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Sean Gallup

Sean Gallup

Imunidade: A corrente antivacinação e os seus perigos

O pânico contra as vacinas é irracional. Aqui desmontam-se os medos e combatem-se as ideias feitas sobre os perigos da vacinação.

Em “Imunidade“, livro que a chancela Elsinore publica a 31 de agosto, somos confrontados com a irracionalidade do medo que se colou à vacinação. Esse medo é visto à escala local e global, num esforço sistemático para o explicar e desmontar, fazendo do trabalho da professora e ensaísta Eula Biss uma análise profunda sobre os entendimentos feitos em nome do bem comum. O livro foi finalista do National Book Critics Circle Award e o Observador faz a pré-publicação de um excerto.

O meu pai tem uma cicatriz no braço esquerdo, deixada pela vacina contra a varíola mais de meio século atrás. Essa vacina é responsável pela erradicação mundial da varíola, com o último caso de infeção natural registado no ano em que nasci. Três anos mais tarde, em 1980, a doença que tinha dizimado mais gente no século XX do que todas as guerras desse século era oficialmente declarada extinta na Terra.

A varíola deixou de ser uma doença, passando a representar apenas uma potencial arma de guerra

Atualmente, o vírus da varíola existe apenas em dois laboratórios, um nos Estados Unidos, outro na Rússia. Pouco depois da erradicação da doença, a OMS definiu uma série de datas limite para a destruição dessas reservas, mas nenhum dos países as cumpriu. Em 2011, numa discussão sobre a matéria, os Estados Unidos argumentaram que precisavam de manter o vírus durante mais tempo para que pudesse ser desenvolvida uma vacina melhor, apenas por segurança. A varíola deixou de ser uma doença, passando a representar apenas uma potencial arma de guerra. E, mesmo que as últimas reservas sejam destruídas, pode continuar a ser uma arma. Há muita coisa que não sabemos sobre a varíola, incluindo o motivo que a torna uma doença tão virulenta, mas sabemos o suficiente, em teoria, para a ressuscitar num laboratório. “O nosso conhecimento”, como observa Carl Zimmer, “confere ao vírus uma espécie de imortalidade”.

Trinta anos depois do fim da vacinação generalizada contra a varíola nos Estados Unidos, o governo pediu aos investigadores da Universidade de Iowa para testarem a eficácia das reservas remanescentes da vacina. Isto passou-se no longo período após o 11 de Setembro, quando se antecipava qualquer tipo de ataque terrorista, incluindo o uso da varíola como arma biológica. A vacina da varíola provou ser eficaz mesmo depois de armazenada durante décadas e diluída para aumentar a reserva. Mas os resultados do teste à vacina, diz Patricia Winokur, diretora do Departamento de Investigação e Educação sobre Vacinas daquela universidade, seriam “inaceitáveis pelos padrões atuais”. Um terço das pessoas inoculadas com a vacina sofreu febres graves e erupções cutâneas, nalguns casos ficando doentes por vários dias.

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A vacina eliminou a varíola, mas continua a ser muito mais perigosa do que qualquer vacina atualmente vigente no programa de vacinação infantil. O risco de morte após a vacinação é de cerca de 1 em 1 milhão; e o risco de hospitalização, de 1 em 100 mil.

A vacina eliminou a varíola, mas continua a ser muito mais perigosa do que qualquer vacina atualmente vigente no programa de vacinação infantil. O risco de morte após a vacinação é de cerca de 1 em 1 milhão; e o risco de hospitalização, de 1 em 100 mil. Muitas das crianças da geração do meu pai correram esse risco. Foram a geração dos Pioneiros da Pólio, as 650 mil crianças de todo o país voluntariadas pelos pais para testarem a primeira vacina contra a poliomielite. Isto, depois de Jonas Salk ter testado a vacina nele próprio e nos seus três filhos. Vi fotografias dos Pioneiros da Pólio: crianças em idade escolar ligeiramente mais velhas do que o meu filho, dispostas em fila com a manga da camisa arregaçada, a sorrir para a câmara.”Tinham medo da pólio e da bomba”, escreve Jane Smith sobre os seus progenitores, “e costumavam pensar nas duas nos mesmos termos, como forças súbitas que atacariam sem pré-aviso e destruiriam as suas vidas e as dos filhos”. Os Pioneiros da Pólio nasceram no seguimento de Hiroxima, de pais que em muitos casos tinham sido alistados para a guerra. Os formulários que assinaram para autorizarem os filhos a receber a vacina experimental não pediam o seu consentimento: permitiam-lhes “requerer” participarem no teste. Hoje em dia, é difícil imaginar pais a fazerem semelhante requerimento. Embora haja vários pedidos para que sejam levados a cabo mais testes a vacinas, é tacitamente aceite que não queremos que os nossos filhos sejam sujeitos a esse tipo de experiências.

