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"Hotel, os bastidores": trabalho, segredos e sexo

Inês Brasão teve acesso aos bastidores de vários hotéis portugueses. Entrevistou dezenas de funcionários. E escreveu todas as histórias que ninguém pode contar.

“Hotel, os bastidores”, incluído na coleção Retratos da Fundação, é um livro da socióloga Inês Brasão que relata o quotidiano de um hotel desde a sua face mais visível ao mais escondido recanto. Através de inúmeras entrevistas e de temporadas passadas em vários hotéis, a autora conta histórias sobre os clientes, os trabalhadores, os encantos, as brincadeiras, mas também os crimes e as situações sórdidas e embaraçosas pelas quais tantas vezes passam funcionários e hóspedes. O Paladino é um nome fictício de um hotel que na verdade são muitos, uma vez que a autora optou por não revelar de que unidade hoteleira estava a falar em muitas situações.

Publicamos aqui um dos capítulos do livro, onde se fala do papel dos trabalhadores da receção dos hotéis, da relação que mantêm com clientes, dos acordos com outros prestadores de serviços, dos contratos de confidencialidade e dos segredos que não podem revelar. Há sexo? Sim, muito sexo.

O livro faz parte da coleção Retratos da Fundação publicada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos

Bem vindo ao Paladino

À entrada do Hotel Paladino estão dispostos três postos de recepção e, atrás destes, três colaboradores, dois homens e uma mulher. Atravesso o grande átrio forrado de paredes de vidro. São quatro da tarde. Nota-se alguma azáfama no check-in. Chegada a minha vez, recebo as boas-vindas e as coordenadas sobre a localização do quarto, para além de um esclarecimento sobre serviços integrados na reserva. Encaminho-me para o elevador. A um canto encontra-se um mostruário que convida a visitar Lisboa. Um pouco aleatoriamente, retiro alguns panfletos. Abro com curiosidade as ofertas do Museu da Água, com opção de percursos pelo Aqueduto, a Mãe d‘Água ou a Patriarcal. O panfleto do Museu do Fado promove uma visita a 200 anos de história do fado, ao preço de cinco euros, com Amália no seu centro. Esta concentração na oferta museológica parece estar em linha com um dos dados mais surpreendentes de um grande inquérito levado a cabo pelo Observatório do Turismo de Lisboa, no ano de 2014, com uma amostra de mais de 3800 turistas estrangeiros. Com efeito, segundo os resultados apurados, cerca de 50% dos turistas estrangeiros indicaram como motivação principal, na opção por Lisboa, a visita aos monumentos e museus da cidade.

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"Se um hotel, na Baixa de Lisboa, envia o cliente para determinado sítio, tem um acordo com o restaurante de que recebe uma comissão de dez por cento, ou cinco por cento. Ou, então, o cliente dirá que vai indicado e o restaurante tomará nota do local de pernoita. Numa terceira hipótese, é a própria recepção que anota o encaminhamento e, num período posterior, procede ao ajuste de contas."

Ainda com os olhos postos nos panfletos, a oferta de visitas ao Castelo de São Jorge tenta captar a atenção do turista indicando a localização excepcional do monumento, pois «destaca-se do conjunto dos miradouros de Lisboa pelas vistas únicas e majestosas que pode usufruir». Ficamos ainda a saber que todo o conjunto edificado do Castelo «constitui a memória mais significativa da antiga residência real medieval». Os tours apresentam propostas muito diversas. Uma delas, com o slogan “Creating memorable vacations!” oferece visitas pela cidade que podem custar entre 49 e 119 euros. No caso da opção mais dispendiosa, o percurso integra a visita pela Sé, Castelo de São Jorge, bairro de Alfama, Praça do Comércio, Torre de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, lanche nos Pastéis, Casino Estoril, Baía de Cascais, Boca do Inferno, Vila de Sintra, Cabo da Roca e Palácio da Pena. Em 2015, o percurso mais vendido pela empresa foi “The Wine Tour”. Incluía o atravessamento da Ponte 25 de Abril, visita à Estátua do Cristo-Rei, visita a uma fábrica de azulejos e degustação em adega com prova de três vinhos. Neste tour, os turistas são transportados em carrinhas de nove lugares, e em nenhum dos casos está incluído o preço das refeições, despesas com pessoas ou visitas guiadas ao interior dos monumentos.

Assim se torna possível entender a forma como a indústria do turismo está a operar, como uma espécie de estrutura por dentro da cidade, levando os seus residentes transitórios por itinerários já definidos e alinhavados.

