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Ian Curtis: 40 anos depois, o que pensaria ele de tudo isto?

Nesta data, 18 de maio de 2020, passam 40 anos da morte de um dos mais trágicos bardos da pop alternativa. E o mistério permanece: exatamente que homem foi? Ainda hoje não sabemos.

A semana é a que vai de 14 a 21 de maio de 2020 e o single mais vendido no Reino Unido é “Stuck with U”, uma muito razoável balada a meias entre a rainha Ariana Grande e Justin Bieber. Não é a melhor canção de Ariana Grande (rainha), não está (nem de longe nem de perto) ao nível de “7 words” e da magistral “Thank u, next”, uma das grandes canções de amor da história das canções de amor (e com um fundo musical entre o r’n’b e o jazz que era perfeito).

Ainda assim, é preciso recuarmos à semana que foi de 20 a 27 de fevereiro para encontrarmos outra canção decente no topo da tabela de vendas do UK, no caso “No Time to Die”, de Billie Eilish. E a pergunta que nos ocorre fazer é: “O que pensaria Ian Curtis de tudo isto?”.

Enumerar exemplos de momentos em que a questão “O que pensaria Ian Curtis de tudo isto?” revela-se extraordinariamente válida é fácil: o Sporting auto-destruir-se quando vai à frente do campeonato, o mundo ser destruído por uma pandemia, o fascismo lentamente ascender, a economia entrar em colapso porque os seres humanos se esconderam em casa com medo de um vírus, ou termos cigarros e não encontramos um isqueiro.

[“She’s Lost Control” ao vivo na BBC 4 em 1979:]

Mas a pergunta é ainda mais pertinente hoje, 18 de maio de 2020, porque é nesta data que passam 40 anos da morte de um dos mais trágicos bardos da pop alternativa da segunda metade do século XX. O que pensaria Ian Curtis de Ariana Grande? O que pensaria Ian Curtis de Billie Eilish?

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A resposta seria mais fácil se fizéssemos o exercício com Cobain: Kurt adorá-las-ia e sabemo-lo porque o seu amor por divas foi profusamente relatado, porque era um feminista empedernido que adorava vestir-se de mulher nos concertos, porque tinha um secreto apelo por pop comercial – e porque tinha um sentido de humor danado, subversivo mas danado.

Exatamente que homem foi e porque raio se matou aos 23, quase 24 anos de idade, na véspera de uma digressão pelos EUA que podia ter tornado os Joy Division em estrelas – continuamos a não saber nada disto.

Mas Cobain exisitiu numa época em que os passos de uma estrela eram seguidos ao milímetro – sabíamos as sapatilhas que ele usava, a marca de jeans, o tipo de casaco de malha que apreciava, os livros que leu, as bandas que admirava, a sua droga de eleição – até os seus diários lemos.

Com Curtis, o mistério permanece: exatamente que homem foi e porque raio se matou aos 23, quase 24 anos de idade, na véspera de uma digressão pelos EUA que podia ter tornado os Joy Division em estrelas – continuamos a não saber nada disto, mesmo depois de Deborah Curtis, a sua mulher, ter escrito Touching From a Distance, mesmo depois de “Control”, o ótimo filme de Anton Corbijn, que fora amigo próximo do vocalista e poeta.

[o trailer de “Control”, filme de Anton Corbijn:]

Para entender Ian Curtis temos de recuar àquela época, lembrar que Curtis nasceu em 1956, na altura em que o rock’n’roll nascia, que enquanto adolescente só havia um programa de televisão que passava música (como se dizia então) alternativa, chamado “So It Goes” — passava na cadeia de televisão Granada e era apresentado por Tony Wilson, que viria a criar a Factory Records, que editou os discos dos Joy Division. Um pormenor recuperado em “24 Hour Party People” (o filme de Michael Winterbottom sobre a cena musical de Manchester, dos Joy Division aos Happy Mondays e aos New Order) diz bem do ambiente de então: o contrato entre os Joy Division e a Factory foi escrito e assinado com sangue e não tinha qualquer validade legal.

Não havia internet e vivia-se mais de factos que de mitos. Ian alimentava-se dos mitos da pop alternativa, talvez mais que os seus colegas – era um bocadinho mais sensível, um bocadinho mais romântico (no sentido suicida do termo), mais possuído por uma estranha culpa, isto apesar de anos depois Bernard Sumner, o número dois dos Joy Division e posteriormente número um dos New Order (a banda que nasceu dos cinzas do suicídio de Ian Curtis), afirmar que Curtis tinha imenso sentido de humor, apesar do negrume das suas letras.