Diferentemente do que acontece com a varíola, a maioria das pessoas que contraem pólio é portadora da doença sem nunca ter os sintomas nem desenvolver paralisia, embora possa transmitir a doença a outros.

A poliomielite, vulgarmente conhecida por pólio, será provavelmente a próxima doença a ser erradicada através da vacinação, apesar de este projeto se revelar mais difícil. Diferentemente do que acontece com a varíola, a maioria das pessoas que contraem pólio é portadora da doença sem nunca ter os sintomas nem desenvolver paralisia, embora possa transmitir a doença a outros. Não há nenhuma erupção visível que possa ser usada para identificar e isolar cada caso, como acontece na varíola, pelo que a eliminação da pólio está mais dependente da vacinação universal.

Atualmente, a poliomielite só é endémica no Paquistão, no Afeganistão e na Nigéria. Neste último país, a campanha para a erradicação da pólio chegou a um impasse em 2003, quando os receios de se tratar de uma armadilha dos poderes do Ocidente para esterilizar as crianças muçulmanas foram partilhados por líderes políticos e religiosos locais. “Acreditamos que novos hitlers adulteraram deliberadamente as vacinas orais da pólio com drogas antifertilidade e as contaminaram com alguns vírus conhecidos por provocarem VIH e sida”, sustentou o presidente do Conselho Supremo da Charia na Nigéria, instruindo os pais a recusarem a vacinação.

Num período de agressividade crescente do Ocidente em relação às nações muçulmanas, observa a antropóloga Maryam Yahya, os muçulmanos na Nigéria associaram a invasão do Iraque e do Afeganistão à invasão das suas casas por vacinadores ao domicílio. E, como a pólio era endémica numa região do país de maioria muçulmana, a campanha parecia tendenciosamente dirigida aos muçulmanos. Por outro lado, havia também a incerteza criada pela fratura do próprio Estado nigeriano. Quando grupos políticos adversários testaram a vacina oral contra a pólio, com o intuito de identificar a presença de estrogénios suscetíveis de afetarem a fertilidade, obtiveram-se resultados diferentes: um não encontrou nenhum; o outro encontrou vestígios. E havia ainda a falta de cuidados de saúde primários em todo o país. «Os nigerianos estão espantados com o facto de o governo federal, com o apoio da comunidade internacional, estar a gastar imensos recursos em vacinas “gratuitas” para a pólio, quando medicamentos básicos para tratar enfermidades menores estão fora do alcance da média da população», escreve Yahya. Com o pretexto da emergência em erradicar a poliomielite, outras doenças evitáveis como o sarampo não receberam a mesma atenção, mesmo tendo matado mais crianças.

imunidade

“O que se vai tornando cada vez mais visível nestas conversações”, sublinha Maryam Yahya, referindo-se ao trabalho que desenvolve na Nigéria, “é a falta de confiança no governo e no Ocidente, retratados por muitos como ‘parceiros no crime'”. Esta desconfiança, adverte, não deve ser subestimada, e os rumores sobre a vacinação devem ser entendidos como “uma construção idiomática que cristaliza um comentário válido sobre o campo mais vasto da experiência política em ambientes coloniais e pós-coloniais”. Em 2004, menos de um ano após o início do boicote, a Nigéria tinha passado a ser o centro de transmissão da pólio no mundo. A doença propagou-se a outros dezassete países, incluindo o Benim, o Botswana, o Burkina Faso, os Camarões, a República Centro-Africana, o Chade, a Costa do Marfim, a Etiópia, o Gana, a Guiné, o Mali, o Sudão e o Togo. O boicote terminou depois de as autoridades nigerianas aprovarem o uso de uma vacina contra a pólio produzida por uma companhia sediada num país muçulmano.

