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Holocausto. A incrível história de sobrevivência dos Kleinmann — e do filho que seguiu o pai para Auschwitz

Uma família desmembrada pelo Holocausto e um filho que não abandona o pai, nem sequer quando o enviam para Auschwitz. Jeremy Dronfield conta a história — para que o mundo continue sem esquecer.

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“– Ali! Ela é um deles!

Os rostos viraram-se, ela ouviu a palavra judia e mãos agarraram-lhe os braços, puxando-a para o meio da multidão. Ela viu a camisa castanha de Vickerl e a braçadeira com a suástica. Nesse momento, estava entalada entre os corpos e no meio de rostos maliciosos e gozões. Meia dúzia de homens e mulheres estavam de joelhos e mãos no chão, com escovas e baldes, a esfregar o pavimento – todos judeus, todos bem vestidos. Uma mulher desnorteada agarrava com força o chapéu e as luvas numa das mãos e a escova na outra, com o seu casaco imaculado a rojar pela calçada molhada.

– De joelhos.

Colocaram-lhe uma escova na mão e foi empurrada para o chão. Vickerl apontou para as cruzes austríacas e os slogans «Diz sim!».

– Faz desaparecer a tua propaganda nojenta, judia.”

A Anschluss [anexação] tinha acontecido apenas há alguns dias. Edith, a filha mais velha da família Kleinmann, seguia a pé pelas ruas de Viena quando se apercebeu de algum rebuliço junto a um posto da polícia, na esquina da Sciffamstsgasse com a Leopoldsgasse. Ao longe, reconheceu um antigo colega de escola, Vickerl, e aproximou-se, acenando-lhe.

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A jovem de 18 anos não tinha ainda percebido o impacto da retórica nazi sobre os austríacos não-judeus, desde a anexação da Áustria pela Alemanha, havia menos de uma semana. O antigo colega de escola sabia que Edith era judia, apesar de os Kleinmann terem um apelido germânico e de raramente irem à sinagoga. Por isso, não hesitou e forçou-a a limpar, de joelhos no chão, os recentes sinais da campanha eleitoral a favor do ‘Sim’ no referendo sobre a independência da Áustria. Mais do que as dores nos joelhos, Edith sentiu, nesse momento, a humilhação a queimar-lhe o peito.

Austríacos celebram a chegada das tropas nazis, após a anexação do país pela Alemanha de Hitler, em 1938 (Central Press/Getty Images)

Getty Images

O episódio faz parte do livro O Rapaz que Seguiu o Pai para Auschwitz (ed. Planeta), que será publicado no dia 29 deste mês. O autor, Jeremy Dronfield, não teve hesitações no momento de incluir este pequeno acontecimento na obra, embora grande parte do livro se foque na impressionante história de Gustav Kleinmann, o patriarca da família, e do seu filho Fritz. Enviados para o campo de concentração de Buchenwald em 1939, passariam depois por outros quatro dos malditos campos de trabalho e morte (Auschwitz, Mauthausen, Mittlebau-Dora, Bergen-Belsen), sobrevivendo à doença, à exploração e à tortura.

Eles ocupam grande parte das cerca de 400 páginas do livro, mas Jeremy fez questão de contar também o que aconteceu à mãe, Tini, às irmãs, Edith e Herta, e ao pequeno Kurt. Por uma simples razão: “As histórias combinadas da família Kleinmann dão-nos uma espécie de panorama de todo o Holocausto e dos diferentes destinos que os judeus tiveram — morte e sobrevivência nos campos de concentração, bem como a fuga para o Ocidente”, resume o escritor em entrevista ao Observador.

“O Rapaz que Seguiu o Pai para Auschwitz” estará nas livrarias a partir de 29 de janeiro

Este domingo, assinala-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. E, 74 anos depois da libertação de Auschwitz-Birkenau pelo Exército Vermelho, continua a fazer sentido contar e recontar as histórias daqueles que morreram e sobreviveram ao maior genocídio da História — incluindo a de um filho que, no pico da juventude, decidiu arriscar deitar tudo a perder e acompanhar o pai para o campo que era sinónimo de morte.

