigo — informação que os serviços sociais confirmaram. “A prisão tem sido considerada a maneira mais fácil de garantir que não ocorram desordens ou crimes. No dia 11-8-2019 às 19h00 o superintendente Riku Korpela foi consultado. Mantém-se [a prisão] até à manhã seguinte para que a família possa providenciar um lugar seguro para ficar”, pode ler-se no documento, autenticado pela polícia finlandesa.

Ao Observador, Marco Mourão garante que é tudo mentira e que, antes do passado dia 11 de agosto, nunca tinha sequer pisado solo finlandês: “A única coisa que é verdade é que ela apresentou mesmo essas queixas. Essas e muitas outras. Já antes, em França, se fartou de me acusar. Foi tudo arquivado. Também é verdade que esteve mesmo em casas-abrigo, fiquei a saber pelos serviços sociais. Não sei o que ela tenciona fazer com isso, mas é fácil provar que, antes de agosto, eu nunca tinha estado neste país”.

Já Katia Carvalho, 38 anos, nascida em França, filha de pai português e de mãe finlandesa, jura, em inglês e ao telefone, que Marco é um agressor. E garante que, apesar disso, nunca o impediu de ver o filho, S.: “Eram 3h30 da madrugada quando o vi à minha janela, foi por isso que chamei a polícia. Quando pedi permissão ao tribunal para me mudar para a Finlândia, ele não foi contra — e podia ter sido. Não apareceu durante seis meses para ver o filho porque não quis, se quisesse vê-lo era sempre possível, mas numa instituição. Quase me matou, a mim e ao meu filho, muitas vezes, durante a gravidez e depois. Tenho mais de mil e-mails dele a dizer que vai destruir-me, que me vai matar.”

Ao Observador, Katia Carvalho não explicou a disparidade horária entre a sua versão dos acontecimentos e a do ex-companheiro, e recusou facultar qualquer tipo de documento que pudesse provar as acusações que faz. Marco Mourão, por seu turno, enviou cópias de queixas, elementos de prova, decisões de tribunal, autos policiais, testemunhos e trocas de e-mails com a mãe do filho.

“A única coisa que eu queria era ver o meu filho, estar com ele. Ela levou-o com três semanas e só voltou a ver-me com 7 meses, mas assim que nos reunimos ele soube logo que eu era o papá dele. Depois começou a andar, e sempre que o ia ver, assim que a assistente social lhe largava a mão, ele corria para mim a gritar «papá». Agora não o vejo há seis meses e o que me assusta é não saber quando é que vou voltar a vê-lo. Há uma decisão do tribunal, ela é que está contra a lei, mas eu é que fui preso."
Marco Mourão, pai de S., de 2 anos

Facto: S. tem residência legal com a mãe, na Finlândia. Facto: as responsabilidades parentais de S. são partilhadas de igual forma por pai e mãe. Facto: desde a mudança de país, tendo em conta as despesas inerentes ao direito de visita, o pai deixou de estar obrigado a pagar à mãe a pensão de alimentos de 230 euros mensais. Facto: Marco tem, até ao final de agosto, o direito de visitar o filho de quinze em quinze dias, aos sábados e domingos, entre as 10h e as 18h — depois dessa data, passa a ter direito a fins de semana alternados com S., desde as 18h de sexta-feira às 18h de domingo. Facto: a sentença do Tribunal de Família de Versalhes que regulamenta todos os pontos anteriores, é válida na Finlândia. Facto: sem que a justiça daquele país aprove a execução da sentença, não há nada que as autoridades — francesas, finlandesas ou até portuguesas (a Direção-Geral dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas, a quem Marco Mourão também recorreu, explicou, num e-mail a que o Observador teve acesso, “que as autoridades portuguesas não são competentes nesta matéria, uma vez que ambos os progenitores e a criança residem no estrangeiro”) — possam fazer para reunir pai e filho contra a vontade da mãe. Facto: desde fevereiro que Marco não vê o filho (que no passado dia 26 de Julho completou 2 anos), nem pessoalmente nem em fotografia.

A de Marco e Katia não é uma história particularmente feliz, bem pelo contrário — mas isso pouco importa, porque se, em maio de 2015 não, se tivessem conhecido no restaurante em Alfama onde ele trabalhava e ela ia todos os dias, S. não existiria, apressa-se o português a dizer.