Na sua perseguição a Osama bin Laden, a CIA tinha usado uma falsa campanha de vacinação — a administração da vacina verdadeira contra a hepatite B, mas não as três doses necessárias para conferir imunidade — para colher provas de ADN que ajudassem à localização de Bin Laden.

Em 2012, um líder talibã no Norte do Paquistão baniu a vacinação contra a pólio na sua região até os Estados Unidos cessarem aí os ataques com drones. As campanhas de vacinação, alegava, eram uma forma de espionagem americana. Embora semelhante aos rumores de conspiração secreta na Nigéria, este caso, infelizmente, foi confirmado com mais facilidade. Na sua perseguição a Osama bin Laden, a CIA tinha usado uma falsa campanha de vacinação — a administração da vacina verdadeira contra a hepatite B, mas não as três doses necessárias para conferir imunidade — para colher provas de ADN que ajudassem à localização de Bin Laden. Uma fraude que, como outros atos de guerra, custaria as vidas de mulheres e crianças. O programa Lady Health Workers do Paquistão, uma equipa de cerca de 110 mil mulheres treinadas para prestarem serviços de saúde ao domicílio, já tinha passado por anos de intimidação brutal pelos talibãs e dificilmente precisaria de ser associado à CIA. Pouco depois de os talibãs banirem a imunização, nove vacinadores da pólio, cinco deles mulheres, foram assassinados numa série coordenada de ataques.

A campanha da poliomielite no Paquistão foi suspensa depois dos assassínios, mas quando foi retomada os assassínios recomeçaram igualmente, quer no Paquistão quer na Nigéria. Nove vacinadores foram abatidos a tiro na Nigéria em 2013 e, até ao momento em que escrevo, vinte e dois funcionários dos serviços de saúde foram mortos no Paquistão. Durante a suspensão da campanha de vacinação, o vírus da pólio com origem no Paquistão foi descoberto em amostras de esgoto no Egito, país que estava livre da poliomielite havia quase uma década. Posteriormente, foram relatados casos de pólio em Israel, Gaza e na Cisjordânia, além de treze crianças sírias que ficaram paralisadas. A capacidade de a doença se disseminar para além das fronteiras nacionais é parte do mecanismo que torna a recusa da vacina numa arma viável nos conflitos internacionais.

Numa cena de “Apocalypse Now”, mais assustadora do que qualquer outra imaginada por Francis Ford Coppola na adaptação que fez de Drácula, o coronel Kurtz conta a história do seu regresso a um campo de refugiados onde ajudara a vacinar crianças contra a pólio, apenas para descobrir que os braços das crianças tinham sido cortados. “Estavam ali numa pilha”, diz, “uma pilha de bracinhos”. Essa foi a pilha de bracinhos produzida pela Guerra do Vietname, numa evocação à pilha de mãos humanas produzida pelo Congo Belga, retratada por Joseph Conrad em “O Coração das Trevas”.

A capacidade de a pólio se disseminar para além das fronteiras nacionais é parte do mecanismo que torna a recusa da vacina numa arma viável nos conflitos internacionais.

Iria pensar nesses braços e mãos quando uma amiga nascida no Vietname durante a guerra me contou que tinha sido exposta no útero ao Agente Laranja. Depois de vir para os Estados Unidos, não vacinou os filhos quando eram bebés por uma série de razões, incluindo a ideia de que não era seguro. Custou-me discordar dela, sabendo que a minha noção de segurança foi forjada num ambiente mais protegido. Não podia pedir -lhe que pusesse em risco os seus filhos para benefício dos cidadãos do país que a pusera a ela em perigo. O melhor que podia fazer, decidi, era esperar que o corpo do meu próprio filho pudesse servir de escudo para os proteger de doenças. Se a vacinação pode ser arregimentada com vista a atos de guerra, também pode ser de importância vital em obras de amor.