Fritz e Gustav acabariam por viver até aos 85 anos. Os dois morreram na sua amada cidade de Viena, para onde regressaram depois de terem sobrevivido a cinco anos de horror. Dois do irmãos de Fritz (Edith e Kurt) tiveram vidas igualmente longas, mas longe da Áustria. Tini e Herta, contudo, fazem parte dos seis milhões de judeus que engrossam a lista de mortes da Shoah — o termo hebraico que passou a fazer equivaler a palavra “calamidade” a “Holocausto”.

Gustav e Fritz: A Sobrevivência

Jeremy Dronfield, autor de várias obras de ficção e não-ficção, incluindo outros trabalhos sobre o período da II Guerra Mundial, deparou-se com a história dos Kleinmann quando foi convidado para trabalhar na publicação de uma versão em inglês do diário que Gustav manteve nos campos de concentração — e que sobreviveu até aos dias de hoje. O projeto acabaria por ser abandonado, mas o escritor sentiu que aquela era uma história demasiado poderosa para ser simplesmente descartada.

Jeremy Dronfield é biógrafo, historiador e autor de vários livros sobre a II Guerra Mundial

“Não só é altamente tocante, como acho que é, provavelmente, única. O número de judeus que sobreviveram aos campos de concentração durante tantos anos como eles [de 1939 a 1945] é extremamente reduzido. E, daqueles que sobreviveram, muito poucos mantiveram diários ou escreveram sobre aquela experiência. Para além disso, a perspetiva dos judeus que fizeram parte de movimentos de resistência entre os prisioneiros é raramente abordada”, explica. As razões acumulavam-se, mas um pormenor em particular foi decisivo: “Quando soube da decisão do Fritz de acompanhar o pai para Auschwitz, senti que esta história era demasiado poderosa para não ser contada.”

Pai e filho foram deportados para Buchenwald em setembro de 1939. Um ano mais tarde, Gustav, com 51 anos, já sentia o peso do trabalho desumano na pedreira do campo. A falta de comida e a doença também o iam roendo por dentro. Por isso, e à medida que a liderança nazi tentava esvaziar Buchenwald, foi incluído num grupo de cerca de 400 prisioneiros que seriam enviados para Auschwitz. O jovem Fritz, de 17 anos, tinha encontrado uma posição minimamente estável dentro do campo, trabalhando como construtor e criando laços com um grupo de presos políticos da Resistência, mais velhos, que o apadrinharam. Apesar disso, tomou uma decisão que os amigos classificaram de loucura: ofereceu-se como voluntário para Auschwitz, de forma a poder ficar junto do pai.

O infame portão de entrada de Auschwitz-Birkenau com a inscrição "Arbeit Macht Frei" (O Trabalho Liberta, em alemão) (AFP/Getty Images)

AFP/Getty Images

Jeremy Dronfield, que leu e ouviu dezenas de entrevistas de Fritz Kleinmann, não tem dúvidas de que a decisão foi tomada não por um sentido de dever, mas por amor. “O pai era a âncora emocional dele. Para além disso, Fritz tinha acabado de saber, uns meses antes, que a mãe e a irmã tinham sido deportadas para o Leste”, explica. “Ele viu a sua família a ser despedaçada e não conseguia suportar a ideia de que podia perder o último laço que lhe restava. Se o pai ia morrer, Fritz preferia morrer com ele do que ficar separado dele.”

Para trás ficaram os terrores de Buchenwald: a viagem no vagão apertado para o campo, os constantes insultos de “porcos judeus” vindos dos soldados, as coronhadas, o trabalho extenuante durante horas e os castigos quase aleatórios; mas também a sopa de nabo que não passava de um líquido escuro e o café de bolota; o trabalho, fosse ele a violência do transporte das pedras na pedreira ou as fezes retiradas das latrinas à mão, feito pelos intelectuais a isso condenados. E como esquecer as chicotadas, que o prisioneiro tinha de contar em voz alta e que eram retomadas de início, caso se baralhasse na contagem?