Não eram só as letras – ao início, antes de qualquer disco, os Joy Division eram apenas mais uma banda punk; isto é notório em “Warsaw”, faixa de Substance, que é uma recolha de temas que não entraram em Unknown Pleasures (de 1979) e Closer (1980), os dois discos oficiais da banda.

[“Warsaw”:]

Havia um certo fascínio com o imaginário nazi – Joy Divisions era o nome dado pelos nazis aos grupos de mulheres judias dos campos de concentração que eram mantidas com fim a servirem de servas sexuais dos partidários de Hitler; antes de se chamarem Joy Division, os Joy Division haviam-se chamado Warsaw.

E havia um claro fascínio com a morte, o mórbido, a raiva e outras emoções extremas ou o seu oposto, o vazio emocional. Não havia, note-se, pingo de humor nas letras – há, inclusive, um sentido de sufoco (“I feel it clossing in / day in day out”, cantava Curtis em “Digital”), de mal-estar existencial e físico, desespero e alienação, o que só se acentuou com o tempo e os discos.

Com o tempo e os discos, a voz de Ian Curtis vai mudando, deixando de soar a garoto e adquirindo um tom cada vez mais solene, quase de profeta. Os Joy Division podiam ter muito sentido de humor nas suas vidas privadas – e o hedonismo das canções dos New Order (e da própria banda) até leva a crer que sim — mas é difícil imaginar Ian Curtis a não se levar completamente a sério a cada segundo da sua vida.

Um ser humano em decomposição

Ian Curtis nasceu em 1956, num subúrbio de Manchester, no seio de uma família de classe média – mas nascer-se na classe média não significa que se seja médio, e desde miúdo Curtis mostrou uma rara capacidade para a vida académica, conseguindo várias bolsas. Tinha um apetite inconsolável por literatura e com o tempo acabou por definir um universo de leituras: Sartre, Dostoevsky, Nietzsche, Burroughs; também sentiu o apelo da poesia, em particular dos malditos: Rimbaud e Baudelaire.

As contradições humanas são infindas: o rapaz de classe média que era um primor nas aulas e lia infernalmente também se ofereceu para fazer voluntariado junto dos mais idosos – mas isto era apenas uma desculpa para esperar que eles adormecessem e roubar-lhes as drogas legais. Uma destas diatribes valeu-lhe a primeira ida ao hospital para uma lavagem ao estômago.

Um rapaz certinho, bem comportado e bom aluno andava em luta com um rapaz que gostava de drogas, tinha leituras esquisitas e se apaixonara pelos Sex Pistols, pelos Velvet Undergorund e pelos Stooges de Iggy Pop. Quem nunca?

A revolução dos Sex Pistols não era a de Curtis – os Pistols foram um cometa de raiva e anfetaminas cuspido contra a sociedade; a revolução de Curtis era interna, a procura de um sentido, de uma fuga à vida de funcionário público que levava.

Diz o mito que foi o concerto dos Sex Pistols em 1976 que levou Curtis, Bernard Sumner e Peter Hook, amigos de infância, a formar uma banda. O punk varria o UK numa altura em que o UK, na sua versão oficial, era uma seca, ainda a esforçar-se por mostrar aquela imagem de sobriedade que colamos aos britânicos mas que não corresponde minimamente à realidade, como qualquer pessoa que tenha estado num pub depois das 17 sabe.

É quase impossível para um miúdo de hoje compreender a importância dos Pistols: o Reino Unido varria tanto lixo para debaixo do tapete, a imagem que projetava de si estava tão longe do que eram as pessoas dos subúrbios, on the dole, que quando os Pistols surgiram não foi como se se tivesse quebrado a fina camada de hipocrisia social que todas as sociedades têm – foi como se se tivessem arrancado placas geológicas de hipocrisia social, revelando o verdadeiro entulho britânico.

Mas a revolução dos Pistols não era a de Curtis – os Pistols foram um cometa de raiva e anfetaminas cuspido contra a sociedade; a revolução de Curtis era interna, a procura de um sentido, de uma fuga à vida de funcionário público que levava. Aos 19 Ian estava casado, aos 23 teve uma filha e eventualmente terá tido uma amante, a jornalista e promotora musical belga Annik Honoré, que mantém até hoje que a relação entre os dois era puramente platónica.