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Na primavera de 1956, uma menina de cinco anos foi hospitalizada em Minamata, no Japão, com dificuldade em andar e falar, e convulsões. A irmã mais nova foi internada dois dias depois com os mesmos sintomas, e outras oito pessoas depressa tiveram igualmente de ser hospitalizadas. Ao investigar a misteriosa epidemia, os responsáveis pelos serviços de saúde descobriram que havia gatos com convulsões e comportamentos agressivos, gralhas que caíam do céu e peixes a flutuar na baía. A fábrica de produtos químicos em Minamata estava a despejar águas residuais contaminadas com mercúrio metílico na baía, que entretanto se acumulava nos peixes e crustáceos que as pessoas comiam. Mães saudáveis davam à luz bebés com danos neurológicos e milhares de pessoas viriam a sofrer de envenenamento por mercúrio.

Em 2013, deu-se o nome de Minamata a um tratado internacional destinado a proibir o uso de mercúrio. Nele, garantia -se que as minas de mercúrio seriam encerradas faseadamente até 2020, que as emissões das centrais energéticas seriam controladas e que muitos produtos contendo mercúrio — incluindo pilhas, lâmpadas, cosméticos e pesticidas — deixariam de ser fabricados, importados ou exportados. Toda a gente no mundo iria beneficiar com essa medida, observou o diretor do Programa Ambiental das Nações Unidas.

Um dos produtos isentos da proibição que provocou mais polémica foi o timerosal, um conservante à base de mercúrio etílico usado nalgumas vacinas. A OMS recomendou que o timerosal fosse excluído da interdição no interesse da saúde mundial e a Academia Americana de Pediatras (AAP) apoiou a recomendação. Como comentariam dois membros da AAP, isto constituiu um “retrocesso significativo” em relação à posição da instituição em 1999, quando tinha exigido a remoção do timerosal das vacinas infantis nos Estados Unidos. Retrocesso esse que desencadearia acusações de que os EUA não se incomodavam que houvesse mercúrio nas vacinas dos outros, desde que as suas estivessem livres da substância. Subentendia-se assim que os Estados Unidos estavam a submeter o resto do mundo ao seu lixo tóxico, o que era fácil de acreditar por ser verdade noutros contextos.

Atualmente, as vacinas que incluem timerosal são usadas em 120 países para salvar aproximadamente 1,4 milhões de vidas por ano. O timerosal é essencial nas vacinas multidose, que envolvem menos custos na produção, armazenamento e transporte do que as vacinas de dose única.

A declaração da AAP em 1999 recomendava a suspensão do uso do timerosal enquanto se avaliava se era seguro, mas não exprimia muita preocupação quanto ao conservante. Como era referido, já se usava timerosal em vacinas desde a década de 1930. Havia poucas provas de que fosse perigoso, mas, na altura, também havia poucas provas de que fosse seguro. Estava em curso uma avaliação mais vasta da exposição ao mercúrio, e a AAP emitiu a sua declaração pouco depois de a AFAM descobrir que a exposição total de uma criança ao mercúrio etílico ao longo do calendário completo de vacinação podia exceder potencialmente o limite federal estipulado para o mercúrio metílico, aquilo que causara envenenamentos em Minamata. Estudos subsequentes revelaram “profundas diferenças” entre o mercúrio etílico e o metílico, sendo uma das mais significativas que o primeiro não está associado aos efeitos neurotóxicos do segundo. Refletindo sobre a pesquisa conduzida nos treze anos que se seguiram à declaração da AAP sobre o timerosal, um artigo publicado em 2012 na revista Pediatrics concluiu: “Não há provas científicas credíveis de que o uso de timerosal em vacinas apresente qualquer risco para a saúde humana.”

Atualmente, as vacinas que incluem timerosal são usadas em 120 países para salvar aproximadamente 1,4 milhões de vidas por ano. O timerosal é essencial nas vacinas multidose, que envolvem menos custos na produção, armazenamento e transporte do que as vacinas de dose única. Alguns países optam por vacinas multidose não só por serem mais económicas e produzirem menos resíduos, mas também por não exigirem refrigeração. Há lugares, sobretudo em países mais pobres, onde a interdição de timerosal seria realmente uma interdição da vacinação contra a difteria, a tosse convulsa, a hepatite B e o tétano.