“O pai era a âncora emocional dele. Para além disso, Fritz tinha acabado de saber uns meses antes que a mãe e a irmã tinham sido deportadas para o Leste. Ele viu a sua família a ser despedaçada e não conseguia suportar a ideia de que podia perder o último laço que lhe restava. Se o pai ia morrer, Fritz preferia morrer com ele do que ficar separado dele.”
Jeremy Dronfield, autor de "O Rapaz que Seguiu o Pai para Auschwitz"

Pai e filho deixaram o inferno de Buchenwald para trás, mas outro rapidamente chegaria. Em Auschwitz, Gustav e Fritz conseguiram escapar à morte quase certa nas câmaras de gás, ao serem considerados “aptos a trabalhar”. Ali, como em Buchenwald, foram submetidos à rotina terrível que pretendia retirar-lhes a sua essência como indivíduos: o cabelo e todos os pêlos do seu corpo foram rapados, foram-lhes dados os uniformes andrajosos para vestir e receberam as estrelas de David para coserem no peito — e serem, assim, identificados como judeus e distinguidos dos restantes presos. E, como era Auschwitz, tiveram os seus números de prisioneiro tatuados no braço, como se fossem gado.

Oficiais das SS cortam o cabelo a um prisioneiro judeu na chegada ao campo de Bergen-Belsen, por onde Gustav e Fritz Kleinmann também passaram (AFP/Getty Images)

AFP/Getty Images

Todos estes atos de desumanização serviam para marcar a ferro e fogo na mente dos prisioneiros de que não passavam de uma massa homogénea, sem valor. E cada ato — cada insulto de “cão” dito por um guarda, cada toalha que tinha de ser partilhada por toda uma camarata até ser já um pano nojento e encharcado para o último a tomar banho — era como uma pequena ferida infligida a cada um. “Os maiores horrores — a tortura e a morte — eram uma presença regular e avassaladora do domínio nazi, especialmente nos campos”, reconhece Dronfield. “Mas a existência de muitas ‘pequenas feridas’, todos os dias, é que quebravam a essência de cada um.” Para isso, o escritor dá um simples exemplo: “Se uma pessoa que vê mal perdesse os seus óculos, isso podia ser fatal. Podia levar a um ferimento que não seria tratado e qualquer pequena infeção podia ser fatal. A máquina Nazi não tinha apenas como objetivo assassinar judeus — servia também para tornar as vidas deles insuportáveis, de todas as maneiras possíveis.”

O nível de eficiência dessa “máquina” — e a dimensão que atingiu — é aterrador. A rotina do ato de matar foi aperfeiçoada ao pormenor. Em Auschwitz, recorda Jeremy no livro, os prisioneiros russos eram mortos de uma forma que se assemelhava à de uma linha de montagem. Levados para uma enfermaria, eram observados como se estivessem a ser sujeitos a uma avaliação médica. Escoltados para outra sala, eram encostados à parede como se lhes fossem medir a altura — mas, atrás de si, estava um buraco na parede através do qual um SS disparava uma bala em direção à sua nuca. Havia música a tocar bem alto, para abafar os tiros e não alarmar os restantes prisioneiros.

O relato é chocante, mas, para Dronfield, o aperfeiçoamento da forma de matar e a escala dessa matança não são o que, na sua opinião, representa “a essência do verdadeiro terror do Holocausto”. Essa, diz, está no facto de a Alemanha nazi ter “isolado e estigmatizado” um grupo de pessoas pelo simples facto de serem o que eram — judeus. “O Holocausto destruiu os laços humanos de cada judeu na Europa, através do homicídio e da separação forçada. As vítimas foram completamente afastadas e silenciadas do resto da sociedade, as suas vidas passaram a não valer nada — ou menos de nada, no caso dos milhões que foram enviados para a morte. Este é o verdadeiro horror, o verdadeiro terror do Holocausto.”

Edith e Kurt: A Fuga

Os Kleinmann foram parte dessas vítimas. Para além da deportação para os campos, protagonizada por Gustav e Fritz, outros dos seus membros sofreram uma outra forma de violência: a separação. Ainda pai e filho não tinham sido enviados para Buchenwald, a família já considerava abandonar o país. Era uma saída possível, mas os Kleinmann hesitavam.

A filha mais velha, Edith, não. Determinada em abandonar a Áustria, mobilizou os esforços da mãe e de uma vizinha e, depois de publicar um anúncio a oferecer os seus serviços como empregada doméstica no Reino Unido, conseguiu um contrato de trabalho no país. Foi o bilhete para a sua salvação. A janeiro de 1939, tornou-se uma dos 70 mil judeus que conseguiram um visto de entrada no país, em vésperas do início da II Guerra Mundial.

