Hoje e amanhã serão dias de decisões na Liga dos Campeões: ficaremos a saber quem chega à final da máxima competição europeia de clubes, enquanto na quinta-feira conheceremos os nomes dos finalistas da Liga Europa. Uma elevada percentagem dos clubes em disputa estiveram envolvidos na criação de uma SuperLiga que tornaria estas competições inúteis – a ideia durou três dias, tendo sido esmagada pela revolta dos adeptos, mas nada aconteceu aos clubes transgressores.
É provável que ninguém deixe de ver a Champions ou a Europa mesmo que haja clubes transgressores envolvidos – mas, e apesar de para já a Superliga ter sido posta de parte, vale a pena pensar no absurdo da situação em que estamos: os clubes mais ricos da Europa querem disputar uma competição apenas entre clubes convidados, à margem da Uefa, sem descidas nem subidas exceto para cinco clubes que não fizessem parte do grupo inicial, mas fossem chamados para (não há outra forma de o dizer) fazer número.
Tentemos ilustrar o absurdo do mundo contemporâneo com um exemplo aleatório: um músico com um contrato de edição convencional, que lhe proporcionasse 24% do dinheiro obtido com “plays” de canções suas no Spotify, teria de alcançar exatos 100.000 plays por forma a comprar um bilhete de categoria A para um jogo de futebol em casa do Arsenal. Em compensação, o CEO do Spotify (uma empresa tecnológica cujo código consegue a dificílima proeza de fazer play a uma canção e contar quantas vezes a ouviram, algo que me ocuparia uns incríveis 123 minutos numa manhã de domingo) tem dinheiro suficiente para comprar o próprio Arsenal – ou pelo menos assim o anunciou a semana passada, aproveitando a onda de tumulto que se levantou contra os 12 clubes transgressores que fundaram a SuperLiga (que, repete-se, durou três dias).
Pese embora seja uma tradição secular nas discussões de café, explicar um fenómeno através de um exemplo isolado não é propriamente uma prática científica aconselhável – mas tem, por vezes, a vantagem de mostrar o absurdo de uma situação. Neste caso, porém, é difícil saber de que absurdo estamos a falar: de uma plataforma de canções ganhar tanto dinheiro que o seu CEO não só tem milhares de milhões para comprar um dos clubes mais ricos do mundo?; ou pagar tão pouco a quem lhe fornece conteúdos que essas pessoas, mesmo tendo sucesso, não conseguiriam assistir a um jogo da própria equipa que o CEO da plataforma quer comprar?; ou clubes quererem fazer uma competição fechada, deixando morrer as suas ligas nacionais?
Caso estejam com dificuldade em entender o que está em causa, aqui fica uma breve súmula: a 21 de abril deste ano 12 clubes (Real Madrid, Barcelona, Atlético de Madrid, Milan, Inter de Milão, Juventus, Manchester City, Manchester United, Arsenal, Liverpool, Chelsea e Tottenham Hotspurs) anunciaram a criação de uma SuperLiga a disputar entre 20 clubes, 15 fundadores e 5 convidados, em regime de todos contra todos, em que os 15 fundadores nunca poderiam descer, só os convidados. Se estão a perguntar-se como seriam 15 fundadores e só 12 foram anunciados, bem, sabe-se que Porto, Bayern e PSG recusaram o convite. A 23 de abril a ideia havia caído, depois de um por um os clubes ingleses se retirarem da competição, na sequência da revolta dos seus adeptos.
Ninguém percebeu ao certo o que seria a SuperLiga: seria mesmo uma competição de todos contra todos, como um campeonato? Nesse caso, seria impossível que esses clubes disputassem o campeonato dos seus países – e as ligas envolvidas vieram de imediato dizer que esses clubes seriam irradiados. A UEFA, por sua vez, anunciou que ou os clubes acabavam logo ali com a SuperLiga ou não poderiam disputar a Champions do ano que vem – e os seus jogadores não poderiam jogar no Campeonato da Europa, já este verão.
