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KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

"Há snobismo e novo-riquismo no vinho. Há pessoas que bebem certos rótulos só porque podem"

Um dia antes dos 65 anos, e no mês em que faz 30 de carreira, falámos com João Paulo Martins. Pioneiro na escrita de vinho, ainda tem críticas a fazer ao sector, como se de uma prova cega se tratasse.

Quem trabalha com vinhos consegue encontrá-lo com alguma regularidade em apresentações de novos rótulos. O escritório tende a ser, muitas vezes, a mesa de almoço ou de jantar. Faz parte de um dia de trabalho levar o copo de vinho ao nariz, agitá-lo, provar e tomar notas. João Paulo Martins começou a apreciar vinhos muito antes de escrever sobre eles. Ainda a primeira palavra na primeira crónica não estava impressa, já o ex-professor de História com queda para a música mergulhava de cabeça neste universo. É por isso que ele, juntamente com outros nomes no sector, é pioneiro nisto que é a crítica de vinhos.

Há quem lhe chame, até, “Papa dos vinhos”, mas João Paulo Martins prefere o termo “cheirista”, já antes colado à mítica figura de Fernando Nicolau de Almeida, o criador do Barca Velha. Um dia antes de completar mais um aniversário, e no mês em que celebra 30 anos de carreira, o jornalista de vinhos abriu a porta de casa para uma longa conversa com o Observador. Numa entrevista de 1h30 não houve tempo para enumerar as muitas obras já publicadas (incluindo o conhecido guia “Vinhos de Portugal”) ou para pormenorizar três décadas de trabalho. Mas assunto foi coisa que não faltou.

Sempre num registo informal, com direito a tratamento na segunda pessoa do singular entre entrevistado e entrevistadora, João Paulo Martins falou da pouco bonita, mas muito necessária, habilidade para cuspir vinhos, mas também sobre o papel importante do crítico que deve distanciar-se não só do consumidor, como dos produtores. As “tonterias pegadas” a que já assistiu também tiveram lugar de destaque numa entrevista onde não faltaram críticas ao sector:

“Há snobismo e há um bocadinho de novo-riquismo, as pessoas que bebem determinado vinho só porque ‘podem’.  Se eu disser que ontem à noite bebi Romanée-Conti isto quer dizer alguma coisa. A partir do princípio que o vinho não é fake, porque há muita falsificação nestes vinhos, dizer que bebi Romanée-Conti com um ar blasé significa que posso… Atualmente, esta garrafa custa uns 25 mil euros.”

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Lembras-te do primeiro vinho que bebeste? E do primeiro que provaste?
O primeiro que bebi terá sido na minha tenra idade juvenil. Eu passava férias no campo, onde o meu pai fazia um vinho fraquinho que ele bebia ao jantar — eu não bebia ao jantar, mas ia buscar à pipa com um copito; era uma zona onde havia muitos figos a secar ao sol no verão, então, nós íamos buscar uns figos e depois o copo para empurrá-los. Não faço ideia, mas aquilo devia ter uns 11 graus. Foi a minha primeira experiência de consumo, até porque eu e os meus irmãos tínhamos alguma responsabilidade na coisa, porque aquelas uvas eram pisadas por nós num lagar lá em casa. Provar, no sentido de provar e cuspir,terá sido antes de começar a escrever sobre vinhos, porque antes de começar a escrever já tinha um grupo de amigos que era uma espécie de tertúlia — chamei-lhe Confraria Enófila Opus Ensemble. Fazíamos provas de provar e cuspir, a armar ao profissional, mesmo sendo todos super amadores… todos não, havia um profissional lá no meio. Já estava habituado a essa ideia de provar e depois cuspir, que é uma coisa um bocado desagradável, mas pronto, não há outra maneira… Se a pessoa fosse a beber tudo, é claro que não passava do segundo vinho.

Encaraste esse exercício de cuspir com naturalidade ou estranhaste ao início?
Quer dizer, tinha de ser, disseram-me que era assim… vamos embora! Até porque quando comecei nessa história de cuspir foi logo a provar oito ou dez vinhos, portanto, já sabia que não se podia beber tudo. Habituei-me a essa prática de cuspir e é horrível. Hoje em dia, se for fazer uma prova de Barca Velha, cuspo o vinho todo e uma pessoa pensa “Este gajo não é normal, tem aqui um vinho que é caríssimo e raro…”.

Há algum vinho que não cuspas?
Às vezes é o último. Quando estamos a acabar a prova e há um vinho muito, muito bom no final, temos uma frase entre nós, que costumamos dizer, “Este vou cuspir para dentro!”. Mas, por graça, é o último vinho. É um bocado tontice porque, se calhar, logo a seguir vamos almoçar e vamos beber esses vinhos outra vez. Aí já ninguém pensa em cuspir. Acabaram as provas, assunto arrumado, agora vamos à parte lúdica, que é sempre a parte mais interessante.

E há alguma forma mais ou menos elegante de cuspir?
Não, mas há pessoas mais habilidosas a cuspir do que outras. Eu não sou habilidoso, mas, por exemplo, o João Afonso, o meu colega, tem um cuspir fantástico… Ele é capaz de pôr o balde a um metro de distância e aquilo vai em arco, direitinho ao balde, é uma coisa impressionante. Eu fico admirado. Há uma produtora do Douro que, quando ela era mais jovem, as amigas chamavam-lhe “Cobra Cuspideira”, porque ela tem um cuspir… é uma coisa… artístico! É um cuspir artístico. Mas, de facto, não é uma coisa muito agradável, também evito fazer grandes estardalhaços, pode-se fazer a coisa discretamente.

Já te aconteceu o contrário, veres alguém a fazer figuras… mais cómicas?
A provar vinhos? Sim, sim. Uma das vezes deu-me uma vontade de rir incrível. Foi quando fui pela primeira vez à Vinexpo a Bordéus, arranjámos um convite — eu, o José Salvador, com quem trabalhava, e o Luís Pato [produtor bairradino] — para ir a um jantar da Confraria dos Produtores de Saint-Émilion, que celebravam 20 anos de existência. Iam fazer um jantar de gala, com smoking obrigatório, as senhoras de vestido comprido. Lá fomos nós de fatinho e gravata, todos aperaltados, as mesas eram de 10 pessoas e na minha mesa ficou um sujeito, que não sei quem é, nunca mais o vi… Então, o que é que ele fazia? Agarrava no copo, abria o olho e agitava o copo com o olho dentro do copo. Deu-me uma vontade de rir… Mais tarde, alguém explicou-me o eventual interesse técnico daquele gesto, que é ver se o vinho tem muito sulfuroso — se tiver, irrita a mucosa do olho. Essa foi sensacional, nunca tinha visto uma coisa assim.