Entre os folhetos mais chamativos, encontrava-se ainda o dos autocarros com vista panorâmica, de cor vermelha e caixa aberta, cada vez mais famosos, a passar nas avenidas da cidade, saídos da Praça do Marquês de Pombal. Oferecem duas rotas fundamentais: a Linha Vermelha explora o eixo ocidental da cidade, enquanto a Linha Azul percorre o eixo oriental. Simão Nevada trabalha no centro nevrálgico do hotel. Simão é a cara do Paladino. Esta é uma forma alternativa de dizer que o seu posto é o da recepção. Em tempos idos, Londres acolheu-o profissionalmente durante mais de três anos. A páginas tantas, decidiu apanhar um voo para responder a uma entrevista de emprego em Portugal. Foi bem-sucedido, e por aqui ficou, na cadeia do Paladino. A função de recepção representa um grau máximo de exposição. É o núcleo por onde tudo passa. Para Simão, «entre as características mais importantes do recepcionista, o mais importante é o sorriso. É a primeira imagem com que o cliente fica, e a que leva também do hotel. Mas também a simpatia, a disponibilidade». As principais línguas de comunicação usadas pelos funcionários são o francês e o espanhol, embora por lá passem todas as nacionalidades. Em termos de gestão do trabalho, este lugar é regido pelos turnos do dia, tarde e noite. No total, o Paladino conta com uma equipa de treze recepcionistas. O dia e a tarde são essencialmente determinados pelo contacto com o cliente, enquanto a noite é definida pelo trabalho de escritório. O escritório corresponde à rectaguarda da operação e, daí, a terminologia oficial designar este trabalho como de “back-office”, o escritório encoberto por paredes ou biombos, também bastidor, invisível a quem passa, o lugar das “papeladas” e dos relatórios: o lugar onde se cumpre o fecho do dia e onde se realiza o trabalho mais operacional. Como dizia Simão Nevada: «à noite é outro movimento: é o momento da burocracia».

"Se quer ir ver a catedral é porque é religioso e gosta de ver essas situações. Aí podemos sugerir também o Mosteiro dos Jerónimos, ou a Sé. Há certo tipo de detalhes que nos levam a entender o que procura. Por vezes, é também através do aspecto físico e da forma como se apresenta. Se vier vestido “à executivo”, se calhar, já vai procurar outro tipo de situações não relacionadas com o lazer."

Quando o cliente chega, quer saber tudo: o que a cidade tem, quais os serviços disponíveis, os tours organizados ou os locais emblemáticos. «Isto exige de nós tempo, algo que nem sempre temos para lhe dar. Nós temos que ter cultura geral. O turista está interessado na nossa história e nos nossos restaurantes». A maior parte dos hotéis de Lisboa estabelece acordos prévios para a recomendação de lugares, e este não foge à regra. Assim se torna possível entender a forma como a indústria do turismo está a operar, como uma espécie de estrutura por dentro da cidade, levando os seus residentes transitórios por itinerários já definidos e alinhavados. Zélia Rafael cuidou de me inteirar como se processam as ligações entre a hotelaria e as opções de visitação pela cidade. «Se um hotel, na Baixa de Lisboa, envia o cliente para determinado sítio, tem um acordo com o restaurante de que recebe uma comissão de dez por cento, ou cinco por cento. Ou, então, o cliente dirá que vai indicado e o restaurante tomará nota do local de pernoita. Numa terceira hipótese, é a própria recepção que anota o encaminhamento e, num período posterior, procede ao ajuste de contas. Esta prática de recomendação faz com que, na Baixa de Lisboa, os recepcionistas ganhem bastante dinheiro com isto. Aqui não fazemos tanto esse tipo de ganho».

Quando pedi a Simão que simulasse um aconselhamento de visita pela cidade, logo me definiu como essenciais a visita aos monumentos e uma atenção à arquitectura de Lisboa «usando os autocarros turísticos da cidade, uma vez que podem sair a qualquer momento de vários pontos. Esse é o passeio mais rápido e mais indicado. As pessoas vão vendo cada ponto histórico ou, então, podem sair do autocarro para usufruir melhor da experiência. No Paladino ainda não trabalhamos muito com tuk-tuks porque estes operam sobretudo nas zonas históricas». O cálculo do perfil do cliente faz-se na relação face-a-face e através de uma atenção particular ao detalhe: «através da conversa temos de avaliar e chegar àquilo que o cliente quer, sem ele se aperceber. Por exemplo, se quer ir ver a catedral é porque é religioso e gosta de ver essas situações. Aí podemos sugerir também o Mosteiro dos Jerónimos, ou a Sé. Há certo tipo de detalhes que nos levam a entender o que procura. Por vezes, é também através do aspecto físico e da forma como se apresenta. Se vier vestido “à executivo”, se calhar, já vai procurar outro tipo de situações não relacionadas com o lazer. Em termos da tipologia de clientes, a grande diferença estabelece-se entre o turista de negócios, “business” ou “corporate”, e o turista de lazer».