Conheceram-se em maio, em outubro mudaram-se para França. Viveram durante dois meses em casa da mãe de Katia, nos arredores de Paris, depois foram viver para a zona da fronteira com a Suíça, onde Marco passou a trabalhar, a fazer limpezas. Era lá que estavam quando, no final do ano, ela descobriu que estava grávida. Em agosto de 2017, três semanas depois de o bebé nascer, separaram-se: “Um dia, quando voltei do trabalho, tinha a casa vazia”.

Para trás ficaram dois anos de stress, discussões, agressões, telefonemas para a polícia e queixas de violência doméstica. Desde então que Marco luta para fazer parte da vida de S.. “A única coisa que eu queria era ver o meu filho, estar com ele. Ela levou-o com três semanas e só voltou a ver-me com 7 meses, mas, assim que nos reunimos, ele soube logo que eu era o papá dele. Depois começou a andar e, sempre que o ia ver, assim que a assistente social lhe largava a mão, ele corria para mim a gritar «papá». Agora não o vejo há seis meses e o que me assusta é não saber quando é que vou voltar a vê-lo. Há uma decisão do tribunal, ela é que está contra a lei, mas eu é que fui preso. É uma questão de tempo, mas isso também me dá medo. Tenho medo que ela, quando perceber que está num beco sem saída, faça alguma coisa drástica contra o meu filho, que pense que se o S. não pode ficar com ela também não vai ficar comigo”, lamenta-se o português, que entretanto decidiu ficar a morar na Finlândia, para estar mais próximo de S. e tentar agilizar o processo.

Ricardo Simões, da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos (APIPDF), explica que a questão do tempo é muito importante, pelo que os pais devem, além de tentar resolver estes casos no país para onde os filhos foram levados, fazer tudo para acelerar os processos judiciais. “O processo de regresso deve ser concluído num prazo de um ano no máximo sob pena de se estar perante um facto consumado, que é a criança já estar novamente integrada. Aí o que acontece normalmente é que, apesar de se reconhecer que foi uma deslocação ilícita, o que se aconselha é que a criança fique onde está. Ou seja, favorece-se o infrator”, explica.

“Há uma recomendação da rede de juízes para que os processos criminais, mesmo que sejam processos de violência doméstica, fiquem suspensos quando estes processos de rapto internacional estão a decorrer, para que os pais estejam em igualdade de circunstâncias para poderem discutir o regresso ou não da criança.”
António José Fialho, representante português na Rede Internacional de Juízes da Conferência de Haia

Sobre as queixas alegadamente falsas de que tanto Rui Araújo como Marco Mourão dizem ter sido alvo — Rui foi acusado de ser pedófilo, homossexual e satânico, Marco de ter agredido repetida e violentamente a mulher, incluindo durante a gravidez –, o presidente da associação que apoia pais e mães diz que são o modus operandi corrente. “Temos tantos casos destes, é a eterna questão da falsa denúncia de violência doméstica. Muitas vezes, dá resultado. No Brasil, então, o caso torna-se extremamente complicado, por causa da Lei Maria da Penha, que é só contra os homens e que prevê prisão imediata. Basta alguém ter sido acusado, mete o pé no Brasil e é logo preso”, diz Ricardo Simões.

Em muitos outros processos, este tipo de queixas, falsas ou verdadeiras, não servirão para absolutamente nada, explica o juiz António José Fialho: “Há uma recomendação da rede de juízes para que os processos criminais, mesmo que sejam processos de violência doméstica, fiquem suspensos quando estes processos de rapto internacional estão a decorrer, para que os pais estejam em igualdade de circunstâncias para poderem discutir o regresso ou não da criança”.

«Isso não é subtração de menores, a mãe foi é passar o dia com o filho a qualquer lado!»

No fundo, é disso que se trata: da igualdade de pai e mãe na tomada de decisões importantes das vidas dos filhos, explica o juiz. “Uma mudança de residência que implique uma alteração significativa do regime de vida da criança deve ser sempre decidida em conjunto pelos dois progenitores — isto quando a regulação das responsabilidades parentais for conjunta, o que, desde 2008, é a regra”.

E isto é válido tanto nos casos em que essa mudança de residência é feita para outro país, como dentro do mesmo — só não se chama rapto internacional de menor, mas, na verdade, enquadra-se na mesma moldura penal, que é a da subtração de menores, punida com pena de prisão até dois anos. De acordo com as últimas estatísticas internacionais, 73% dos processos iniciados em 2015 ao abrigo da Convenção de Haia dizem respeito a crianças raptadas pelas próprias mães — 24% foram levadas pelos pais e 3% por avós, instituições ou outros familiares.