"Eu não sou habilidoso, mas, por exemplo, o João Afonso, o meu colega, tem um cuspir fantástico... Ele é capaz de pôr o balde a um metro de distância e aquilo vai em arco, direitinho ao balde, é uma coisa impressionante. Eu fico admirado."

E com tanta prova ainda há surpresas a provar um vinho?
Há. Aquela ideia de levar o vinho ao nariz para ver o que é que dali vem é sempre um momento de surpresa. Uma pessoa nunca sabe se vai ser surpreendido pela positiva, se pela negativa, se vai ou não provar uma coisa fantástica. Agora, se estiver a provar um vinho corrente, daquele de 3 ou 4 euros, que saem todos os anos e que todos os anos são iguais, já sei que não vou ter surpresa nenhuma — e, se calhar, o produtor já não quer que tenha surpresa alguma, quer que seja igual ao ano anterior e que o vinho mantenha uma certa continuidade. Nesses vinhos, eu já sei que não vou ter surpresa. Nos outros estou sempre à espera de qualquer coisa que possa acontecer. Nem sempre acontecem coisas boas, mas o problema da profissão é esse.

Há algum aroma que te tenha ficado na memória por ser mais inusitado, mais diferente?
Sim, por acaso há. Pode parecer um pouco pedante dizer isto, mas há um vinho do produtor E. Guigal, da Côtes du Rhône, de uma micro-região chamada Condrieu — onde nasceu e esteve quase extinto o Viognier — chamado La Doriane cuja primeira vez que o provei fiquei “O que é isto? O que é isto?!”. Tinha uns aromas de flores muito exóticas, uma coisa incrível. Já o provei uma segunda vez, talvez outra colheita, e não era tão espetacular. Mas da primeira vez que o provei até estava ao lado do João Afonso e ficámos os dois embasbacados. Nunca tínhamos cheirado um vinho branco com aquele perfume, era completamente inusitado. Também tive uma grande surpresa da primeira vez que provei vinhos de Gewürztraminer, aquela casta da Alsácia, que cheira muito a líchias e a rosas. Era de tal forma diferente do que já tinha provado em Portugal que a primeira vez que provei fiquei… Há ali uma primeira ideia em que pensamos que isto é uma aldrabice técnica, que puseram para aqui uns pozinhos para dar aromas, mas não. A casta cheira mesmo àquilo — é, por isso, dos vinhos mais fáceis de identificar em prova cega. Pontualmente houve esse tipo de aromas que são muito marcantes, por serem diferentes daquilo a que estamos habituados em Portugal.

Mas nem sempre é fácil catalogar aromas…
Não, não. Até porque nem todos os vinhos têm muitos aromas. Há muito mais castas não aromáticas do que aromáticas. Agora, as castas têm a vantagem de terem características diversificadas: há umas que são “boas” porque produzem muito, que eram castas que se usavam muito em Portugal nos tempos do império colonial, em que era preciso produzir à maluca para mandar para África (o que interessava eram castas que produziam muito, agora se tinham aromas, se não tinham… isso não interessava nada; eram chamadas as castas paga dívidas). Essas castas, por norma, não têm aromas nenhuns, mas têm a vantagem de serem muito produtivas.

Depois há outras que não produzem nada mas que, por exemplo, são castas muito ácidas, tão ácidas que depois são usadas num lote para dar acidez e para equilibrar — podem não ter aroma, mas a vantagem é terem acidez (a mais conhecida em Portugal é o Arinto, que é a mais usada de norte a sul). Depois há outras mais específicas que são especialmente ácidas e que estão em fase de renascimento, que é o caso de uma casta do Dão chamada Uva Cão, que é de uma acidez de partir os dentes, de a pessoa ficar a tremer. Mas era usada precisamente para lote, para dar acidez ao vinho final. Depois há castas aromáticas que não têm acidez, há castas aromáticas sem corpo… Portanto, o lote procura ir buscar a cada uma aquilo que ela tem de melhor e, depois, fazer um produto final equilibrado. Há castas para todos os tipos e, de facto, há umas que atualmente não têm interesse nenhum. Antigamente as pessoas não cheiravam os vinhos. Aquela ideia de beber o vinho de copo cheio, de penálti, como se dizia nas tascas, em que a pessoa segurava no copo com jeitinho para não entornar (se abanasse um bocadinho já saía fora)… a ideia era beber o vinho. Se era encorpado, se tinha álcool… eram essas as virtudes que o vinho apresentavam.

10 vinhos que tem de provar (pelo menos) uma vez na vida

Assististe à transformação na forma como se prova o vinho?
Claro. Eu tive essa sorte — e é daquelas coisas que a pessoa não sabe que está a ter sorte. Ainda venho do período em que, por falta de tecnologia, os vinhos brancos eram muito pouco aromáticos. Quando os vinhos passaram, por causa das novas tecnologias, a captar a fruta e os aromas que são da própria uva, aí as pessoas começaram a cheirar os vinhos — começou a ser um fator muito importante, o de cheirar um vinho e captar-lhe as virtudes. Há um colega de profissão com o qual mantenho uma discussão acesa sobre este assunto, mas eu tenho razão, ele vai lá chegar mais cedo ou mais tarde. No outro dia estávamos a beber um vinho e o vinho já estava oxidado, uma oxidação desinteressante (porque há umas interessantes). Disse-lhe “Já não bebo este vinho, este vinho não tem interesse nenhum”. Ele disse-me: “És um radical, se reparares na boca o vinho tem boa acidez”. Pode ser verdade — e era verdade –, mas eu disse assim: “Pedes um vinho no restaurante, o empregado mete o vinho no copo, cheiras e dizes que não queres porque achas que está estragado ou porque está oxidado. Achas que o consumidor vai dizer ‘No nariz é uma treta, mas como tem boa acidez na boca fica aqui’?”. Não vale a pena puxarmos por um dos valores do vinho se o conjunto funcionar mal. Anteontem estive a provar vinhos para a revista [Grandes Escolhas] e houve vinhos que tive de pôr de lado, porque têm defeitos que podem passar com o tempo mas, neste momento, se for classificá-los vou dar má nota. Mais vale esperar mais algum tempo, ver se o vinho recupera, porque o vinho não está em condições. Nenhuma pessoa bebe aquilo.