Num enorme quadro de exigências e tempo regulamentado, os colaboradores dispõem de meia hora para a refeição e só são permitidas interrupções para idas à casa-de-banho. "Aqui, quem quiser fazer pausas por iniciativa própria, é impossível, a não ser que arranje alguma maneira… Em termos de internet, os sites que não estão no sistema são de acesso restrito".

Encarado nos manuais de gestão como ponto central do hotel, o trabalho de recepção não se esgota na comunicação em presença ou no paradigma emocional de “sorriso aberto”, competência exigida pelo sector geral dos serviços. Na verdade, os clientes ainda recorrem com frequência ao contacto telefónico com o recepcionista, a partir do quarto, para fazer pedidos ou rectificar situações com as quais se sintam insatisfeitos. Os pedidos podem ser tão diversos como a requisição de ferro e tábua de engomar, serviço de quartos, travesseiros, um berço, cama-extra, um pedido de médico ou serviço de urgência, ou mesmo o INEM. «Nós somos o ponto número 1 de contacto. Tudo começa e acaba na recepção. E a última imagem que o cliente leva, tem que ver com a recepção. Na realidade, é o apoio de onde sai toda a informação».

Em cada turno é assegurada a presença de duas pessoas, em permanência, para além do bagageiro, o Sr. Matias. Cruzámo-nos no lóbi do hotel, e não pude deixar de reparar no seu físico possante e no facto de os seus passos serem mais desprendidos que os de todos os outros funcionários, talvez por não estar confinado a uma única secção. Embora fardado, o bagageiro deambula dentro e fora de portas, sem cessar. No Paladino, Henrique Matias não é apenas responsável por transportar as malas ao quarto do cliente, como também pelo serviço de transfer entre o hotel e o aeroporto, facilitando a chegada atempada à hora de voo. No posto de recepção, o ambiente é composto por computadores interligados, vários telefones, impressora, fotocopiadora e um mecanismo para fazer chaves. É assim que Simão Nevada descreve o seu kit. Por dia, ocorrem mais de cem chegadas, volume que muito dificulta a tarefa de atendimento quando há «mil e umas coisas para resolver». Quase não há pausas. Num enorme quadro de exigências e tempo regulamentado, os colaboradores dispõem de meia hora para a refeição e só são permitidas interrupções para idas à casa-de-banho. «Aqui, quem quiser fazer pausas por iniciativa própria, é impossível, a não ser que arranje alguma maneira… Em termos de internet, os sites que não estão no sistema são de acesso restrito».

"Numa ocasião, a senhora da limpeza veio dizer-nos que estava um senhor todo nu no corredor e, efectivamente, estava! Não quis acreditar. Fui lá acima e depois percebemos que a porta se tinha fechado com o senhor cá fora [ri-se]. A senhora da limpeza ficou escandalizada e chegou à recepção aos gritos."

A expectativa de que os dias se sucedam sem sobressalto não encontra reflexo na realidade hoteleira. Tentando trazer à tona algum incidente mais bizarro guardado na memória de Simão, contou: «Numa ocasião, a senhora da limpeza veio dizer-nos que estava um senhor todo nu no corredor e, efectivamente, estava! Não quis acreditar. Fui lá acima e depois percebemos que a porta se tinha fechado com o senhor cá fora [ri-se]. A senhora da limpeza ficou escandalizada e chegou à recepção aos gritos. Pedimos que ela falasse um pouco mais baixo. Estava fora de si. Na verdade, acho que o cliente estava um bocado embriagado. Alguma coisa que quis ver e foi atraiçoado. Nestas ocasiões, temos de tentar que, caso haja uma reclamação por algum motivo, os outros clientes não se apercebam do incidente porque, por vezes, reclamação gera reclamação, e então é complicado…». O procedimento profissional obriga a saber resolver a situação com precaução e sigilo, se assim se pode dizer, quase com invisibilidade: é necessário chamar o cliente à parte e levá-lo para longe da aura de ambiente optimizado. Zélia Rafael recordava o dia em que chegou a acompanhar um cliente ao aeroporto, completamente alcoolizado, aos gritos no bar. Tudo foi feito como se se tratasse de um serviço de nanning profissional. Tudo para evitar a perda do voo por parte do cliente.