Crianças de um dos "Kindertransport" de refugiados judeus menores de idade para o Reino Unido, na chegada a Harwich (Fred Morley/Fox Photos/Getty Images)

Getty Images

O Reino Unido, contudo, não recebeu de braços abertos os refugiados judeus — uma realidade que o britânico Dronfield acha importante reforçar, por tanto lhe fazer lembrar a crise de refugiados que se vive atualmente na Europa. Se é certo que os britânicos podem colher os louros de terem acolhido quase oito mil crianças judias no país, o mesmo não pode ser dito relativamente ao acolhimento de judeus adultos. “Todos nos lembramos das fotos e dos vídeos tocantes de crianças judias sozinhas a chegar nos Kindertransports. Não há fotografias desse género dos pais judeus que ficaram para trás, na Europa Nazi”, recordou Louise London, autora da obra Whitehall And The Jews, 1933-1948 British Immigration Policy, Jewish Refugees and the Holocaust. “Os judeus vedados de entrarem no Reino Unido não fazem parte da experiência britânica, porque a Grã-Bretanha nunca os viu.”

Em 1940, os britânicos foram inclusivamente mais longe, com o Governo a ceder a uma campanha de laivos xenófobos, alimentada por jornais como o Daily Mail, que determinava como possível a detenção de todos os cidadãos alemães no país, mesmo os judeus, por suspeitas de serem possíveis espiões. Dronfield ilustra a campanha no seu livro:

“Para evitar colocar demasiada pressão na infra-estrutura, as detenções deveriam prosseguir por etapas. Primeira etapa: alemães e austríacos — tanto judeus, como não judeus e antinazis — que não tivessem estatuto de refugiados ou que estivessem desempregados. A segunda etapa deveria varrer os restantes alemães e austríacos que vivessem fora de Londres e a terceira etapa reuniria os de Londres. Churchill disse ao Parlamento: ‘Sei que há muitas pessoas afectadas por estas ordens (…) que são fervorosos inimigos da Alemanha nazi. Lamento muito por eles, mas não podemos (…) fazer todas as distinções que gostaríamos de fazer.’”

Se Edith encontrou abrigo na Grã-Bretanha, Kurt teve a ajuda dos norte-americanos — mas foi uma exceção. Graças à ajuda da Jewish Children’s Aid Organization, a mãe Tini Kleinmann conseguiu enviar o filho mais novo para os Estados Unidos, já depois de Gustav e Fritz serem deportados. Sem o saber, Kurt tinha ganho a lotaria: entre 1933 e 1941, os EUA não alteraram a quota máxima de refugiados que aceitavam receber vindos da Alemanha, por exemplo, muito embora milhares de judeus se precipitassem para os consulados norte-americanos a pedir ajuda. Em maio de 1939 — já depois da Kristallnacht e da anexação da Áustria terem feito soar os alarmes mundiais — os EUA continuavam sem vontade de receber os judeus. À altura, apenas 23% dos americanos defendia que o país recebesse refugiados vindos da Alemanha.

Crianças a bordo do St Louis, o barco com refugiados judeus cuja entrada foi recusada em Cuba, nos EUA e no Canadá (Gerry Cranham/Getty Images)

A frieza dos norte-americanos face à tragédia dos judeus europeus ficou imortalizada no caso do MS St. Louis, um navio que transportava 900 judeus vindos da Alemanha, em 1939, e que foram recusados em Cuba, nos EUA e depois no Canadá. De regresso à Europa, foram entregues à máquina nazi. 254 acabariam por morrer no Holocausto. A história tornou-se símbolo dessa política anti-refugiados, de tal forma que o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, já pediu publicamente desculpas pelo ato. E a conta do twitter St. Louis Manifest, um projeto que revela a história de cada um dos tripulantes, acumula mais de 60 mil seguidores.

Com apenas 9 anos, Kurt teve mais sorte. O que não significa, contudo, que tenha sido fácil. Foi sozinho de comboio até Lisboa e, depois, embarcou para a América, onde uma família desconhecida estava à sua espera. Décadas depois, partilharia com Jeremy Dronfield o que sentiu naquela viagem: “A velha vida, a vida familiar, os entes queridos, estavam para trás, a perder-se inexoravelmente numa dimensão diferente. Ou, então, era o contrário – Viena é que era real e o presente, e ele tinha sido empurrado para esta existência irreal.” A despedida da mãe e da irmã Herta, “para seu grande desgosto”, apagou-se-lhe da memória.