"Há um gosto pessoal do qual não abdico. Agora, esse gosto pessoal não me impede de provar um vinho e de lhe dar uma boa classificação. Se a pessoa não é capaz de distinguir entre aquilo que é o seu gosto pessoal e as qualidades do vinho que está a provar, então, não pode ser provador." 

Aos 30 anos de carreira já viste modas que chegaram e que partiram. Às vezes é difícil ter-se uma posição “mais radical” sobre algumas tendências?
Há um gosto pessoal do qual não abdico. Agora, esse gosto pessoal não me impede de provar um vinho e de lhe dar uma boa classificação. Se a pessoa não é capaz de distinguir entre aquilo que é o seu gosto pessoal e as qualidades do vinho que está a provar, então, não pode ser provador. Nós temos tendência em andar contra as modas. Felizmente, algumas modas com as quais nos deparámos e contra as quais batalhámos já passaram. Lembro-me, por exemplo, do excesso de madeira nos vinhos brancos: vinhos que só cheiravam a tosta, que eram madeira, madeira, madeira. A pessoa que o provava não era capaz de dizer de que país provinha, nem sequer de que continente, nem a casta. Foi uma época e, em cada época, há sempre pessoas que ficam radicais na defesa de determinado estilo. Fui duas vezes ao International Wine Challenge como provador, nos anos 90: só os vinhos brancos com madeira tinham boas notas. Um vinho não pode ser, não é bom [só] por ter madeira. Era uma mania.

Mais recentemente, no último concurso desses a que fui, assisti a uma cena patética que também já contei. Agora, a moda é para chumbar tudo o que tiver madeira, portanto, passámos para o radicalismo completamente oposto, ninguém está preocupado se a madeira está bem integrada, se liga bem com a fruta, se ajuda na complexidade do vinho. Não. Nota-se um bocadinho de madeira e chumba-se o vinho. Agora é a acidez — “Aí jesus, tem de ter acidez”. Então, estive com um parvalhão, que não tem outro nome, de um Master Sommelier na minha mesa — e uma pessoa para ser Master Sommelier tem de estudar que nem um louco, tem de saber muito, mas também tem de ser inteligente –… O parvalhão estava na minha mesa, estávamos a provar vinhos portugueses da casta Alvarinho e ele sistematicamente dizia que os vinhos não tinham acidez. A pessoa pensa: “Espera lá, os vinhos Alvarinho não têm acidez? Em que Universidade é que este gajo tirou o curso?” Há uma certa tendência para radicalizar determinadas modas e nós temos de andar um pouco contra isso. Não me dá gozo nenhum beber um vinho que é só ácido. Madeira, madeira, madeira também não quero. Uma outra moda que agora esta muito em voga é a dos vinhos sem intervenção, sem muita tecnologia…

Os vinhos ditos naturais?
Sim, a ideia dos vinhos sem intervenção, para que o vinho expresse exatamente o local de onde veio e as características que tem. Não há natural… não há um vinho sem intervenção, porque um vinho sem intervenção não existe, transforma-se em vinagre. Portanto, tem de haver uma intervenção humana e isso são opções: se vindimo a 10 de agosto ou a 10 de setembro; se vindimo verde ou maduro. São tudo opções, não se pode dizer que é natural no sentido de que o vinho se faz por si. Não faz nada. Sou eu que vou decidir o que quero fazer do vinho. Uma grande bandeira destes vinhos pouco intervencionados é ser fermentado em leveduras próprias — levedura, só por si, é um instrumento de fermentação. Lembro-me de um enólogo que dizia que usava leveduras para fazer pão. Outro dia, em conversa com o engenheiro Manuel Vieira, que faz o favor de ser meu amigo ainda nem trabalhava nos vinhos, dizia-me: “Enquanto trabalhei nos Carvalhais [Quinta dos Carvalhais, do Dão], terei feito talvez uns 100 a 150 milhões de litros de vinho nos vários anos. Muito provavelmente, 80% desses vinhos (e estamos a falar de vinhos industriais, não são vinhos de nicho, são vinhos que têm de sair bem) foram com as leveduras naturais, o vinho não precisava de leveduras”. O não ter leveduras não quer dizer, para já, que a coisa vai correr bem até ao fim, e também não quer dizer que só os bons é que não usam leveduras e os vendidos à indústria usam. Até é uma discussão que me irrita porque acho que há muita falta de conhecimento e há muita crença de cariz quase religioso nisto tudo. Esses fundamentalismos mexem muito comigo.

Achas que, de alguma forma, esse movimento pode ser uma resposta à “industrialização” do vinho?
Pode. É evidente que há vinhos feitos no mundo aos triliões de litros, aos milhões de milhões, vinhos feitos o mais industrial que possas imaginar, mas também não são desses que estamos a falar. Estamos a falar dos vinhos normais, que as pessoas compram no supermercado — uns são feitos em 50 mil garrafas, outros em 500 mil, outros em milhões. Esses vinhos têm de ser feitos com muito cuidado, não se pode dar ao enólogo a oportunidade de ele agora pôr-se a fazer experiências de inovação tecnológica no vinho. Isto não quer dizer que não há vinhos que são feitos… leveduras lá para dentro, mais produtos que fazem ressaltar aromas, leveduras aromáticas, tudo isso existe. Agora, não podemos tomar a parte pelo todo e o todo pela parte. É ter os olhos bem abertos para o que se está a fazer de bem e de mal.

É certo que há radicalismo no vinho, mas também há snobismo?
Há. Há snobismo e há um bocadinho de novo-riquismo, as pessoas que bebem determinado vinho [só] porque “podem”. Se eu disser que ontem à noite bebi Romanée-Conti isto quer dizer alguma coisa. A partir do princípio que o vinho não é fake, porque há muita falsificação nestes vinhos, dizer que bebi Romanée-Conti com um ar blasé significa que posso… Atualmente, esta garrafa custa uns 25 mil euros. Significa que eu posso gastar 25 mil euros e tu não. É um bocadinho essa a ideia. Ou, então, beber um vinho tão raro…. Há vinhos que são mais difíceis de comprar do que um Romanée-Conti. O vinho também pode servir para esse tipo de demonstração um pouco bacoca de exibicionismo e de poder económico.

O vinho é uma ironia engarrafa: é um produto de grande consumo em Portugal, mas também consegue ser muito intimidante porque exige bastante conhecimento.
Estamos a atravessar uma fase em que os vinhos bons estão a subir de preço, que é uma tese que tenho defendido. Acho que um país, uma região, uma casta ou um produtor não ganha prestígio a vender vinhos baratos. Pode ganhar dinheiro, mas não ganha prestígio. Um produtor só passa a ser de referência quando o consumidor já compra à confiança mesmo sem conhecer o vinho. Um produtor só ganha esse prestígio se os vinhos forem subindo gradualmente de preço. Isso não quer dizer que esteja correto um produtor, como vi um produtor da região de Lisboa fazer, de uma marca que 99% das pessoas nunca ouviu falar, pôr o vinho à venda por 80 euros. Espero que ele venda tudo, mas não me parece fácil a pessoa mandar-se para patamares de preço tão elevados sem haver um trabalho de sapa, aquilo leva tempo.