Zélia Rafael recordava o dia em que chegou a acompanhar um cliente ao aeroporto, completamente alcoolizado, aos gritos no bar. Tudo foi feito como se se tratasse de um serviço de nanning profissional.

Quis saber se Simão sentia que guardava segredos inconfessáveis dos seus hóspedes. «Não é tanto assim porque, de alguma maneira, nós mantemos sempre alguma distância… e, também, não podemos invadir o cliente. Aliás, já tivemos alguns que nos pediram expressamente o anonimato. À partida, não prestamos qualquer informação sobre o cliente. Dizem-nos que nunca estiveram cá, não estão cá e não querem ser incomodados por chamadas ou pessoas! Qualquer hotel tem um código de conduta ao qual submete o conjunto dos seus trabalhadores. Se ligarem para aqui a perguntar se está a pessoa x, não temos autorização para prestar essa informação. É complicado…»

Quando um trabalhador é integrado numa estrutura hoteleira fica abrangido pelo estrito compromisso de confidencialidade em relação a toda e qualquer informação que respeite ao cliente, ao abrigo do código do hotel. De acesso público, o Código de Conduta da cadeia Hilton permite comprovar o conjunto de restrições relativas ao uso indevido de dados pessoais dos clientes. Nele se incluem, nomeadamente, dados que «permitam identificar, localizar ou contactar um indivíduo ou que se refiram de algum modo a um indivíduo identificado ou identificável. Exemplos de dados pessoais incluem, entre outros, elementos óbvios tais como nome, endereço ou e-mail, além de informações menos óbvias como preferências pessoais, informações referentes a estadias e informações da conta do hóspede. Informações pessoais particularmente confidenciais incluem números de identificação emitidos por entidades governamentais, números de cartão de crédito e informações médicas ou referentes a qualquer incapacidade do indivíduo, crenças religiosas, opiniões políticas, de origem étnica, racial ou vida sexual. As informações pessoais poderão
estar contidas em qualquer meio ou formato, incluindo registos eletrónicos ou informáticos, bem como arquivos em papel».

Com algumas nuances, as restantes cadeias replicam este modelo. Acima de tudo, o conjunto de restrições é indicador de uma barricada de protecção ao cliente que se ergue aquando do sinal de entrada num hotel. O rompimento do protocolo é apenas accionado perante a prática de ilícitos. Foi esta a situação a que tragicamente se assistiu aquando do assassinato do cronista Carlos Castro, de 65 anos, encontrado morto no quarto 3416 do hotel Intercontinental, em Nova Iorque. O crime, amplamente divulgado nos media, deu azo a uma overdose de sensacionalismo e voyeurismo. E o mesmo se pode dizer dos casos que envolveram o ex-director-geral do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kan. Não apenas surgiu noticiado o alegado envolvimento desta figura numa rede de tráfico de mulheres com sede no Hotel Carlton como, também, e desse episódio tivemos maior eco, Strauss-Kan foi à barra do tribunal pela acusação de assédio sexual a uma “camareira”, arcaísmo de “empregada de andares”, do hotel. Depois de um longo processo de ditos e contraditos, sabemos que se celebrou um acordo entre as partes, embora saibamos muito pouco sobre o sentido das relações de força que determinou esse acordo.

O rompimento do protocolo é apenas accionado perante a prática de ilícitos. Foi esta a situação a que tragicamente se assistiu aquando do assassinato do cronista Carlos Castro, de 65 anos, encontrado morto no quarto 3416 do hotel Intercontinental, em Nova Iorque.