[“Shadowplay” ao vivo na Granada TV em 1978:]

E Ian era epiléptico, pormenor nada despiciendo no desfecho da sua história. Não raras vezes tinha ataques em palco e a medicação que tomava tornava-o ainda mais isolado – o facto de continuar a fumar, beber e dormir pouco, contra o conselho dos médicos, degradou-lhe a saúde – física e mental –, mais ainda com as digressões. Quando a filha nasceu, Ian não pôde segurá-la ao colo porque o seu estado não o permitia.

Unknown Pleasures, o disco de estreia dos Joy Division, era um grande álbum de uma banda que já deixara para trás o punk (embora ao vivo essa faceta se mantivesse), muito à conta do trabalho do produtor Martin Hannett, que mudou o som da banda, enchendo-o de espaço e ecos.

Inicialmente, a banda não achou graça à mudança sonora – queriam ser punks, rapazes perigosos – mas na verdade em Closer essas mudanças foram mais acentuadas, criando o distintivo “som-Joy-Division”, uma espécie de som glaciar, um som que parecia vir da câmara secreta de uma Igreja, da câmara secreta em que se guardava a sabedoria e, com ela, o horror.

Algures num subúrbio de Lisboa ou num quarto atamancado de Albergaria-a-Velha, um puto porá a tocar Closer e, ao ouvir Curtis cantar, na extraordinária "Passover", “This is the crisis I knew had to come / Destroying the balance I'd kept”, e sentir-se-á menos só.

Ouvindo Closer hoje nota-se que há um ser humano em decomposição – e havia: com a falta de descanso e o álcool a interferirem na medicação, os ataques epilépticos de Curtis entraram numa espiral de descontrolo; sentia-se alienado do seu trabalho, da sua mulher e da sua filha, sentia culpa pela paixão por Honoré (como confessou a Sumner) e não é exatamente certo quais os seus sentimentos sobre o possível estrelato que podia ou não vir.

Um mito sem chave de leitura

A 7 de Abril de 1980, Ian Curtis, envergonhado pelos ataques epilépticos em público, deprimido pelo contexto da sua vida sentimental, tentou suicidar-se pela primeira vez, recorrendo a uma sobredose dos seus medicamentos para a epilepsia. Alguns concertos foram cancelados, mas a digressão pelos EUA e pelo Canadá manteve-se: a 18 de maio era suposto ele encontrar-se no aeroporto de Manchester com os colegas de banda para encetar a viagem.

E na manhã de 18 de maio, há 40 anos, depois de ver “Stroszek”, um filme de 1977 de Werner Herzog, Ian enforcou-se ao som de The Idiot, o primeiro álbum a solo do seu ídolo Iggy Pop.

O que teria acontecido se Ian não se tivesse suicidado? Como olharia ele hoje para as tabelas de vendas? Que música faria? É difícil dizer – consigo imaginar Cobain a alternar entre discos elétricos dos Nirvana e a solo, com um som mais country e gradualmente a tornar-se respeitável e entregar um Grammy a Ariana Grande, verdadeiramente feliz por ela.

[“Transmission”, ao vivo na BBC4 em 2020:]

Já com Curtis o exercício é quase impossível. Não consigo imaginá-lo a encher-se de cocaína e MD, como os New Order fizeram na sua fase hedonista, não porque Ian não apreciasse drogas, mas porque não apreciava hedonismo (era pouco macho, demasiado culpado para isso).

Mais depressa imagino Ian a retirar-se do mundo da música, tipo Bill Fay, e a admirar à distância Mac Miller, o rapper ex-namorado de Ariana Grande, que morreu de sobredose de opiáceos. Mas que sei eu? Isto é apenas especulação à volta de um mito esfíngico que não nos oferece nenhuma chave de leitura e, provavelmente, não encerra nenhum segredo que não seja prosaico.

Mas algures num subúrbio de Lisboa ou num quarto atamancado de Albergaria-a-Velha, um puto porá a tocar Closer e, ao ouvir Curtis cantar, na extraordinária “Passover”, “This is the crisis I knew had to come / Destroying the balance I’d kept”, sentir-se-á menos só e perpetuará o seu legado por mais um geração. E numa qualquer data redonda esse puto – e muitos outros – dirão obrigado, Ian, até sempre.

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