“Uma mudança de residência que implique uma alteração significativa do regime de vida da criança deve ser sempre decidida em conjunto pelos dois progenitores — isto quando a regulação das responsabilidades parentais for conjunta o que, desde 2008, é a regra.”
António José Fialho, representante português na Rede Internacional de Juízes da Conferência de Haia

No passado dia 13 de agosto, terça-feira, Júlio Ferreira saiu de casa assim que acordou e deixou a mulher com o filho, A., de apenas 3 anos. Não lhe disse onde ia nem o que ia fazer — apesar de estarem juntos há oito anos e de morarem no mesmo apartamento, em Aveiro, desde há cinco, há pelo menos dois meses e meio que tinham decidido que não havia outra solução senão separarem-se. Por isso mesmo, além de dormirem em camas diferentes, já faziam vidas praticamente separadas.

“Tratávamos do nosso filho em conjunto e, às vezes, até passeávamos juntos, para que ele não percebesse o que estava a acontecer, mas era só isso. Infelizmente, depois do nascimento do nosso filho, a nossa relação foi-se degradando um pouco, começámos a ter algumas discussões. Nada de grave, pelo menos até ao dia em que eu decidi acabar com a relação: tivemos um mal-entendido em frente ao meu filho, a mãe tentou dar-me um pontapé, eu agarrei-lhe a perna, ela caiu ao chão e ele assustou-se e começou a chorar. Peguei nele, fui pô-lo a dormir e, quando ele adormeceu, disse-lhe que estava tudo acabado e que nunca mais iria sujeitar o meu filho a uma cena daquelas”, conta Júlio, 35 anos, ao Observador. “No dia em que arranjei advogado, disse-lhe que ia pedir guarda partilhada com residência alternada. Moramos num apartamento alugado, mas, como tenho uma casa de família a 15 ou 20 quilómetros de Aveiro, propus-lhe mudar-me para lá. Eu saía e ela, que é professora e está colocada a cerca de 40 km de Aveiro, ficava. Disse-me sempre que não, que pegava no meu filho e que se ia embora para o Porto, onde moram os pais e de onde ela é”, continua o engenheiro de telecomunicações.

"Esperou que eu saísse de casa e, em duas horas, esvaziou completamente o meu apartamento. Com requintes de malvadez: as únicas coisas que deixou em casa foram as minhas roupas e os brinquedos que eu e a minha família demos ao nosso filho. Nem com um prato fiquei para comer uma sopa. Liguei-lhe e ela atendeu, disse que estava bem e que o filho estava bem também, mas que a situação «era insustentável». Foram quatro minutos de conversa em que ela não me disse sequer onde estava, quando desligou entrei em desespero completo."
Júlio Ferreira, pai de A., de 3 anos

Apesar de tudo, diz que nunca pensou que a ameaça fosse para levar a sério. Tanto que, naquele dia, quando regressou a casa, cerca de três horas depois de ter saído, e a encontrou completamente vazia, a primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi que tinha sido assaltado.

“E fui, em certa parte fui roubado. Estava de férias, tirei férias para estar com o meu filho e ela esperou por isso. Esperou que eu saísse de casa e, em duas horas, esvaziou completamente o meu apartamento. Com requintes de malvadez: as únicas coisas que deixou em casa foram as minhas roupas e os brinquedos que eu e a minha família demos ao nosso filho. Nem com um prato fiquei para comer uma sopa. Liguei-lhe e ela atendeu: disse que estava bem e que o filho estava bem também, mas que a situação «era insustentável». Foram quatro minutos de conversa em que ela não me disse sequer onde estava. Quando desligou, entrei em desespero completo”, conta ao Observador, exatamente uma semana depois dos acontecimentos.

Em pânico, Júlio começou por telefonar ao advogado, que tinha contratado dois meses antes. Como ele não atendeu, foi sozinho apresentar queixa por subtração de menores na esquadra da PSP mais próxima. “No início, não queriam aceitar, tive de insistir. «Isso não é subtração de menores, a mãe foi é passar o dia com o filho a qualquer lado!», foi o que me disseram”.

