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Amica, Milan, 1982
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Amica, Milan, 1982

Helmut Newton Estate

Amica, Milan, 1982

Helmut Newton Estate

Helmut Newton. 100 anos de um mestre fetichista

Helmut nasceu há 100 anos. O erotismo das suas imagens valeu-lhe o rótulo de provocador, mas também o de misógino. Das estrelas nuas ao mau gosto, recordamos o "enfant terrible" da fotografia de moda.

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“Podemos olhar para qualquer imagem e dizer: ‘Isto é uma fotografia do Helmut Newton’. Não há muito fotógrafos sobre os quais se possa dizer isto”. As palavras são da omnipotente Anna Wintour em “Helmut Newton: The Bad and the Beautiful”, documentário lançado este verão, exibido apenas em cinemas virtuais.

Depois de uns quantos coffee table books, é lógico ver a obra (e a vida) do fotógrafo chegar ao grande ecrã. Ao mesmo tempo que foi, durante décadas, um talento itinerante, Newton, nascido na Alemanha, criou a sua própria linguagem, um tom inequívoco que fascinou o mundo da moda, mas igualmente capaz de provocar choque e suscitar reprovação.

Trabalhou quase exclusivamente em torno do corpo feminino. Se o degradou ou não, as opiniões dividem-se, embora o veredito de grande parte das mulheres que fotografou, muitas vezes nuas, prostradas e no papel de implacáveis dominadoras (noutras ocasiões eram humildes dominadas), seja de um empoderamento difícil de igualar. Helmut Newton amava-as mais do que tudo, ao ponto de fazer da figura masculina um mero acessório cénico.

Morreu a 23 de janeiro de 2004, depois de ter perdido o controlo do carro que conduzia em Marmont Lane, Los Angeles. Na mesma viatura seguia June, ex-atriz australiana e companheira de uma vida, que sobreviveu ao acidente. Newton tinha 83 anos. Desses, mais de seis décadas foram passadas com a câmara na mão.

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Helmut, o fotógrafo que correu o mundo

É ano de centenário. Helmut Neustädter (sobrenome original) nasceu a 31 de outubro de 1920. A família era de classe média e morou em diferentes zonas de Berlim. Entrou para a Escola Americana aos 12 anos, a mesma idade com que comprou a primeira câmara e em que desenvolveu uma paixão platónica pela diva Marlene Dietrich. Conheceu-a anos mais tarde, em Nova Iorque, mas nunca chegou a fotografá-la. Em 2004, as suas cinzas acabariam por ser depositadas a poucos metros de distância da atriz, num cemitério da capital alemã.

Com 17 anos, entrou num estúdio de fotografia como aprendiz. Trabalhou com Yva, nome artístico da alemã Else Simon, conhecida pelas imagens teatrais e pelos nus, mas também por recorrer à técnica da exposição múltipla. Mas no final dos anos 30, a Alemanha tinha-se tornado um local perigoso para os judeus. “Cresci com a noção de que, se atravessasse a rua com o sinal vermelho, os nazis podiam apanhar-me”, desabafou mais tarde, como cita o novo documentário.

Autorretrato, Monte Carlo, 1993

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Em 1938, a instabilidade levou-o a abandonar o país. Via Itália, chegou a Singapura com duas câmaras fotográficas na bagagem, conseguindo o primeiro emprego no The Straits Times. Rebenta a Segunda Guerra Mundial e, em 1940, Helmut aterra na Austrália, onde serve no exército durante cinco anos. Terminado o conflito, conquista a cidadania australiana.

É em Sydney que conhece June Browne, atriz, fotógrafa e mulher de muitas identidades (na representação era conhecida como June Brunell, mais tarde viria a fotografar sob o pseudónimo Alice Springs). Cerca de um ano depois do primeiro encontro, casam-se. Como modelo, mas também como braço direito, ela desempenha um papel importante na definição do estilo de Newton — a modelo ganha uma dimensão performática, tornando-se também atriz, ao mesmo tempo que June põe ao serviço do marido o seu conhecimento de iluminação e cenografia. Mais tarde, Browne viria ainda a ser responsável por treinar as modelos para as mais arrojadas sessões de Helmut.

O casal fixou-se na Austrália, onde começou a trabalhar como fotógrafo de moda, embora as viagens à Europa fossem algo frequentes. Em 1956, numa prolongada estadia em Londres, assinou um contrato de um ano com a Vogue Britânica. A colaboração não chegou ao fim e, depois de uma passagem por Paris, regressou a Melbourne onde começou a trabalhar regularmente para a edição australiana da mesma revista.