Tini e Herta: A Morte

Com Gustav e Fritz em Buchenwald, Edith no Reino Unido e Kurt nos EUA, em Viena ficaram apenas Tini e a filha Herta. Contudo, também elas não puderam escapar à longa garra da Alemanha nazi. Em junho de 1942, receberam uma ordem de evacuação. Iriam ser “realojadas”, algures no leste da Europa.

Com essa informação, as duas mulheres cumpriram escrupulosamente as ordens que lhes foram dadas. Fizeram as malas respeitando os limites de peso (50 quilos), incluíram nelas as roupas, os lençóis e a louça, mas deixaram para trás os talheres, como lhes tinha sido ordenado. Entregaram tudo o que tinham de valioso, com exceção da aliança de casamento de Tini, que pôde manter no dedo.

Depois de uma viagem de dias, chegaram a Minsk, na Bielorrússia, juntamente com outros 1.004 judeus. Os contornos exatos do seu destino não são conhecidos, mas, com base nos relatos que existem de outros assassínios em massa em Minsk, naquele verão, foi possível a Jeremy Dronfield fazer o retrato geral:

“Desembarcados do camião, mulheres, homens e crianças eram forçados a despir-se até ficarem de roupa interior, deixando para trás quaisquer bens que tivessem com eles. Sob a ameaça das armas, em grupos de cerca de 20, eram conduzidos para a beira do fosso, onde tinham de ficar de pé, em linha, virados para o buraco. Atrás de cada pessoa estava um militar das SS. Quando era dada a ordem, as vítimas eram atingidas na nuca à queima-roupa e caíam para dentro do fosso. Depois vinha o lote seguinte. Quando todos tinham sido mortos, uma metralhadora montada no final do fosso abria fogo sobre os corpos que parecessem ainda estar a mover-se.”

Comandantes das SS executam judeus em Kiev, na Ucrânia. Foi numa destas valas que os corpos de Tini e Herta terão acabado, em Misnk (Hulton Archive/Getty Images)

Getty Images

O autor interroga-se ainda hoje: por que razão, apesar de os judeus levados para estas valas comuns serem muitos mais do que os soldados nazis presentes, não havia um movimento de rebelião? Como é possível que tanta gente caminhasse lentamente para a morte, como que aceitando o seu destino? Dronfield lança essa interrogação no livro. Encontrou entretanto alguma resposta? “Só posso especular”, responde o escritor ao Observador. “O instinto de sobrevivência e confiança na humanidade fazia com que tivessem esperança, até ao momento final, que o tiro não seria disparado? Ou os abusos e tormentos a que tinham sido sujeitos destruíram de tal forma a sua auto-estima que nem lhes passava pela cabeça resistir?”

“O Holocausto destruiu os laços humanos de cada judeu na Europa, através do homicídio e da separação forçada. As vítimas foram completamente afastadas e silenciadas do resto da sociedade, as suas vidas passaram a não valer nada — ou menos de nada, no caso dos milhões que foram enviados para a morte. Este é o verdadeiro horror, o verdadeiro terror do Holocausto.”
Jeremy Dronfield, autor de "O Rapaz que Seguiu o Pai para Auschwitz"

As reações humanas perante uma tragédia da dimensão da do Holocausto continuam para nós insondáveis. Porque estava Gustav esperançoso de que os Kleinmann seriam poupados pelos nazis, enquanto a sua mulher os obrigava a tirar uma fotografia de família por temer ser o último retrato com todos? Por que razão alguns dos amigos da família, em Viena, se apressaram a trair os Kleinmann e a revelar tudo o que sabiam sobre eles aos alemães, enquanto outros se mantiveram em silêncio?

Como explicar a atitude de Alfred Wocher, o soldado alemão que Fritz conheceu em Auschwitz , que chorava ao ver os prisioneiros suicidarem-se no arame farpado, mas que, perante o avanço dos Aliados, se juntou às tropas para defender o seu país? Que mecanismo ajudou Fritz a fazer a escolha moral de distribuir a comida que contrabandeou para dentro do campo apenas pelos prisioneiros mais jovens, já que não chegaria para todos?