“Vivemos numa sociedade muito progressista mas quando chegamos a estes assuntos parece que nunca há igualdade, o pai é sempre o elo mais fraco. Não carreguei o meu filho no corpo durante nove meses mas isso é biologia! Desde que ele nasceu faço tudo, tudo, tudo: fui eu quem lhe mudou a primeira fralda, eu é que lhe dei o primeiro banho e foi comigo que ele deu os primeiros passos."
Júlio Ferreira, pai de A., de 3 anos

Só soube onde estava o filho três dias depois, na sexta-feira, quando a mulher lhe enviou um sms a dizer que tinha mesmo ido para casa dos pais, no Porto. “Informei a polícia, que entrou em contacto com ela, e tenho desde então tentado chegar a acordo para ir ver o meu filho. Pedi-lhe — pedi-lhe não, exigi-lhe! — que me deixasse ir buscar o meu filho. Ela diz-me que posso vê-lo, mas só na casa dos pais, coisa que eu não aceito. O pai dela é uma pessoa conflituosa, tenho a certeza de que não daria bom resultado. Estou, desde então, a aguardar que o tribunal de família e menores se digne a tratar-me do caso. A senhora que me atendeu disse-me que não era um caso grave, grave era se a mãe fosse drogada. Entretanto, há oito dias que não sei nada do meu filho.”

Contactada pelo Observador, Susana Barroso, 38 anos, professora de matemática e de ciências, não se mostrou disponível para comentar o caso. Júlio Ferreira, que entretanto pediu ajuda à Associação Portuguesa para a Igualdade Parental, não se conforma com o facto de a PSP, que o acompanhou recentemente a casa dos sogros, em mais uma tentativa para ver o filho, nada possa fazer contra a mulher. “Vivemos numa sociedade muito progressista, mas, quando chegamos a estes assuntos, parece que nunca há igualdade — o pai é sempre o elo mais fraco. Não carreguei o meu filho no corpo durante nove meses, mas isso é biologia! Desde que ele nasceu, faço tudo, tudo, tudo: fui eu quem lhe mudou a primeira fralda, eu é que lhe dei o primeiro banho e foi comigo que ele deu os primeiros passos. Por muito magoado que possa estar, consigo compreender a posição da mãe. A família está no Porto e ela não estava numa relação feliz, percebo que se quisesse ir embora. Mas tinha de me comunicar o que queria fazer e ambos tínhamos de ficar com o A.. Agora, assim não!”

A volta ao mundo (ou por dois continentes) em busca do filho

Em 2015, a taxa de regresso aos países de origem nos processos abertos ao abrigo da Convenção de Haia fixou-se nos 45% — o que significa que mais de metade dos menores levados, naquele ano, ilicitamente por um dos pais para um país estrangeiro não regressou a casa. Ainda assim, em alguns países a percentagem de regressos efetivados foi consideravelmente mais elevada: na Nova Zelândia, 93% dos processos abertos resultaram em regresso, taxa que no Reino Unido se fixou nos 64%, na Turquia nos 60% e na Austrália nos 58%.

“Há países que concentram todas as competências necessárias para resolver estes processos e que fazem tudo mais rápido, como a Holanda, que tem apenas um Tribunal de Família sediado em Haia, ou Inglaterra, que tem um conjunto muito restrito de juízes de família, o que faz com que os critérios sejam mais uniformes e com que haja uma maior eficácia de decisão. São 18 ao todo, enquanto em Portugal, por exemplo, há 200 e tal juízos”, contextualiza o juiz António José Fialho. Joaquim Oliveira, pai de Alexander, de 14 anos, confirma que, nestes casos de rapto internacional, há países e países: “Dentro do azar, tive mesmo muita sorte”.

Joaquim, agora com 60 anos, não poderá nunca dizer que a mãe de Alexander não lhe deu um aviso. Um mês antes de o bebé nascer, “naquela altura em que as companhias aéreas já nem aceitam que as grávidas voem”, Marília Venceslau, então com 42 anos e já mãe de um rapaz de 9, de uma relação anterior, informou-o de que tinha comprado um bilhete de avião e que ia para os Estados Unidos. “Queria que ele nascesse lá, acho que o objetivo era que o bebé fosse o green card dela”, recorda Joaquim ao Observador.