Mas o apelo da capital francesa falaria mais alto com a chegada dos anos 60. Nessa altura, Newton torna-se colaborador a tempo inteiro da Vogue Paris (de onde acabaria por ser despedido) e muda-se para um apartamento no Marais. Vogue Britânica, Queen, Elle, Nova, Marie Claire, Stern e Playboy — as portas do mundo editorial abriram-se para Helmut Newton e, no romper da década de 70, não só o seu nome já era um dos mais consagrados da indústria, como o seu trabalho assumia notoriedade numa perspetiva artística e conceptual.

“O mais importante é eu gostar [da fotografia]”, admitiu o próprio, revelando uma liberdade e uma determinação autoral que acabou por destacá-lo de uma contexto puramente comercial. Foi ainda nos anos 70, a partir da segunda metade, que chegou às galerias (havia uma  consonância da sua estética com o trabalho do artista britânico Allen Jones). Paris, Nova Iorque e Amesterdão foram as primeiras cidades a receber exposições de Newton. Pouco tempo depois, estreou-se no Japão, onde as suas temáticas fetichistas fizeram especial sucesso.

Stern, Los Angeles, 1980

Helmut Newton Estate

No início dos anos 80, Helmut e June deixam Paris e mudam-se para o Mónaco. Entre a Europa e Los Angeles, onde passavam os invernos, mantiveram-se ativos na fotografia. A década de 90 foi, para Newton, recheada de prémios e condecorações. Em França, ganhou o Grand Prix National de la Photographie (1990) e foi nomeado pelo Ministério da Cultura Commandeur de L’Ordre des Arts et Lettres (1996). Na Alemanha, foi agraciado com a Das Grosse Bundesverdienstkreuz (1992), o equivalente à Grã-Cruz da Ordem do Mérito.

Erotismo e fetichismo. Newton, um génio “atraído pelo mau gosto”

As palavras são do próprio. Numa rara entrevista à Thames Television, em 1978, revelou ser o grande provocador da sua geração, um verdadeiro enfant terrible quando comparado com outros gigantes da fotografia de moda do século XX como Irving Penn e Richard Avedon, ambos seus contemporâneos. “Adoro a vulgaridade. Sou muito atraído pelo mau gosto — é muito mais entusiasmante do que o suposto bom gosto, que não passa de uma forma normalizada de olhar para as coisas”, afirmou.

Rue Aubriot, Vogue Paris, Paris, 1975 (com o Le Smoking de Yves Saint Laurent)

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A nudez feminina foi uma espécie de base de partida para, ao longo das décadas, dar largas a uma mão cheia de fantasias — dos fatos de látex, amarras e répteis (o perigo espreitava em quase todas as esquinas no universo de Newton) a referências bem mais subtis como o cigarro (elemento fálico quase sempre colocado na mão ou na boca da modelo), o olhar tenso e frio e ao jogo entre masculino e feminino, que parece derivar da imagem andrógina e superior de Dietrich.

Dominadores e submissos foram papéis frequentes na obra de Newton, que chegou mesmo a admitir que transportava sempre correntes e cadeados na bagageira do carro. O impulso fetichista salta à vista em imagens como a de Claudia Schiffer a subjugar uma empregada de uniforme, a da rapariga fotografada numa cama de hotel com uma cela sobre as costas ou mesmo a da jovem Isabella Rossellini vulnerável ao toque do realizador, e marido, David Lynch.

“As imagens têm um ar ameaçador, mas há sempre um sentido de humor”, afirma Rossellini durante o documentário, dando o mote para mais uma ronda pela obra do fotógrafo — Nastassja Kinski a amamentar um boneca com o rosto semelhante ao de Marlene Dietrich, o corpo de uma mulher a ser engolido por um crocodilo ou as mãos que que desmembram um frango assado, adornadas de joias Bulgari.

Dentro do mundo da moda, Helmut desenvolveu afinidades. Le Smoking, a silhueta masculinizada e simultaneamente sensual desenhada por Yves Saint Laurent em 1966, ficou para sempre colada à fotografia que Newton produziu nove anos mais tarde, para a Vogue Paris. Em 1979, designer e fotógrafo viriam a produzir uma nova imagem icónica, repleta de tensão sexual entre duas mulheres. Também Karl Lagerfeld era um amigo chegado. A relação entre os dois resultou numa extensa série de retratos do designer.

Sem título (Chicken), Vogue Paris, Paris, 1994

Helmut Newton Estate

“Tudo o que é bonito é falso. A relva mais viçosa é a de plástico”, afirmou Newton na mesma entrevista de 1978. A encenação e a artificialidade faziam parte do processo e distinguiam a sua linguagem da de outros nomes proeminentes na fotografia de moda. Quanto a referências, ao longo do tempo, o trabalho Helmut tem sido enquadrado na sequência de obras como as de Adolph de Meyer, Hoyningen-Huene, Edward Steichen, Martin Munkácsi, Erwin Blumenfeld e Horst P. Horst.