O que terá feito os clubes voltarem atrás? A revolta dos adeptos ou a revolta dos jogadores? De imediato, Jordan Henderson, capitão do Liverpool, convocou uma reunião entre capitães de onde pretendia que saísse uma posição de força a levar a quem gere a Premier League. Em resumo, os jogadores dos clubes envolvidos estavam contra a SuperLiga por duas razões: a primeira é ser anti-desportiva a partir do momento em que os 15 fundadores nunca descem; a segunda é que os jogadores não querem deixar de fazer parte dos campeonatos da Europa e da Liga das Nações, bem como de outras competições da Uefa.
A ideia foi anunciada num domingo à noite, por Florentino Perez, um homem que se tem esforçado por destruir toda a respeitabilidade que o Real Madrid pudesse ter; na segunda-feira seguinte, Pep Guardiola, cuja equipa é propriedade do estado dos Emirados Árabes Unidos (um dos regimes que mais desrespeita os direitos humanos), veio dizer que uma competição em que 15 equipas não podem descer não é desporto, porque o desporto baseia-se numa coisa simples: o que se obtém tem de estar diretamente relacionado com o mérito em campo.
Este detalhe é elucidativo: Pep falou na segunda mas – como Klopp e outros treinadores e os jogadores – só soube da SuperLiga no domingo, horas antes do seu anúncio. Os presidentes e donos dos clubes não ouviram os seus empregados (treinadores, analistas, jogadores), apenas os seus CEOs. E claramente não procuraram ouvir a opinião dos adeptos dos clubes, os que pagam quotas, têm bilhetes de época, compram camisolas e apoiam aqueles clubes porque são os clubes da sua zona, e têm com o clube uma relação profunda e emocional.
Não é difícil imaginar o que moveu os donos dos clubes: Real e Barcelona têm dívidas na ordem do milhar de milhões e no último ano perderam centenas de milhões com a pandemia; estes e outros clubes tradicionais sabem que não têm condições de competir com o City e o PSG, clubes que pertencem a regimes; na realidade, só dois clubes conseguem competir economicamente com City e PSG – o Manchester United (que gera uma quantidade absurda de dinheiro) e o Bayern de Munique, que à conta da sua hegemonia interna gera uma quantidade absurda de dinheiro.
O Bayern não se juntou aos 12 iniciais – porque não precisa. O mesmo se pode dizer do PSG: não precisa. Ambos ganham 9 em 10 campeonatos caseiros e têm dinheiro de sobra. Para as velhas glórias do futebol europeu (Real, Inter, Barcelona) a SuperLiga poderia ser a salvação.
Os presidentes e donos dos clubes mais populares conversaram entre si e chegaram a uma conclusão: o futebol mudou e hoje é um conteúdo para ser transmitido e streamado e depois discutido em milhares de programas e podcasts para adeptos que já não são adeptos de clubes mas sim de jogadores e de treinadores; é uma forma de angariar patrocínios e – pensaram eles – é uma forma de entretenimento como outra qualquer, de modo que para o adepto é indiferente que haja uma SuperLiga ou campeonatos nacionais através dos quais os clubes se qualificam para a Champions ou a Europa: o que os números de TV mostram é que a maior parte dos adeptos quer ver os grandes clubes e os números têm sempre razão.
A relação umbilical entre um clube e as gentes da sua terra ter-se-ia erodido e um novo adepto surgia: o que mais que futebol quer “conteúdos”. A SuperLiga seria a resposta aos anseios desses novos adeptos e uma forma de garantir receitas brutais – das quais se encarregaria o banco JP Morgan, que ficou de angariar cerca de 3,5 mil milhões de euros por época a dividir entre os fundadores, com uma pequena parte a ir para os convidados.
(Ninguém explicou como seriam escolhidos os convidados e, tendo em conta que os convidados podiam sair da SuperLiga devido a maus resultados, o que aconteceria aos convidados quando saíssem: voltavam com o rabinho entre as pernas para as suas ligas e a Uefa?)