Conquanto se trate de um tema tabu, os hotéis sempre foram associados ao sexo e, acompanhando a ideia até ao limite, também à prostituição. A possibilidade de reserva de quarto por um curto período permite pensar estes edifícios da cidade como lugares onde o prazer pago tem subterfúgio, mesmo quando as cadeias hoteleiras tentam controlá-lo e, admitamos, mesmo à revelia da mais férrea gestão. A este título, o depoimento de Constança Rebelo é bastante esclarecedor: «Pelo que vi enquanto estive no hotel Z*, na maior parte das vezes as/os acompanhantes eram chamados através das floor managers e do concierge. No entanto, se lhe perguntassem, negavam tudo». Durante alguns meses, Constança fez estágio numa das referências da hotelaria da capital. Na segunda metade dessa experiência profissional foi-lhe proposto um contrato de trabalho e, tendo aceitado, assinou também um termo de confidencialidade abrangendo toda e qualquer informação respeitante a clientes. De acordo com Constança, «o hotel regia-se por uma política de low profile. Enquanto, a nível promocional, o hotel W**, construído na mesma avenida, fazia bandeira das pessoas que por lá iam passando, inclusive no seu lóbi havia uma série de fotografias de personalidades, e faziam disso a sua bandeira de qualidade, no meu hotel era o oposto. Ali, ninguém sabia das figuras públicas alojadas porque entravam pela cave e tinham acesso directo aos quartos. Por norma, era-lhes atribuído um nome fictício e só quem lidava com o cliente estava a par da pessoa por detrás do nome. Para o resto do pessoal do hotel, aparecia na lista uma “Pocahontas” ou um “Peter Pan”. Quando deparávamos com nomes de figuras da banda-desenhada, dos desenhos animados ou de uma personagem de um filme, é porque se tratava de alguém famoso. Quando B.*** ficou lá alojado, eu era floor manager do piso onde ficava a suite presidencial. Portanto, sabia quem ele era. Recordo-me que fez uma viagem secreta para mostrar a cidade ao filho, mas o passeio nem sequer apareceu na imprensa pois não foi reconhecido na rua. Claro que, antes de ser informada que tinha o B. na suite presidencial, sabia que devia estar lá alguém muito importante pela quantidade de snipers que tínhamos no telhado».

Ali, ninguém sabia das figuras públicas alojadas porque entravam pela cave e tinham acesso directo aos quartos. Por norma, era-lhes atribuído um nome fictício e só quem lidava com o cliente estava a par da pessoa por detrás do nome. Para o resto do pessoal do hotel, aparecia na lista uma “Pocahontas” ou um “Peter Pan”.

Pedi a Constança que partilhasse outros detalhes sobre serviços de acompanhantes. «Enquanto lá estive, a maioria dos clientes que requeriam serviço de acompanhantes era célebre. Quanto aos clientes regulares, já conhecíamos os seus hábitos. Tínhamos um cliente muito curioso… era brasileiro. De três em três semanas passava cerca de quatro noites no hotel e requisitava sempre acompanhantes. Alugava uma parte do 11.º piso, incluindo a suite presidencial, e aquilo era um regabofe! À saída do elevador, a parte direita era reservada aos amigos que o acompanhavam. Havia sempre um aparato porque éramos directa ou indirectamente, como lhe queira chamar, “comprados”: recebíamos muito boas gorjetas por cada contacto com o cliente. No meu caso, era responsável por fazer um double check posterior à vistoria da governanta de andares, e também tinha a meu cargo a reposição de todo o stock de kitchenette e bar, equipados com um frigorífico duplo, de duas portas, onde havia muito rum, muita tequila e muito Red Bull… Também era minha função colocar diariamente um mimo, pelo facto de ser cliente VIP. No caso, aquele cliente tinha direito, todos os dias, a uma cesta de frutas frescas e um Porto de 20 anos. Eu fazia a reposição e, cada vez que era chamada ao quarto, recebia cinquenta euros. Isto foi em 2006 e a gorjeta não era um valor diário. Era por cada ida ao quarto para a reposição de produtos ou para o room service. Este cliente contratava sempre uma “matriarca” que já não estava activa no serviço de acompanhantes, mas era a responsável pela contratação de algumas “miúdas”. Inclusive, esse cliente já trazia algumas acompanhantes com ele. O cliente aparecia como exportador de tubos de petróleo mas nós receávamos que ele exportasse “miúdas”, uma vez que eram sempre muito novas… brasileiras. Achávamos que podia estar ligado a alguma rede de tráfico humano, mas não havia provas. No hotel, as acompanhantes não eram necessariamente escondidas dos espaços de circulação. Elas passavam pelo lóbi. Elas vestiam tão bem… vestiam roupas de grandes estilistas… Just Cavalli, Dolce e Gabbana ou Channel e, portanto, vestiam muito caro. Ao passarmos por elas e por eles, porque também havia “eles”, não sabíamos exactamente se estávamos a passar por um cliente ou por uma acompanhante. No início, eu não sabia identificar. Aliás, para mim foi chocante perceber que aquilo acontecia.