No caso de uma pandemia, o timerosal, que permite uma produção e distribuição mais rápidas das vacinas, ainda pode revelar-se tão essencial nos Estados Unidos como o é noutros países. 

O antigo presidente da AAP sugeriu que, se soubéssemos então o que sabemos hoje, a diretiva de 1999 sobre o timerosal nunca teria sido escrita. Talvez, embora a declaração da AAP fosse uma resposta não apenas à falta de dados sobre o timerosal, mas também ao clima social da época. O estudo de Andrew Wakefield datado de 1998, no qual se relacionava a vacina SRP com o autismo, estava a causar uma avalancha de pânico, acrescentada ao alarme já suscitado por um estudo de 1981 que sugeria que a vacina múltipla difteria-tétano-coqueluche causava lesões cerebrais. Estudos posteriores em Inglaterra, na Dinamarca e nos Estados Unidos refutaram essa conclusão, mas nenhuma nova descoberta conseguiu anular o alarme. A declaração da AAP, um esforço para preservar a confiança nas vacinas, viria a ser usada para exportar medos americanos.

No caso de uma pandemia, o timerosal, que permite uma produção e distribuição mais rápidas das vacinas, ainda pode revelar-se tão essencial nos Estados Unidos como o é noutros países. Por agora, usamos dispendiosas vacinas de dose única pela mesma razão que muitos outros países ricos: porque podemos. O SafeMinds, um grupo de apoio às crianças com autismo que figurou entre os mais enfáticos opositores da isenção do timerosal no Tratado de Minamata, insinuou repetidamente que a isenção era motivada por dinheiro. E era, na medida em que foi motivada pela necessidade de uma vacinação acessível em países de baixos rendimentos. Tal como alguns investigadores clínicos internacionais comentariam na Pediatrics, os grupos que se opunham à isenção eram exclusivamente organizações não governamentais, como o SafeMinds, oriundas de países de altos rendimentos onde as taxas de vacinação não seriam afetadas pela interdição do timerosal. Os países mais ricos dão-se ao luxo de ter medos que o resto do mundo não pode comportar.

“O capital”, escreveu Karl Marx, “é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas para sugar o trabalho vivo, e quanto mais tempo viver, mais trabalho sugará”. Se na Grécia antiga os vampiros sugavam o sangue dos que dormiam e na Europa medieval espalhavam a peste, após a revolução industrial os romances começaram a apresentar um novo tipo de vampiro, o cavalheiro bem vestido que se tornaria um duradouro emblema do capitalismo. Durante a campanha presidencial de 2012 nos Estados Unidos, o investidor de capitais de risco Mitt Romney, cujo estatuto de vivo ou morto-vivo foi assunto de algum debate humorístico, viu-se frequentemente comparado a um vampiro. Depois de se transformar num «capitalista abutre» nas primárias, tornou -se um experiente capitalista vampiro nos cartazes de campanha de Barack Obama. “Foi como um vampiro”, disse um operário metalúrgico acerca da empresa cofundada por Romney, a Bain Capital. “Chegou e sugou -nos a vida a todos.”

A ideia de um vampiro ambicioso sugando a vida a honestos trabalhadores ecoava num país onde o valor de quase todos os lares tinha sido recentemente sugado. O vampirismo estava por trás de uma crise na habitação, desencadeada por uma série de empréstimos predatórios a proprietários de casas sem capacidade para os reembolsar. Empréstimos que, agrupados em pacotes e vendidos a investidores, vieram a ser conhecidos como “ativos tóxicos” quando perderam o respetivo valor. A ideia de que o próprio capital pode ser tóxico conduz quase inevitavelmente ao medo de que o capitalismo polua todos os empreendimentos.

No final da pandemia de gripe H1N1, em 2009, quando ficou claro que a doença não tinha causado as elevadas taxas de mortalidade que os responsáveis pelos serviços de saúde tinham inicialmente receado, a presidência da Comissão de Saúde para o Conselho da Europa acusou a OMS de conluio com empresas farmacêuticas na criação de uma “falsa pandemia” destinada a vender vacinas. A OMS encarou serenamente a acusação, argumentando o seu porta-voz que “a crítica faz parte do ciclo de um surto”. A organização convidou então vinte e cinco especialistas independentes, de vinte e quatro países, a avaliarem as ações da organização durante a pandemia.