O pessoal de Bordéus costuma dizer que mais difícil são os primeiros 200 anos. De facto, nós não temos essa tradição. Temos algumas marcas muito antigas, mas não temos 100 anos de história de vinho engarrafado. A nossa história de vinho engarrafado é relativamente recente e restrito, são poucas marcas. Estamos numa fase de aumento de preços e, de repente, há muitas pessoas que se deparam nas crónicas que escrevo para o Expresso com vinhos caros e outros baratos… Mandei hoje a crónica desta semana e já sei que vai haver malta a pensar que estou sempre a meter vinhos caros. Selecionei três vinhos, o mais barato era 25 euros, outro 35 e o terceiro 45 euros. Não há volta a dar. Os vinhos bons têm de ser caros por uma questão de manter, de facto, o prestígio da região, da marca e do produtor. Não o podemos beber todos os dias? Há muitas coisas que não fazemos todos os dias por ser caro. Se a pessoa quer beber vinhos todos os dias ao almoço e ao jantar, tem muitos vinhos baratos. Hoje, os vinhos baratos são bons. No tempo em que comecei, os vinhos baratos eram miseráveis e, nesse aspeto, a renovação tecnológica das adegas, mesmo das adegas cooperativas que sobreviveram, veio fazer com que até os vinhos mais baratos sejam bons. Hoje nenhum produtor se arrisca a pôr um vinho a 3 ou 4 euros no mercado que não esteja perfeitamente bebível e que não seja agradável à refeição.

"Há snobismo e há um bocadinho de novo-riquismo, as pessoas que bebem determinado vinho porque "podem". Se eu disser que ontem à noite bebi Romanée-Conti isto quer dizer alguma coisa. A partir do princípio que o vinho não é fake, porque há muita falsificação nestes vinhos, dizer que bebi Romanée-Conti com um ar blasé significa que posso... Atualmente, esta garrafa custa uns 25 mil euros."

Como era o vinho há 30 anos?
Vendia-se muito vinho de garrafão e era do Dão. Lembro-me de vinhos do Dão engarrafados — “engarrafonados” era o termo que se usava. Ia-se muito comprar às adegas cooperativas e aos produtores (eu próprio comprei a um produtor na zona de Aveiras e depois engarrafei em casa, martelei as rolhas e coloquei as etiquetas com o ano da colheita, isto antes de escrever sobre vinhos — não é de um dia para o outro que se começa a escrever sobre vinhos, essa mania já lá estava). Era muito vinho a granel, vinhos muito baratos. Os vinhos engarrafados eram sempre em dias de festa. Quando era miúdo, quando a minha mãe fazia anos ou no Natal, o meu pai comprava Grandjó — um vinho doce banal, mas a minha mãe gostava. Fora isso, bebia-se lá em casa vinho que se comprava não sei onde, em garrafão.

E um pouco mais tarde?
Quando comecei a ir a restaurantes aí pelos 18, 19, 20 anos, as cartas de vinhos eram muito limitadas, eram sempre os mesmo vinhos. Aqui em Lisboa havia algumas marcas que estavam sempre em todos os restaurantes, algumas delas já não existem, mas que eu gostava muito. Lembro-me de uma de que gostava muito, que era o Monopólio branco — um vinho da Constantino, que já tinha sido comprada pela Sogrape, mas que continuava a dizer Constantino no rótulo, era um belíssimo vinho, sem denominação de origem. Lembro-me do Romeira, um vinho que seria de Lisboa, mas não havia região demarcada na altura; era um vinho que já se produzia em muita quantidade. Outra marca que reapareceu agora, mas que na altura era do Abel Pereira da Fonseca, que se chamava Quinta do Convento. Havia Colares antigos nos restaurantes. Havia esse tipo de coisas, mas a oferta era relativamente limitada.

Em 30 anos o paradigma mudou completamente e na altura a oferta era muito limitada. O que é que te fez escrever sobre vinhos?
Nunca pensei nisso. Eu era professor de História, era professor de guitarra, tinha outras atividades. Para mim isto era um hobby. Antes de começar a escrever fui desenvolvendo durante 15 anos essa apetência pelo vinho. Comprava as garrafas, tirava os rótulos e colava-os em dossiers (antigamente, os rótulos saíam facilmente). Comprava o Jornal de Vinhos que saía uma vez por mês. Lia aquilo, babava-me a ler aquilo. Nunca pensei: “Atenção, está aqui o meu futuro”.

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

A primeira crónica foi por iniciativa tua?
Foi. Sentia que, como consumidor, já tinha alguma sensibilidade para o assunto. Um jornal destes [Jornal de Vinhos] devia ter sempre uma página do consumidor. Tanto que foi atribuída a essa coluna o nome “Tribuna do Enófilo” (alguém que bebe e que escreve). Gostaram do que escrevi e, eventualmente por mérito da forma como escrevia ou por ser mais engraçado, pediram-me a segunda. À terceira, em março, fui convidado para ir trabalhar com o jornal. Comecei a ir a provas, a fazer reportagens em garrafeiras, etc… Em agosto de 1989 mandaram-me para o Douro fazer uma reportagem sobre as vindimas, e eu completamente aos bonés, não sabia ao que ia, mas lá fui. Nesse aspeto, a coisa foi crescendo, demorou algum tempo. Depois saí de professor porque fui convidado para ser assessor de imprensa de um secretário de estado. A coisa foi crescendo. Quando se pôs a questão de sair do ministério ainda fui para outros institutos do Ministério da Educação. Quando chegou aquela hora fatal — ou uma coisa ou outra — não voltei para a escola. Até hoje não me arrependi nem 5 segundos, foi mesmo uma coisa definitiva, em crescendo. Assim como foi em descrescendo o facto de que deixar de ser professor de guitarra, não deixei de um dia para o outro. Fui tendo cada vez menos alunos porque tinha menos tempo; depois, quando esse último aluno passou para o nível seguinte, em que já não tinha condições para dar aulas, abandonei. E foi tranquilo. Nunca mais toquei, tenho uma guitarra ótima. Oiço na mesma. Tenho uma boa coleção de discos de guitarra clássica, mas não me passa pela cabeça pôr-me a fazer escalas. Já passou.