Joaquim procurou Alexander em dois continentes, tem a guarda do filho desde 2012

Guia turística, Marília tinha amigos e familiares na Florida — e foi para lá que, menos de um mês antes do parto, voou, para Fort Myers, via Dusseldorf. Quando Alexander nasceu, em Sarasota, Joaquim já lá estava, a tentar chamar a mulher, com quem vivia há seis anos, à razão — e de volta a Portugal.

“Como, ao segundo dia, continuava a teimar em não vir, pedi apoio ao consulado em Washington e, aos 17 dias de vida, o Alexander veio comigo para Portugal. Ela acabou por vir também, tinha um visto turístico e havia uma denúncia, nunca poderia lá ficar. Ainda vivemos juntos alguns meses, mas, passado um tempo, ela saiu de casa com o bebé e pediu-me que não a procurasse. Como é lógico, não aconteceu, não se abdica de um filho. Meti o processo em 2005. A primeira conferência de pais foi em 2009”, recorda o empresário, que, à data, também já era pai, de um rapaz de 19 anos.

Durante os dois primeiros anos de vida, Alexander viu o pai “algumas vezes”, sempre à porta de casa da avó materna. Depois, a partir dos dois anos e meio, começou a passar os sábados com o pai, sempre sem grande regularidade — “Era a bel-prazer da mãe”. Com a regulação do poder parental, passou a ter direito de visitação de 15 em 15 dias, sem pernoitas, dada a idade de Alexander: “Era pai e passei a visita. O primeiro momento de alienação que senti, além do que a mãe me impôs, foi esse, no Tribunal de Família e Menores. Quando o Alexander tinha quase 5 anos, consegui um fim de semana de 15 em 15 dias, mais um dia de semana. A mãe morava em Setúbal e eu em Lisboa, fiz muitos milhares de quilómetros em vão: «Hoje não o podes levar porque está constipado», «Hoje foi a uma festa de anos», «Hoje não me apetece»”.

Ainda assim, havia problemas mais graves: Alexander, que só tinha começado a falar com 3 anos, apresentava dificuldades de aprendizagem, de leitura, de cálculo e escrita. “Fui alertado primeiro pela educadora e depois pela professora primária que ele não estava a conseguir seguir o programa escolar. Houve um barramento tal na primeira infância — a mãe não o estimulava, só falava com ele em inglês e estavam sempre em casa — que muitas competências nunca chegaram a desenvolver-se”, explica Joaquim, que, na altura, continuava a poder ver o filho apenas 8 dias por mês, mas mantinha na justiça a pretensão de o trazer para morar consigo.

“De carro, fui ao Luxemburgo, à Suíça e à Alemanha. Fui a Genebra, a Dusseldorf e a Frankfurt, onde ela tinha estado a trabalhar para o ICEP, fui a todas as cidades onde ela tinha familiares ou conhecidos. Não o encontrei. Percorri os Estados Unidos, de Rhode Island à Florida, e nada. No tribunal, disseram-me para ter calma: «Deixe estar, ele está com a mãe e está bem, um dia há-de aparecer». Depois, um dia, consegui localizá-la em Londres. Fui para lá, vigiei a agência para onde ela tinha trabalhado e, ao oitavo dia, encontrei-a."
Joaquim Oliveira, pai de Alexander, de 14 anos

No final de 2011, tudo mudou: uma nova juíza foi nomeada para o processo e tudo levava a crer, garante Joaquim, que a guarda da criança ia ser invertida: “Tivemos uma audiência no dia 15 de dezembro. Foi nesse dia que a juíza percebeu que havia uma clara manipulação por parte da mãe”. Alexander tinha 7 anos e a batalha legal pela sua custódia, que durava desde o nascimento, parecia que ia finalmente chegar ao fim. Depois, no dia 31 de dezembro de 2011, a menos de meia hora do novo ano, Marília Venceslau desapareceu. E Alexander desapareceu com ela.

Entre janeiro e abril de 2012 Joaquim Oliveira não fez outra coisa que não procurar o filho. Deixou o stand de automóveis de que é proprietário entregue aos funcionários, e partiu em busca de Alexander. “De carro, fui ao Luxemburgo, à Suíça e à Alemanha. Fui a Genebra, a Dusseldorf e a Frankfurt, onde ela tinha estado a trabalhar para o ICEP, fui a todas as cidades onde ela tinha familiares ou conhecidos. Não o encontrei. Percorri os Estados Unidos, de Rhode Island à Florida, e nada. No tribunal, disseram-me para ter calma: «Deixe estar, ele está com a mãe e está bem, um dia há-de aparecer». Depois, um dia, consegui localizá-la em Londres. Fui para lá, vigiei a agência para onde ela tinha trabalhado e, ao oitavo dia, encontrei-a. Fiquei mais tarde a saber que atravessou de barco de Calais para Dover, no último dia de 2011, às 23h35. O Reino Unido não é Espaço Schengen, até há fronteiras, mas não lhe pediram nada. Devia estar tudo a preparar-se para abrir o champanhe.”