Os especialistas independentes não encontraram provas de que interesses comerciais tivessem influenciado a OMS ou tentado influenciá-la, nem provas de que a OMS tivesse exagerado incorretamente a pandemia.

Ao ler o relatório elaborado por esses especialistas, detive-me bastante tempo numa passagem que propunha a criação de um fundo destinado a responder às necessidades em cuidados infantis dos trabalhadores da OMS suscetíveis de serem mobilizados na eventualidade de uma pandemia. Tratava-se apenas de um aparte, uma observação logística menor, mas o que me levou a demorar -me nela foi a evocação momentânea das vidas vividas por detrás do esforço para controlar a doença. É fácil esquecer que uma organização como a OMS é formada por pessoas reais, com filhos e preocupações iguais às minhas no que respeita aos cuidados infantis.

Os especialistas independentes não encontraram provas de que interesses comerciais tivessem influenciado a OMS ou tentado influenciá-la, nem provas de que a OMS tivesse exagerado incorretamente a pandemia. O relatório explicava que uma das razões para certas precauções tomadas pela OMS poderem parecer, retrospetivamente, desproporcionadas em relação ao perigo real colocado pela pandemia era que a organização estivera a preparar-se para um possível surto de gripe das aves, o vírus H5N1, uma estirpe altamente letal, e os primeiros relatórios tinham sugerido que a taxa de óbitos provocada pelo H1N1 poderia ser também bastante elevada. “Os vírus da gripe são notoriamente imprevisíveis”, observou o presidente da comissão na sua introdução ao relatório, acrescentando que desta vez “tivemos sorte”. “Na opinião desta comissão”, concluía o relatório, “a ilação por alguns detratores de que as ações da OMS se explicam por invisíveis influências comerciais ignora o poder dos valores centrais da ética da saúde pública para prevenir doenças e salvar vidas”.

A imunidade é um espaço público. E pode ser ocupada pelos que escolhem não ser portadores de imunidade.

O facto de ser bastante difícil imaginar uma ética suficientemente poderosa para competir com o capitalismo, mesmo tratando-se de uma ética baseada no valor inerente às vidas humanas, mostra como o capitalismo limitou com êxito a nossa imaginação. “Ocupem sistemas imunitários”, gracejou uma amiga quando soube que eu andava a escrever sobre vacinação; porém, como não entendi logo a piada, passei algum tempo na Internet à procura de uma organização chamada Occupy Immune Systems. A possibilidade não parecia improvável. Na altura, o movimento Occupy levava a mensagem “Somos os 99%” de Wall Street para Chicago e São Francisco, tornando -se rapidamente um protesto global contra o capitalismo.

A imunidade é um espaço público. E pode ser ocupada pelos que escolhem não ser portadores de imunidade. Para algumas mães que conheço, a recusa em vacinar é parte de uma mais vasta resistência ao capitalismo. Mas recusar a imunidade como forma de desobediência civil parece-se inquietantemente com a própria estrutura que o movimento Occupy procura travar: 1 por cento de privilegiados estão protegidos do risco enquanto subtraem recursos dos outros 99 por cento.

“Drácula”, publicado pouco depois do terceiro e último volume de “O Capital” de Marx, é facilmente suscetível de uma interpretação marxista. «Tal como o capital, ‘Drácula’ é impelido para um crescimento constante», escreve o crítico literário Franco Moretti, “uma expansão ilimitada do seu domínio: a acumulação é inerente à sua natureza”. O que torna Drácula aterrador, argumenta Moretti, não é ele gostar de sangue e beber sangue, é ele precisar de sangue.