Sobretudo lá fora, temos a sensação de que um crítico de vinhos pode destruir ou construir uma marca. Em Portugal acontece o mesmo? Um crítico com a tua carreira tem o mesmo poder?
Epá… Acho que isso pode acontecer, mas tem de ser ter muito cuidado com o que se está a fazer, porque podemos estar a ser tremendamente injustos. Por exemplo, o vinho pode não estar bom, ser um problema de rolha e não cheirar a rolha. Isso aí… entramos num canudo porque vamos dizer que o vinho não presta, que é uma porcaria, que está mal feito e o problema é da rolha, só que como não é TCA, aquele cheiro clássico, achamos que é defeito do vinho. Temos de provar várias vezes, temos de falar com o produtor e dizer que o vinho não está bom, temos de ter cuidado porque podemos estar a ser tremendamente injustos.

Confesso que não vejo em Portugal muitas pessoas a fazerem isso ou a terem a credibilidade para fazerem isso. Agora, é evidente que se pode ter sempre um critério de apreciação. Lembro-me que uma vez a Decanter fez uma prova de 100 vinhos do Douro. Cem, não foram poucos! Em 100º lugar ficou um dos vinhos mais famosos e caros do Douro. Azar. Não gostaram, acharam que o vinho estava desfasado da região, do estilo Douro, e classificaram-no muito mal. Eles [os editores da revista] ficaram um bocadinho incomodados, mas tiro-lhes o chapéu por não terem tirado o vinho da prova. Ficou em 100ª lugar, mas depois escreveram “Gostamos muito deste vinho, mas neste conjunto de prova, em que o estilo da região é este e este, o vinho sai de tal forma fora que foi mal classificado”. Nas comissões vitivinícolas há vinhos que são chumbados por não terem o perfil da região, apesar das castas serem autorizadas. Falta aqui um trabalho mais profissional, mesmo ao nível das CVR…

Referes-te às câmaras de provador?
Tem de se dar formação a quem prova nas câmaras para que percebam que tipo de vinhos podem encontrar. Imagina um vinho da casta Cachorrinho. Vai à câmara de provadores e o vinho é chumbado por “não ter características do Dão”. Mas, depois, vais ver aos estatutos e Cachorrinho é uma casta autorizada. Se está tudo legal, não se pode dizer que não se aprova. Não se pode, só se o vinho estiver estragado. “Ah e tal, não é o estilo”. Vão-se lixar com o estilo. Se a casta está prevista na região, se cumpriu todas as formalidades prévias até chegar à câmara de provadores, a câmara de provadores, meus caros, só pode dizer “está bom ou não está bom”. Não é “não gosto, não é o estilo, não se insere…” Há muita gente que ainda trabalha assim. Estive agora nos Açores onde esse problema existiu, já existiu na Bairrada e existe em quase todas as regiões. Às vezes há assim uns laivos…

Nesse sentido, o que achas dos Reservas que são vendidos a 3 e 4 euros?
É fácil passar por reserva. Não precisa de ter uma classificação muito alta. Eu acho isso miserável e a única solução é seguirmos, de certa forma, o exemplo espanhol, em que para se chamar Reserva ou Grande Reserva obriga a um tempo de estágio mais prolongado. As palavras Reserva e Grande Reserva, que ainda por cima no caso de Espanha obriga a estágio em barrica, dão alguma garantia ao consumidor. Agora, se vamos só pelas classificações das câmaras de provadores, verifica-se esta situação que é uma desgraça, em que as classificações não têm valor nenhum, como de resto as denominações de origem também não. Chamar um Vinho Regional Alentejano ou Alentejo… não sei se os consumidores valorizam essa diferença, ou seja, se dão mais valor por se chamar Alentejo ou porque se chama Malhadinha. Estou a pensar num vinho que está fora de regiões. Ou que se chama Casa Santa Vitória. São todos vinhos regionais. Ou Herdade dos Grous… São produtores daquela zona sul do Alentejo, em que ninguém pode fazer um vinho com denominação Alentejo, não há denominação Alentejo ali. E a pessoa compra Malhadinha porque é Malhadinha ou porque é Regional Alentejano ou Alentejo? Ou seja, descaracterizou-se de tal forma a designação Regional e Alentejo que , hoje, as pessoas compram pelo nome do produtor, pela casta, pelo enólogo ou pelo rótulo. Estamos a perder terreno porque não estamos a dar valor àquilo que é a denominação de origem. A Bairrada é um pouco a mesma coisa. Antigamente, se um vinho não tivesse baga não podia ser Bairrada. Depois, a certa altura, aquilo entrou num canudo tal, num funil, que a Bairrada ficou a zeros e, então, abriram os estatutos — tudo o que se produzia na Bairrada é Bairrada, nem que seja 100% Merlot. Isto é recente. Por outro lado, criou-se a designação “Bairrada Clássico”, mas que só obriga a 50% de Baga — agora misturem mais 50% de Cabernet e vamos ver onde está a característica do clássico.

"Algumas vezes fui bastante mordaz na análise que era vinculada nos contra-rótulos. É com cada disparate que as pessoas se lembram de escrever -- é evidente que no contra-rótulo o produtor escreve o que quiser e a CVR só tem de aprovar. Havia muitos disparates nos contra-rótulos, informação deturpada. Houve alguns produtores que não gostaram, de facto, da minha critica."

Já criaste inimigos ou perdeste amigos por causa do teu trabalho?
Houve alguns que ficaram um bocado zangados comigo até hoje, mas depois também já não produzem vinho [risos]… Ou produzem, mas ninguém sabe quem eles são. Houve pessoas que não gostaram daquilo que escrevi. Algumas vezes fui bastante mordaz na análise que era vinculada nos contra-rótulos. É com cada disparate que as pessoas se lembram de escrever — é evidente que no contra-rótulo o produtor escreve o que quiser e a CVR (Comissão Vitivinícola Regional) só tem de aprovar. Houve alguns produtores que não gostaram, de facto, da minha critica. Uns foram bastante cordatos. Houve uma grande empresa de vinhos em Portugal em que eu disse mal de um vinho branco deles, e eles não foram de modas e compraram 12 garrafas daquele vinho no mercado, cada uma comprada em seu supermercado e loja, com o ticket da caixa colado à garrafa. Mandaram-me as 12 garrafas para eu provar outra vez. Tiveram azar que, das 12, sete estavam iguais às que eu tinha dito mal. Mas achei uma atitude bastante civilizada. Às vezes, queixam-se mais de mim do que se vêm queixar a mim. Venho a saber que o gajo ficou furioso e tal. Não tenho nenhuma pretensão como vi uma vez, numa entrevista, o Robert Parker dizer que nunca modificou a opinião de uma nota de prova que tivesse dado na vida. Acho isto de um pretensiosismo parvo. Não estou a dizer que estou sempre correto mas, a maior parte das vezes em que disse mal, eu tinha razão. Tive sempre esse cuidado: ter a certeza do que o que estava a dizer estava certo. Cheguei a ser posto em tribunal por uma enóloga que não gostou de eu ter dito o que disse. Se calhar, se fosse hoje, não teria escrito exatamente com as mesmas palavras, tinha dito a mesma coisa mas com outras palavras. Ela não gostou que eu escrevesse: “A arte de fazer mau vinho ainda não morreu”. Azar, o vinho era porcaria!