Mas o futebol não é um desporto que se pratica com uma bola e duas balizas, entre 22 jogadores num relvado com linhas imaginárias traçadas pelo VAR. É um desporto que se pratica com quatro mochilas a fazer de postes e uma lata de alumínio de Compal a fazer de bola. Que se joga descalço. E enquanto assim for, o adepto de futebol quer apoiar o seu clube, sabendo que para ganhar tem de ser o melhor e que se for o pior sai fora.
Mate-se isto e mata-se o futebol. É escusado fazer comparações com a NBA – a NBA nasceu já como uma competição fechada, em que não há escalões de formação (esses pertencem aos liceus e universidades) e que opera num regime praticamente socialista, com tetos salariais, sindicatos metidos ao barulho, procura de equidade na distribuição dos dinheiros e até dos talentos: no draft (o processo através do qual as franchises adquirem jogadores vindos das universidades ou liceus) os primeiros a escolher são os clubes pior classificados em anos anteriores. Ninguém na SuperLiga disse: pá, o último classificado desta competição ganha 500 milhões para ir comprar os melhores jogadores dos clubes que não entram nesta competição. Os 12 da SuperLiga não querem equidade; querem dinheiro.
Os donos dos clubes da SuperLiga esqueceram essa diferença cultural para o futebol, que nasceu nas classes altas, mas explodiu com a adesão massiva do povo, que se identificava com as cores locais. Os donos dos clubes da SuperLiga esqueceram-se dessa diferença cultural em parte porque nunca souberam dela, são apenas homens de negócios que nada sabem de futebol.
Dois dias depois de ter sido anunciada, a SuperLiga morreu, debaixo do ruído provocado por jogadores, treinadores, adeptos, tanto dos clubes envolvidos como deixados de fora. Algumas cabeças rolaram (como o CEO do Manchester United), de imediato houve tentativas de compra de clubes (o CEO do Spotify queria comprar o Arsenal), mas a vida seguiu.
E aparentemente seguiu bem para os clubes mais ricos: esta semana a Uefa anunciou o modelo da Champions para o ano que vem: serão 32 clubes a disputá-la, em grupos de 4, que qualificam automaticamente para a fase a eliminar, 26 equipas mais 6 através de play-offs. Isto é: criaram-se jogos extra com os play-offs e ainda mais uma fase a eliminar, os 16 avos de final. Acréscimo de jogos significa mais dinheiro – mesmo que isso ponha em causa a saúde dos jogadores.
Há mais novidades: a Uefa mudou as entradas diretas: agora entram diretamente para a fase de grupos 4 clubes ingleses, 4 espanhóis, 4 alemães, 4 italianos, duas equipas francesas, duas portuguesas, uma russa, uma belga, uma ucraniana e uma holandesa. Este escalonamento vem dos resultados obtidos pelos países nos últimos cinco anos, mas se há 4 campeonatos com 4 clubes com entrada direta, também há zero com três clubes. Onde estão os campeões da Roménia ou da Hungria ou da Turquia ou da Croácia?
Hoje e amanhã jogam-se os lugares na final da Champions, na quinta-feira decide-se quem vai à final da liga Europa – o Arsenal recebe em casa o Villareal e um músico que tenha tido 99.999 plays no Spotify não tem dinheiro para comprar um bilhete para o jogo do clube que o CEO do Spotify quer comprar.
A SuperLiga não morreu – está só em estado vegetal, à espera que os adeptos da velha guarda morram, até que no futebol se perca toda a ligação entre adeptos e clubes e o futebol seja só um entretenimento que os ricos veem ao vivo enquanto comem marisco e os pobres assistem na televisão.
É uma situação tão ambígua, que no dia em que fizerem o funeral ao futebol não nos bastará chorar – teremos de nos perguntar se queremos que a música da cerimónia seja transmitida pelo Spotify ou pela Apple ou se mais vale comprar a música diretamente ao seu criador para não dar dinheiro a mais um CEO que não compreende a cultura que tanto amamos.