Judeus na chegada a Auschwitz-Birkenau, em 1944 (Hulton Archive/Getty Images)

Getty Images

As respostas a estas e outras perguntas não são simples. Ou, como arriscou dizer a historiadora Edna Friedberg, do Museu em Memória do Holocausto em Washington, “as pessoas têm o hábito de reduzir o Holocausto a uma história moral, onde os que cometem os males são todos maus e as vítimas são mártires de alma pura”. É precisamente por isso, explica, que é tão importante ouvirmos aqueles que atravessaram a Shoah: “Os sobreviventes têm a credibilidade para olhar para as fissuras desconfortáveis das histórias e não tornar tudo tão simples.”

Dia Mundial em Memória das Vítimas: a importância de recordar o Holocausto nos dias de hoje

Mauthausen, o último campo de concentração por onde Fritz passou, ia matando o jovem austríaco. “Estava completamente destruído ali”, reconheceria o próprio, mais tarde. Separado do pai, sem amigos e longe das atividades da Resistência em que participou em Auschwitz, Fritz já não sentia vontade de viver. Estava à beira de se tornar um Muselmann (muçulmano), o termo usado pelos prisioneiros para se referirem aos colegas esqueléticos, de olhos arregalados, que se ajoelhavam no chão do campo, como muçulmanos a rezar. A morte para estes, à beira de perder o juízo, não demoraria. Mas, em 1945, os Aliados chegaram, Mauthausen foi libertado e Fritz não teve o mesmo destino destes homens.

Prisioneiros de Buchenwald, o campo de concentração onde Gustav e Fritz trabalharam entre 1939 e 1940 (National Archives/Newsmakers)

O facto de ter sobrevivido cinco anos em circunstâncias onde a maioria durava apenas alguns meses só pode ser explicado por uma razão: Fritz não estava só. É essa a convicção de Jeremy Dronfield, que acredita que pai e filho sobreviveram graças ao laço humano que os mantinha ligados. “Os Muselmänner eram, na maioria, pessoas que tinham perdido tudo, toda a esperança, como os judeus húngaros que foram para Auschwitz. Aqueles que sobreviviam à seleção em Birkenau tinham visto os seus pais, irmãos e filhos serem levados para um destino desconhecido, que, souberam mais tarde, era o das câmaras de gás. Quando ali chegavam, já estavam desesperados. Muitos nem conseguiam fazer amigos, porque não falavam alemão ou polaco. Assim que perdiam a vontade de sobreviver e não tinham ninguém para os ajudar, rapidamente sucumbiam”, resume.

"As pessoas têm o hábito de reduzir o Holocausto a uma história moral, onde os que cometem os males são todos maus e as vítimas são mártires de alma pura. Os sobreviventes têm a credibilidade para olhar para as fissuras desconfortáveis das histórias e não tornar tudo tão simples.”
Edna Friedberg, historiadora do Museu em Memória das Vítimas do Holocausto em Washington D.C.

Desde que regressou dos campos, Fritz Kleinmann sentiu a urgência de contar a sua experiência ao mundo. A sua maior preocupação era “garantir que o mundo não esquecia”, razão pela qual participou em muitas conferências e nunca se cansou de dar entrevistas. Também o autor do livro que conta a sua história crê que o melhor caminho para aprender é o da memória. Recordar, recordar, recordar. “Desde 1945, nunca houve outra altura em que fosse mais importante aprender com o Holocausto do que agora”, defende, dando como exemplos o crescimento da extrema-direita e o nacionalismo e a xenofobia que vê presentes “na eleição de Donald Trump, nas suas políticas, no Brexit e na hostilidade contra os refugiados e os imigrantes”.

E deixa um último aviso para sustentar a sua tese, sempre com o exemplo da família austríaca a latejar-lhe no fundo da cabeça: “O Holocausto não começou com as câmaras de gás. Começou com a desumanização de uma parte da sociedade, com a hostilidade contra os forasteiros e com a intolerância à diferença.” Para os Kleinmann, o Holocausto não começou sequer com um campo de concentração; começou ali, em Viena, quando Edith foi obrigada a esfregar o chão de joelhos, perante uma multidão que troçava dela.

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