Esse vinho ainda está à venda?
Por acaso agora está outra vez à venda, mas ela já não trabalha lá — era de uma cooperativa do Ribatejo. Quando fui posto em tribunal não era tão evidente como isso que eu pudesse ganhar a causa porque ela invocava agressão de carácter — não é agressão que se diz…

Injúria, calúnia, por aí?
Sim, calúnia. Havia outra hipótese, de dizer que a minha função é provar: eu provei, não gostei e disse que não gostei. Eu não disse que ela era uma filha da mãe, disse era que o vinho não prestava. Nem a conhecia, não a ataquei pessoalmente. Foi por aí que a juíza decidiu — vim a saber que era Ana Peres, muito famosa que andou aí metida nos processos Casa Pia. A enóloga recorreu para a relação e eu ganhei outra vez. A parte curiosa é que o despacho da relação fez jurisprudência — sobre este assunto não havia legislação própria. A partir daqui o despacho da relação do meu caso servirá de modelo se for preciso. Fiquei todo inchado. De facto, o vinho era uma miséria e achar que se põe vinho na rua que é uma miséria e que os consumidores são todos parvos porque é da adega cooperativa A ou B, não pode ser… Mandaram-me o vinho para provas e eu disse que era uma desgraça.

Sentes que tens poder sobre o consumidor?
Não tenho um feedback muito habitual dos consumidores, mas com alguma frequência escrevem-me para o meu site e escrevem posts a dizer: “Provei não sei o quê, concordo plenamente com a sua nota de prova”, etc. Os livros que fiz… Sempre tive a preocupação de fazer uma apreciação que pudesse ser entendida pelo consumidor, ou seja, que não fosse uma linguagem tão hermética e tão distante daquilo que é a capacidade de o leitor perceber num vinho, que o afastasse. Se eu vou dizer que aquele vinho cheira a uma banana que existe só em Madagáscar, que por acaso provei mas que mais ninguém no mundo provou, isso não faz de mim melhor provador, faz de mim um pateta. Estou a puxar os galões de uma coisa que não serve para nada para um consumidor. Portanto, em vez de dizer que o vinho cheira a uma banana que existe em Madagáscar ou a uma pera que provei no Chile, vou dizer se o vinho está bom para beber, se é um vinho muito encorpado, se deve ou não ser guardado, se pode ser bebido já… Esse tipo de informações é que são úteis. Se eu descobrir que é um Gewürztraminer que cheira a rosas, vou escrever que cheira a rosas. Se for capaz de captar determinado aroma, eu digo. Mas não é uma coisa que me preocupe por aí além. Às vezes fico irritado porque são aromas que já conheço e tenho de puxar pela base de dados a ver se me lembro que aroma é aquele, mas não me tira o sono. Acho que alguma crítica em Portugal que veio depois de mim, até para se demarcar da minha forma de provar, entrou nesse delírio de escritores aromáticos com dez e 15 descritores que são falsos…

"De facto, o vinho era uma miséria e achar que se põe vinho na rua que é uma miséria e que os consumidores são todos parvos porque é da adega cooperativa A ou B, não pode ser... Mandaram-me o vinho para provas e eu disse que era uma desgraça."

Como por exemplo? O que será um descritor falso?
É descobrir aromas que não estão lá. Porque repara uma coisa: cheiras um vinho e alguém diz “Isto cheira a mentol” e a ti não te cheira. Quem é que tem razão? Se eu cheirar a mentol e a pessoa não cheirar, tenho a certeza de que tenho razão porque, de tal forma já cheirei várias vezes aquele aroma, que eu sei que tem lá… Se a pessoa não descobrir é normal, porque não está tão habituada a provar como eu. Se eu descobrir um aroma qualquer estranhíssimo, uma coisa de folhas de rosa já amachucadas levemente fumadas… Não sei o que é que isto quer dizer, mas já vi coisas destas em notas de provas.

Numa entrevista à Sábado, de 2017, falaste em “tonterias pegadas”. Existe muito isso no mundo do vinho?
Acho que já existiu mais. Talvez os críticos tenham percebido que é um caminho que não tem interesse nenhum para o consumidor. Das duas, uma: ou estou a escrever para o consumidor ou estou a escrever para prazer próprio, para me ver ao espelho — “Estás a ver? És uma grande provador”. Nunca quis entrar por aí e também não era capaz. Se calhar, não tenho capacidades olfativas para isso. Nós, críticos de vinho, ao pé de um perfumistas somos uns aprendizes. Um perfumista deteta 500 aromas, por amor de Deus, nós não chegamos lá. Não adianta de nada entrar nesse campo porque não é útil.

Uma das tuas alcunhas é “Papa dos Vinhos”…
Essa alcunha… o culpado disso é o Presidente da República, ele é que disse que eu era o “Papa dos Vinhos” e, a partir daí, as pessoas…

E se pudesses escolher uma alcunha?
Opá, essa não. Preferia que me chamassem aquilo que um dia chamaram ao Fernando Nicolau de Almeida [criador do Barca Velha]. O Fernando Nicolau de Almeida foi a um produtor a quem comprava vinhos e cheirou lá um tonel e disse: “Este vinho não quero levar, está estragado”. O produtor ficou danado… Quando esse produtor foi a esvaziar o tonel, descobriu que o tonel tinha trapos no fundo que tinham dado cheiro a mofo ao vinho. Então, entrou na [produtora] Ferreira e perguntou: “Onde é que está o cheirista?”. Foi dizer-lhe que, afinal, ele tinha razão. Preferia que me chamassem cheirista do que Papa dos vinhos.