Depois de apresentar queixa, de Marília Venceslau ser detida e sujeita a apresentações periódicas, e de Alexander, que estava em casa sem frequentar a escola, ser colocado num colégio católico, Joaquim Oliveira voltou para Portugal e tratou de acionar a Convenção de Haia. “Na Autoridade Central, disseram-me que podia demorar de 9 meses a um ano até poder trazer o meu filho de volta. Pedi ajuda à Associação Portuguesa para a Igualdade Parental, que, no mesmo dia, me pôs em contacto com a congénere inglesa. Um mês e meio depois, o processo estava resolvido. Houve um julgamento sumário em Covent Garden, a mãe disse que tinha fugido para lá porque eu era violento — é uma coisa que de alguns anos para cá os advogados começaram a instruir os pais guardiões a dizerem. Tenho umas vinte falsas denúncias contra mim, todas arquivadas. No fim, deram à mãe 72 horas para trazer o Alexander de volta a Portugal ou para mo entregar. No dia 29 de junho de 2012, seis meses depois de ter saído do País, o meu filho regressou. No dia 5 de julho, veio viver definitivamente comigo”, recorda o empresário, agora com 60 anos.

Diz que, quando reencontrou Alexander, teve dificuldades em reconhecê-lo: estava muito magro, pálido, desorientado e num misto de emoções que acabou por fazer com que o primeiro encontro entre ambos, sob o olhar de um agente da Polícia Metropolitana de Londres, levasse mais de uma hora a arrancar. “Foi um processo muito doloroso e difícil de superar, ele sorria e, ao mesmo tempo, tinha medo e agarrava-se às pernas da mãe. Foi preciso uma hora e um quarto até ele sentir finalmente confiança para estar comigo. Agora falo disto com alguma ligeireza, mas durante muito tempo não foi assim. Lembro-me de estar a trabalhar e de não me conseguir conter, assinava cheques e chorava.”

“Na Autoridade Central, disseram-me que podia demorar de 9 meses a um ano até poder trazer o meu filho de volta. Pedi ajuda à Associação Portuguesa para a Igualdade Parental que, no mesmo dia, me pôs em contacto com a congénere inglesa. Um mês e meio depois o processo estava resolvido, houve um julgamento sumário em Covent Garden, a mãe disse que tinha fugido para lá porque eu era violento, é uma coisa que de alguns anos para cá os advogados começaram a instruir os pais guardiões a dizerem."
Joaquim Oliveira, pai de Alexander, de 14 anos

Depois de, entre os 7 e os 10 anos, não terem tido qualquer contacto, recentemente houve uma reaproximação e, nas férias da Páscoa deste ano, Alexander regressou a Londres, para passar uma semana com a mãe. “Voltou um pouco perturbado e manipulado, com algumas perguntas e muitas dúvidas, mas, dois dias depois, já lhe tinha passado tudo”, resume Joaquim. “Agora está lá outra vez, a passar as férias de verão, com a mãe e o irmão, que já tem 23 anos. Está lá há um mês e uma semana e não sei quando regressa, já estou com alguma impaciência, confesso”.

Depois de ter estado matriculado no 2º ano durante três anos seguidos e de só ter aprendido a ler aos 9, Alexander tem tido sempre o acompanhamento de uma professora de ensino especial e vai começar agora o 8º. “Tem sido um herói. É um menino feliz, muito brincalhão, tranquilo, dorme perfeitamente todas as noites e tem imensos amigos. Temos piscina, a nossa casa está sempre cheia de miúdos”, descreve o pai. Que, com o seu caso resolvido, fez questão de devolver a ajuda que, na altura em que mais precisou, outros pais lhe deram. “Hoje sou membro da direção da Associação para a Igualdade Parental, faço parte do Conselho Fiscal e estou mandatado para acompanhar as visitas de dois meninos com os pais. É a minha forma de contribuir para que outros pais consigam exercer a parentalidade.”

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