No caso, aquele cliente tinha direito, todos os dias, a uma cesta de frutas frescas e um Porto de 20 anos. Eu fazia a reposição e, cada vez que era chamada ao quarto, recebia cinquenta euros. Isto foi em 2006 e a gorjeta não era um valor diário. Era por cada ida ao quarto para a reposição de produtos ou para o room service.

A primeira vez que me deparei com aquela situação ainda estava como estagiária. Substitui uma colega com baixa de gravidez e ocupei o seu lugar. Quando chegou aquele cliente e fomos à suite, ela disse-me: “Olha, agora se calhar vais ver uma coisa que nunca viste… mas faz o teu ar natural”. Eu entrei no quarto e o meu ar “natural” foi o queixo caído, porque havia… um imenso bacanal na sala de estar da suite… − “Show de strip tease?”, pergunto − Não, sexo. As miúdas, de cada vez que entrávamos, estavam semidespidas com um fio-dental, ou usavam um baby-doll transparente. O nosso cliente estava sempre à secretária, ao computador, com uma menina junto dele… aquilo foi tratamento de choque. Nós, para eles, éramos invisíveis. Aliás, era sempre uma das meninas que nos vinha entregar a gorjeta. Eu só recordo uma situação em que o cliente me veio dar a gorjeta em mãos. Ele pediu desculpas por não ter notas de cinquenta… e deu-me uma de cem euros. Para mim, foi óptimo. Na suite havia muita cocaína e, durante a estada, as empregadas de limpeza estavam proibidas de tocar na mesa da sala de estar. Depois da primeira vez, habituei-me e passou a ser normal. Quando o concierge via a reserva daquele cliente, já sabia como proceder. Nós acabávamos por ter alguns contactos até porque recebíamos gorjetas das acompanhantes se estabelecêssemos a ligação. O concierge tinha os contactos de todos (homens e mulheres acompanhantes, para além da matriarca) e fazia quase uma “subcontratação”, embora o termo seja bastante pesado», confessava-me Constança Rebelo. Perguntei se aquele caso era o que mais tinha retido na sua memória. “Este cliente era completamente exuberante mas, noutras situações, eram mais discretos. Aqui era uma questão sexual mas havia a outra vertente: a dos homens de negócios que “precisavam” de ter alguém a fazer-lhes companhia à mesa. Nesse caso, a maioria, ou mesmo a totalidade dos acompanhantes, eram pessoas com formação superior. Tinham de saber fazer conversa quando saíam com o cliente. Muitos deles encontravam-se na recepção e saíam logo. Outros – e esses, acredito que tivessem um propósito sexual – subiam ao quarto. Quando os acompanhantes eram do sexo masculino, na maioria das vezes eram requisitados por parte de mulheres que viajavam sozinhas. Outras vezes ainda, podia ser requisitado um terceiro elemento para o quarto do casal, tanto feminino como masculino. Chegou a acontecer». A partir de outros depoimentos, foi possível identificar que muitos hotéis portugueses dispõem de um “book” secreto, contendo uma lista de números de telefone de acompanhantes. Essa lista, oficialmente inexistente, só é dada a conhecer mediante um pedido dos hóspedes à recepção, e pressupõe informação partilhada por vias não-formais.

"O cliente aparecia como exportador de tubos de petróleo mas nós receávamos que ele exportasse “miúdas”, uma vez que eram sempre muito novas… brasileiras. Achávamos que podia estar ligado a alguma rede de tráfico humano, mas não havia provas. No hotel, as acompanhantes não eram necessariamente escondidas dos espaços de circulação. Elas passavam pelo lóbi. Elas vestiam tão bem… vestiam roupas de grandes estilistas… Just Cavalli, Dolce e Gabbana ou Channel e, portanto, vestiam muito caro. Ao passarmos por elas e por eles, porque também havia “eles”, não sabíamos exactamente se estávamos a passar por um cliente ou por uma acompanhante."

Extravasando o mercado do sexo no mundo hoteleiro, o tema do turismo sexual transformou-se num problema à escala transnacional desde que foram identificadas redes organizadas, algumas delas com a chancela de agências de viagem e cadeias hoteleiras. Veja-se a espiral de choque causada pela obra Plateforme, escrita por Michel Houellebecq. A questão tem sido crescentemente discutida na academia e por organizações não-governamentais****. O problema tem expressão mais dramática em realidades como a Tailândia ou o Brasil. No caso do Brasil, uma parte do êxito do país enquanto destino turístico está ligada a uma persistente sexualização da imagem da mulher brasileira, de que não estão ausentes responsabilidades na promoção institucional do destino. O mito da “orla caliente” faz com que o turista sexual vá cada vez mais espreitar os diferentes “sex tours”, dos quais as cadeias hoteleiras fazem parte integrante*****.