Barca Velha. Ou a história de como nascem os grandes vinhos

Já aconteceu seres reconhecido na rua?
Poucas vezes, em lojas e tal. “A sua cara não me é estranha”. Uma vez foi no [restaurante] Conventual, na Praça das Flores, quando ainda se chamava assim. Estava com uma pessoa que pediu peixe e eu pedi carne. Comentei que era preciso encontrar um equilíbrio, um vinho que desse para peixe e para carne e, depois, pedi o vinho. O empregado de mesa foi lá dentro, voltou e perguntou-me: “Desculpe lá, não é o senhor João Paulo Martins?”. Tinha ido ao livro ver a fotografia. Isso acontece algumas vezes. Eu vou na boa, ninguém sabe quem eu sou.

E pedem-te conselhos?
Família e amigos telefonam muito: “Estou no supermercado, tenho não sei o quê, só quero gastar 5 ou 6 euros, o que é que compro?”. Respondo: “Vai dizendo o que está aí e eu depois digo-te o que vale a pena”. Às vezes, as pessoas escrevem posts a perguntar: “O que me aconselha para o peru?” É uma coisa que me põe doente, não gosto nada de peru. Costumo dizer: “Meu caro, para peru qualquer coisa serve”.

"Se eu vou dizer que aquele vinho cheira a uma banana que existe só em Madagáscar, que por acaso provei mas que mais ninguém no mundo provou, isso não faz de mim melhor provador, faz de mim um pateta."

Quem é que tem razão, o consumidor ou o crítico?
O crítico pode ter razão e o consumidor não ter. Às vezes, o consumidor bebe qualquer coisa. Ao crítico cabe o papel de dizer que determinado vinho tem estas características, que merece melhor classificação por isto e pior por aquilo. Pode acontecer o consumidor dizer: “Deste má nota, mas o vinho é muito bom”. O crítico não se pode deixar levar na conversa do consumidor, tem de estar distante, assim como tem de estar distante dos produtores. Às vezes não é fácil, mas tenho de ser capaz de provar vinhos de pessoas que, ao fim destes 30 anos, acabaram por ser meus amigos. Se eu não gostar muito, ou não achar que o vinho está bom, tenho de o dizer. E fui capaz. Um deles, que é meu amigo desde que comecei a trabalhar nos vinhos, que é o Dirk Niepoort, às tantas disse-me: “Não te vou dar a provar, tu não gostas dos meus vinhos”. Não é verdade. Não gosto é da mesma forma que ele, nem gosto de todos os que ele gosta. Mas quando gosto, digo maravilhas porque vale a pena.

O vinho que mais gostamos é sempre o melhor vinho?
Pode ser, normalmente o vinho de que mais gostamos é um vinho de relação com o momento, com as pessoas, com a ocasião. Soube tão bem, tão bem, que a pessoa fica com aquele vinho na cabeça até hoje.

Dirk Niepoort: “As pessoas acham que eu sou maluco”

O que achas do consumo de vinhos que se faz nos supermercados por oposição às garrafeiras?
As garrafeiras têm um papel fundamental porque têm de vender os vinhos que não têm produção suficiente para serem vendidos em grandes superfícies. A máquina das grandes superfícies é muito trituradora. Dizem ao produtor: “Sim senhor, o seu vinho vai ficar em linha. Mas, se vender, tem de abastecer um contentor por mês”. E o produtor tem de ter um contentor por mês. Depois, aqueles descontos todos que as grandes superfícies [fazem], tudo aquilo recai em cima do produtor. O produtor tem de vender muito na grande superfície para ter algum lucro. Muitas vezes, é mais para escoar stocks, acho eu, do que para fazer lucro. Portanto, para quem tem produções mais pequenas e vinhos em valores mais altos o supermercado não é o local ideal de venda, é a garrafeira. Em princípio, as pessoas das garrafeiras têm muito mais critério, conhecem os vinhos que têm à venda e são capazes de responder às perguntas do consumidor. São duas coisas que não se excluem, nem pensar. Agora, que é verdade que mais de 90% do negócio do vinho se faz na grande superfície, é. É o que as pessoas podem comprar.

"Às vezes não é fácil, mas tenho de ser capaz de provar vinhos de pessoas que, ao fim destes 30 anos, acabaram por ser meus amigos. Se eu não gostar muito, ou não achar que o vinho está bom, tenho de o dizer. E fui capaz. Um deles, que é meu amigo desde que comecei a trabalhar nos vinhos, que é o Dirk Niepoort, às tantas disse-me: "Não te vou dar a provar, tu não gostas dos meus vinhos". Não é verdade." 

Convidava-te a comentar a crónica — “O mistério ardiloso dos descontos de 70%” — do Edgardo Pacheco, no Jornal de Negócios, sobre os descontos praticados em algumas superfícies.
Acho que ele fez muito bem em pôr o dedo na ferida. As grandes superfícies muitas vezes atuam com alguma autoridade e fazem tudo o que lhes vem à cabeça. Portanto, acho que o negócio das grandes superfícies precisava de mais supervisão. É como os bancos, têm de ter supervisão do Banco de Portugal. Não pode ser, não se pode partir do princípio que enganar o consumidor é uma boa prática de venda. Provavelmente, algumas grandes superfícies não correspondem àquilo que ele escreveu, mas tem de se escrever. Como há outras coisas que tinham de se escrever, mas que é difícil de arranjar provas ou análises.  Se as pessoas soubessem o que vai para aí na produção industrial de fruta, especialmente da chamada fruta fora de época, é uma coisa horrível… Nem sempre é fácil demonstrar isso. A mesma coisa tendo em conta a produção de azeite em olival super intensivo, etc. Há muita coisa com a qual se deveria ter mais cuidado e dar mais informação ao consumidor, para que o consumidor soubesse mesmo o que está a comprar. Esse é um trabalho de laboratório, que tem de ser feito pelas entidades que supervisionam a qualidade do que estamos a consumir.

Há desinformação? Isso faz-me lembrar a história dos sulfitos, que são conservantes e estão presentes em vários alimentos além do vinho…
Quase todos os alimentos que estão embalados têm de ter sulfitos, têm de ter conservantes, caso contrário estragam-se. Quer dizer, acho ótimo que as pessoas digam que não querem beber vinhos com sulfitos e, depois, sentam-se em frente à televisão a beber cervejas e a comer amendoins. Vão lá ver ao pacote de amendoins o que lá tem de sulfitos. Acho a questão dos sulfitos um bocadinho primitiva. Agora, abusar de vinhos com muito sulfitos porque o sulfuroso é adicionado na altura do engarrafamento… Se estou a beber o vinho 15 depois de ter sido engarrafado, é provável que tenha muito sulfuroso. Aquilo depois dilui-se com o tempo e mistura-se com o vinho, perde esse feito nocivo. Se calhar, o produtor não deve pôr o vinho à venda uma semana depois de o engarrafar — há que haver um espaço de um mês ou dois.