Libertação e misoginia?

“O Helmut deu-me uma força interior imensa e se ele não tivesse tirado aquelas fotografias, toda a minha carreira tinha sido diferente”, recorda a atriz Charlotte Rampling, outra das vozes ouvidas no documentário “Helmut Newton: The Bad and the Beautiful”. As imagens a que se refere remontam ao ano de 1974. Numa delas, Ramplig, atualmente com 74 anos, surge totalmente nua, sentada sobre uma mesa, numa sala ornamentada do hotel Nord Pinus II, em Arles.

A sobre-exposição do corpo feminino, a sexualização da mulher, bem como a obsessão com o sadomasoquismo mereceram críticas ao longo dos anos. Susan Sontag, nos Estados Unidos, e Alice Schwarzer, na Alemanha, foram as que mais abertamente atacaram o trabalho do fotógrafo. A primeira chegou mesmo a classificá-lo como misógino num programa de televisão. Por sua vez, Gero von Boehm, o realizador do documentário, recusou-se a “restringir a liberdade da arte”. “É preciso olhar para Newton inserido no período em que estas fotografias foram tiradas”, indicou durante uma entrevista dada em julho.

Evoca a revolução sexual dos anos 60 e 70 como o auge da carreira de Helmut. Coincidentemente, algumas das musas optam por enaltecer o momento em que se despiram à frente da objetiva do fotógrafo como tendo sido de libertação e de empoderamento. Nadja Auermann é uma dessas mulheres, protagonista de algumas das mais controversas imagens do autor. “Quando tens 20 anos, um metro e 80 de altura e cabelo loiro, sentes-te como uma presa de caça. As fotografias do Helmut Newton tornaram-me mais forte. Era eu a controlar a situação. Não era a presa, era o caçador”, comenta a manequim alemã durante o filme. “Podemos dizer que é sexista ou misógino, mas também podemos dizer que é um espelho posto diante da sociedade: e basicamente o que se vê é uma mulher a correr por aí de minissaia e a ser tratada como uma Barbie”, conclui.

Elizabeth Taylor, Los Angeles, 1985

Helmut Newton Estate

Marianne Faithfull, musa dos Rolling Stones e da swinging London, diz ter sido libertada do “pudor das freiras católicas” através da lente de Newton. Muitas outras foram fotografadas por ele — Grace Jones, Sigourney Weaver, Catherine Deneuve, a princesa Carolina do Mónaco, Sophia Loren, Madonna, Jerry Hall, Jane Birkin, Christy Turlington, Elsa Peretti, Elizabeth Taylor entre muitas outras. Mas Helmut não fotografou apenas mulheres. Rostos como Salvador Dali, David Bowie e Andy Warhol ficaram registados para a posteridade, a preto e branco, mas sempre com uma carga dramática subjacente. Atrás da câmara, o mesmo dramatismo foi uma influência notória para uma nova geração de fotógrafos de moda — Steven Meisel, Steven Klein e a dupla Mert & Marcus, entre outros.

Um documentário e duas exposições

Em “Helmut Newton: The Bad and the Beautiful”, título que o realizador pediu emprestado a Vincente Minelli, só se ouvem mulheres, além da voz do próprio protagonista. O naughty boy, como June lhe chamava, venerava-as e usou os seus corpos para contar as mais diversas histórias, do fetiche sexual mais elementar ao trabalho inspirado no grupo terrorista alemão Rote Armee Fraktion, em 1982. “Ele era um anarquista, definitivamente. Derrubou muito do que estava estabelecido na época”, afirmou ainda von Boehm à Deutsche Welle.

“Algumas das coisas que Helmut Newton nos mostrou podem, de facto, ser vistas como más. [Mas] ele costumava contar histórias com segredos por trás ou que nos levavam a pensar que alguma coisa terrível tinha acontecido. Esse é o ‘mau’ do título do documentário”, referiu ainda o realizador.

A Fundação Helmut Newton, inaugurada meses após a sua morte, em Berlim, programou duas exposições para o final de 2020. Aberta ao público desde 9 de outubro, “America 1970s/80s” reúne trabalhos feitos durante a sua passagem pelos Estados Unidos, em particular Nova Iorque e Los Angeles, lado a lado com o dos fotógrafos Evelyn Hofer, Sheila Metzner e Joel Meyerowitz. Para celebrar o centenário do fotógrafo alemão, a mesma fundação inaugura este sábado uma exposição de outdoors a céu aberto. “Helmut Newton One Hundred” vai espalhar 30 imagens do acervo ao longo de um mural com 85 metros. Será o regresso de Newton às ruas de Berlim, um século depois de ter nascido.

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