Sem dúvida que a norma de confidencialidade relativa a informações sobre o cliente se relaciona com o facto de um hotel ser considerado um prolongamento da vida privada, e não pública, do indivíduo. Permanece o conceito de espaço de segredo, impessoal, transitório e cúmplice. Mas existe também o outro lado. Figuras públicas houve, sobretudo provenientes do meio artístico, que adoptaram o hotel como sua residência, fundindo público e privado. Em Portugal, o caso mais conhecido é o da actriz Beatriz Costa. Residente no Tivoli Lisboa desde a década de 1950, mais precisamente no quarto 600, Beatriz Costa foi, sem dúvida, por mais de 30 anos, parte da “alma” do hotel. Podia ler-se esta frase de homenagem numa exposição organizada em sua honra. O Tivoli baptizou mesmo um dos seus restaurantes com o nome da actriz, fazendo jus à memória de quem transformou o hotel na sua própria casa. Coco Chanel foi outra estrela que escolheu um quarto de hotel como residência fixa. Optou pelo Ritz, em Paris, e ali viveu também durante 30 anos até à sua morte, em 1971.

"Quando os acompanhantes eram do sexo masculino, na maioria das vezes eram requisitados por parte de mulheres que viajavam sozinhas. Outras vezes ainda, podia ser requisitado um terceiro elemento para o quarto do casal, tanto feminino como masculino. Chegou a acontecer."

O caso do Chelsea Hotel, em Nova Iorque, representa talvez o paradigma mais exemplar de um hotel no qual um vasto conjunto de artistas, escritores e figuras famosas decidiram fixar residência. Entre tantos, destacam-se os nomes de Andy Warhol, Marilyn Monroe, Arthur C. Clarke, Leonard Cohen, Bob Dylan ou Patti Smith. A exposição da fotógrafa Rita Barros, também residente de longa duração no Chelsea Hotel, revelou como o espaço se abria a uma liberdade que assumia múltiplas formas, da vida privada à expressão de valores.

Na hotelaria, é prática comum a regra segundo a qual «o colaborador está impedido de frequentar o hotel na qualidade de cliente, nos seis meses imediatos à sua saída», informou-me Maria Zaire. Esta regra sucede para evitar a probabilidade de um cliente ser confrontado com a situação de ver um antigo funcionário ser tratado como cliente, isto é, assumindo um estatuto contrário ao de servidor. Pedro Vaz confessou-me ainda que a cadeia Starwood, recentemente adquirida pela Marriott, proibe o colaborador de prestar quaisquer declarações à comunicação social quando hospeda clientes famosos. Apesar deste protocolo, há funcionários a “furar as regras”, muito provavelmente contra o pagamento de quantias monetárias com capacidade suficiente para cobrir os riscos de “ser apanhado”. Há cerca de cinco anos, quando uma célebre boys band ficou hospedada num prestigiado hotel de Lisboa, após ter sido anunciado um concerto esgotado na maior sala de espectáculos do país, o Meo Arena, a banda cancelou o evento pouco tempo antes da hora prevista para o seu início. O hotel, e o meu confidente, seu antigo colaborador, conhecem as razões que levaram à tomada desta medida extrema. Porém, a contenção da informação foi eficaz, e a versão oficial sobrepôs-se à oficiosa. Quanto aos acontecimentos reais, não foi autorizada a sua divulgação. Não podendo levantar o véu por completo, fico a saber que não estiveram ausentes de responsabilidade os pedidos sucessivos de bebida e companhia, através de contactos informais estabelecidos pelos boys.

Na hotelaria, é prática comum a regra segundo a qual "o colaborador está impedido de frequentar o hotel na qualidade de cliente, nos seis meses imediatos à sua saída".