És apologistas de os produtores guardarem vinho para serem lançados mais tarde no mercado?
Sou, sou, acho que isso é um mérito que os produtores têm, que vale a pena ser mantido. Os vinhos com anos em cima são a história do produtor. Se há coisa com que fico doente é quando vamos a um produtor, pensamos em fazer umas provas e ele diz: “Deste, deste e deste já não tenho nem uma única garrafa”. Acho isto uma coisa… incrível, inadmissível! O produtor tem de ter história para contar, para mostrar. Mesmo as empresas grandes, como a Sogrape, que há uns anos começou a guardar vinhos que não são para venda. A José Maria da Fonseca já tem essa ideia há muitos anos — tem vinhos em arquivo, alguns deles já não vão ser bebidos por esta geração.

"As grandes superfícies muitas vezes atuam com alguma autoridade e fazem tudo o que lhes vem à cabeça. Portanto, acho que o negócio das grandes superfícies precisava de mais supervisão. É como os bancos, têm de ter supervisão do Banco de Portugal. Não pode ser, não se pode partir do princípio que enganar o consumidor é uma boa prática de venda."

Por falar em arquivos, também tens um arquivo próprio?
Tenho um arquivo de garrafas vazias, já esgotei o espaço para garrafas vazias.

Tens algum ano de colheita especial?
Quando comecei [a trabalhar nos vinhos] tinha saído a público há pouco tempo um Vinho do Porto fabuloso, ainda hoje é fabuloso: o vintage 85. Depois, não sei, não tenho presente uma ideia especial, de um ano que fosse especialmente melhor do que os outros. Tive de aprender a gostar de champanhe, uma coisa que ao princípio não dava grande valor. Tive que aprender a provar Vinhos da Madeira, que são de facto vinhos muito difíceis. É muito habitual o consumidor torcer o nariz ao princípio porque são vinhos, de facto, torcidos, cheios de arestas, quase incomodativos, mas com uma garra e personalidade incríveis. Hoje valorizo vinhos [de mesa] mais elegantes, mais finos… E gosto mais de vinhos velhos agora do que gostava quando comecei.

O que achas que vamos estar a beber daqui a 30 anos?
É o Vinho da Madeira. Daqui a 100 anos será bom, daqui a 200 também. Bebi uma única vez na vida um Vinho da Madeira de finais de século XVIII… tive a nítida sensação de que se passarem mais 100 anos o vinho vai estar igual. É a sensação de que aquilo não vai mudar nunca. Este tipo de vinhos são mais ou menos eternos. Agora, a gente espera que as região tenham o bom senso de precaver o futuro. Não se pode modificar o estilo do Vinho do Porto porque o consumidor não gosta de vinhos doces. Se formos por aí, vamos matar o Vinho do Porto. Há coisas que devemos mudar tendo em conta o que o consumidor gosta, há outras que são princípios. Penso que se vai beber vinho bom, vai haver uma ainda maior globalização do vinho, vamos estar mais habituados do que estamos hoje a beber vinhos dos quatro cantos do mundo. Já não vou estar cá para ver, mas espero que não sejamos muito massacrados com vinho chinês. Eles, neste momento, já produzem mais do que Portugal. Ainda não estão a produzir nada de muito interessante, mas já bebi um vinho do Nepal muito bem feito, perigosamente bem feito, em altitude (mas era uma empresa francesa, que tinha lá um técnico, uma coisa pequena, mas que gostava uns 150 dólares). Gostava que continuássemos capazes de manter a tradição das velhas regiões vitícolas, mas não sei.

Tens receio que possa ser um problema no futuro?
Acho que pode ser, porque com as alterações climáticas, a mudança de paradigma do que é que que se produz e não se produz, as novas doenças… tudo isso vai mexer com a viticultura. Vamos ter de saber adaptar-nos a uma nova viticultura com novas condições climáticas. Já se produz vinho na Inglaterra, qualquer dia estão a plantar vinhas na Noruega. Qualquer dia o sul da Europa não vai conseguir produzir vinho porque é um deserto. Espero que as campanha anti-álcool não sejam tão fortes que nos façam deixar de beber.

"É o Vinho da Madeira. Daqui a 100 anos será bom, daqui a 200 também. Bebi uma única vez na vida um Vinho da Madeira de finais de século XVIII... tive a nítida sensação de que se passarem mais 100 anos o vinho vai estar igual. É a sensação de que aquilo não vai mudar nunca. Este tipo de vinhos são vinhos mais ou menos eternos."

Falta-te beber algum vinho em particular?
Português acho que não, assim que eu me lembre. Dos estrangeiros, há países que conheço mal os vinhos, é o caso de Itália. Conheço um bocadinho melhor os vinhos de Espanha, mas não ao ponto de dizer que conheço bem. De França gostaria de conhecer melhor algumas regiões que eu ainda conheço não suficientemente bem, como a Cote du Rhône ou os vinhos do Loire. Eu sei que não são os vinhos mais prestigiados do mundo, que a malta quer comprar à maluca, pelos quais está disposto a pagar fortunas. Não são. Mas interessa-me mais esses vinhos que não são feitos com as castas da moda, são outras coisas que também valem a pena ser conhecidas. Se eu pudesse bebia Borgonha e champanhe todos os dias, mas pronto…

Que legado gostavas de deixar?
Legado [vinho da Sogrape] tenho duas garrafas [risos]. A única coisa que tenho o prazer de afirmar é que acho que, de alguma forma, contribuí para uma melhor forma de apreciar os vinhos em Portugal nos últimos 30 anos. Não estive sozinho: o Luís [Lopes, diretor da revista Grandes Escolhas] começou pouco tempo depois de mim. Pouco tempo depois juntámos os trapinhos, andamos nisto há muitos anos e temos sido responsáveis pela melhoria do consumo, pela melhoria do interesse por regiões, castas, copos, garrafeiras, marcas e estilos de vinhos. É um trabalho que alguém tinha de o fazer e nós tivemos esse mérito. Quando começámos, nem ele nem eu, sabíamos tanto da poda como isso, mas aprendemos. Fomos estudando e, com algum bom senso, fomos marcando pontos naquilo que era importante na relação com o consumidor. Inevitavelmente, acho que eu, ele e mais dois ou três, vamos ficar responsáveis por esse papel que tivemos em Portugal na melhoria consumo do vinho.

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