A pulsão pelo capital é por inerência inumana, conforme sugere Drácula. Temos motivos para nos sentirmos ameaçados pela expansão ilimitada da indústria, e temos motivos para temer que os nossos interesses sejam secundarizados relativamente a interesses empresariais. Porém, a recusa da vacinação debilita um sistema que não é propriamente típico do capitalismo, pois trata-se de um sistema em que tanto os encargos como os benefícios são partilhados por toda a população. A vacinação permite-nos usar os produtos do capitalismo para fins que são opostos às pressões do capital.

“Segue a pista do dinheiro”, recomenda-me uma amiga, defensora da teoria de que a vacinação é um esquema movido pelo lucro, controlado por empresas farmacêuticas com uma influência desenfreada sobre o governo e a medicina. 

Ao observar que declarámos guerra à pobreza e às drogas, bem como ao cancro, Susan Sontag escreve: “Talvez o abuso da metáfora militar seja inevitável numa sociedade capitalista, uma sociedade que restringe cada vez mais o alcance e a credibilidade de apelos aos princípios éticos, em que se acha tolo que os atos de uma pessoa não sejam submetidos ao cálculo do egoísmo e da rentabilidade.” Numa sociedade assim, as medidas preventivas para proteger a saúde pública exigem justificações elaboradas. Sontag sugere que a guerra é uma das poucas atividades em que não se esperam considerações acerca da sua utilidade ou custo. Declarar uma guerra metafórica à doença é a nossa forma de justificarmos a inevitável impraticabilidade de protegermos os mais vulneráveis.

O meu filho tinha três anos quando os CCPD divulgaram a estimativa dos óbitos por H1N1 em todo o mundo em 2009, quando ele era bebé. O número calculado, algures entre 150 mil e 575 mil, tornou a gravidade do H1N1 comparável a um típico surto sazonal de gripe. Mas esta gripe tinha matado uma grande proporção de gente nova. Nos Estados Unidos, morreram dez vezes mais crianças de H1N1 do que morrem num surto de gripe normal. A nível mundial, a pandemia custara 9,7 milhões de vidas.

“Segue a pista do dinheiro”, recomenda-me uma amiga, defensora da teoria de que a vacinação é um esquema movido pelo lucro, controlado por empresas farmacêuticas com uma influência desenfreada sobre o governo e a medicina. A minha conversa com ela recorda-me o ensaio sobre paranoia por Eve Sedgwick, em que a autora narra uma conversa com a sua amiga Cindy Patton, durante a primeira década da epidemia de sida. Sedgwick perguntou -lhe o que pensava dos rumores de que o vírus VIH era parte de uma trama engendrada pelos militares norte- americanos, ao que Patton respondeu que isso não lhe interessava muito. “Ou seja, mesmo supondo que estivéssemos certos de todos os elementos de uma conspiração — que as vidas de africanos e afro-americanos nada valiam aos olhos dos Estados Unidos; que os homossexuais e os consumidores de drogas são desconsiderados, quando não são ativamente odiados; que os militares investigam deliberadamente formas de matar civis que consideram inimigos… Mesmo supondo que estivéssemos completamente certos dessas coisas todas, o que saberíamos então que não saibamos já?”

Sobre a ideia de que as vacinas eram uma conspiração ocidental contra os muçulmanos, um barbeiro nigeriano comentou o seguinte: “Se o branco quisesse realmente destruir-nos, há muitas outras formas mais fáceis de o fazer. Podem envenenar a nossa Coca‑Cola…” Inclino-me a concordar. Além disso, desconfio de que a Coca‑Cola, mesmo sem veneno, é mais prejudicial aos nossos filhos do que a vacinação.

O facto de termos inimigos não implica que tenhamos de ser paranoicos, propõe Sedgwick. O nosso cinismo pode ser justificado, mas também é triste. Que tantos de nós achem inteiramente plausível que uma vasta rede mundial de investigadores, responsáveis por serviços de saúde e médicos pudesse de bom grado prejudicar crianças por dinheiro evidencia bem aquilo de que de facto o capitalismo nos está a expoliar. O capitalismo já empobreceu os trabalhadores que geram riqueza para outros. E já nos empobreceu culturalmente, ao roubar valor à arte não comercial. Mas, quando começamos a considerar as pressões do capitalismo como leis inatas da motivação humana, quando começamos a acreditar que toda a gente tem dono, então estamos realmente empobrecidos.

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