Voltando ao Paladino, pergunto a Simão Nevada se há muito desgaste na profissão de recepcionista, pensando no grau de exposição, esforço de contenção emocional, solicitude e capacidade de responder a situações imprevistas. Questiono ainda até que ponto um hotel como o Paladino pode, ou deve, preferir que os mesmos funcionários se mantenham em postos de contacto, ou se, de outra forma, seria preferível dar-lhes a oportunidade
de trabalhar nos bastidores, para reequilibrar forças. Inclinou-se mais para a estratégia da manutenção, e defendeu este argumento com base na fidelização ao cliente, uma vez que este se sentiria grato por rever alguém familiar, como numa espécie de regresso a casa, na qual ambos vão envelhecendo e se comprazem com isso. Ademais, o cliente não se sente seguro com mudanças permanentes. Simão dizia: «Há muita interacção na recepção e eu prezo muito isso. E a hotelaria é assim: trabalhar com alegria, trabalhar com vontade. É muito importante que haja um bom ambiente. Trabalhar “à séria”, mas a brincar: tem que haver equilíbrio e responsabilidade porque nós aqui trabalhamos em conjunto, estamos a trabalhar todos para o mesmo. Tem que haver uma entreajuda grande. Gosto do que faço. Eu já saltei algumas vezes de hotel em hotel e julgo que isso é importante a nível curricular. Há sempre alturas em que chegamos a um sítio e dizemos que já não vamos tirar nada. Aí tento sempre procurar outra situação». Antes de se despedir, Simão deixou ainda a ideia de que a hotelaria portuguesa dá cartas à de fora: «nós, em termos de acolhimento, somos muito bons. Demasiado».

A cadeia Starwood, recentemente adquirida pela Marriott, proíbe o colaborador de prestar quaisquer declarações à comunicação social quando hospeda clientes famosos. Apesar deste protocolo, há funcionários a “furar as regras”, muito provavelmente contra o pagamento de quantias monetárias com capacidade suficiente para cobrir os riscos de “ser apanhado”. 

Neste momento, a “excelência” é uma palavra substantiva genericamente aplicada à qualidade do sector hoteleiro português. Com efeito, Portugal conquistou um total de catorze prémios a nível europeu, nos World Travel Awards, atribuídos em 2015 – uma efeméride vulgarmente conhecida por “óscares do turismo”. Entre a lista dos prémios conquistados na categoria Europa, contam-se exemplos como “Destino de Praia”, “Resort de Praia”, “Hotel para Negócios”, “Design Hotel”, “Hotel Ecológico” e “Entidade de Turismo”. Este palmarés foi superior ao de países como Espanha ou Itália. Em 2013, o turismo em Portugal já tinha conquistado mais do triplo dos prémios que em 2012, fosse pelos destinos mais baratos, praias maravilhosamente únicas”, um Alentejo “obrigatório” ou o pastel de nata como um dos melhores doces da Europa. De acordo com os dados de 2015, Portugal somara cerca de 50 distinções em apenas nove meses, contra os quinze prémios recebidos durante o ano de 2012. No ano de 2016, Portugal estava nomeado em 91 categorias e venceu em 24, superando a performance do ano anterior. Entre as entidades responsáveis pela atribuição dos galardões, constavam inúmeros jornais e canais de prestígio internacional, como o New York Times, o The Guardian ou The Lonely Planet.

Na ocasião em que pernoitei no Paladino, antes de regressar ao quarto apercebi-me de que a fila de clientes se adensava na recepção para dar entrada no hotel. Já passava das onze da noite e ouvia-se a voz ao longe: “Quem está a seguir?” Já no quarto, o som dos aviões anunciava manobras de aterragem, enquanto outros descolavam. O tráfego aéreo sobre Lisboa nunca atingiu tamanha intensidade. Segundo informação divulgada pela ANA, os aeroportos registaram o maior crescimento de sempre em 2015, com uma subida de 11% face ao ano anterior, totalizando 38,9milhões de passageiros. Os Açores tiveram a maior subida, 25,7%, representando 1,6 milhões de passageiros. O aeroporto Humberto Delgado ultrapassou a barreira dos 20 milhões de passageiros no ano de 2015, número que representa uma subida de 10,7% face ao ano anterior (8,1 milhões) e um crescimento de 16,7% face a 2014. Entre partidas e chegadas, há ainda aquela contabilidade, tantas vezes oculta, referente ao número de pessoas que viaja por outras razões que não as de lazer. A mobilidade, forçada ou voluntária, com fronteiras ténues a separar cada uma delas, também nunca
terá atingido tais patamares.

* Prestigiado hotel de Lisboa.
** Nome fictício.
***Máximo representante de uma das maiores empresas à escala global.
**** Um dos momentos fundadores do alerta internacional para a realidade do turismo sexual ocorreu no I Congresso Mundial Contra a Exploração Sexual de Crianças, realizado em Estocolmo, em 1996.
***** Fernando Feijó e Flávio Calazans, A Imagem Internacional do Turismo Sexual no Brasil: o “Prostiturismo” no Marketing Turístico, UNESP, Brasil.

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