Longe vão os tempos em que os valores do R(t) eram dados à porta fechada, em que governantes se irritavam entre ou que os dados dos especialistas só chegavam aos jornalistas de forma indireta. Agora é quase tudo público. Das mais de quatro horas de reunião entre especialistas e a elite política, sobra pouco mais de meia hora à porta fechada para os partidos fazerem perguntas. Marcelo nem ficou para essa parte, que tinha mais que fazer: a audiência aos partidos em Belém sobre o novo estado de emergência. IL e Chega saíram logo de seguida, pois eram os primeiros da fila. A informação é agora menos filtrada. E há, como sempre, várias novidades: o R(t) está abaixo de 1 e a descer, pode ter havido 1,5 milhões de portugueses que já tiveram a doença e a origem do contágio que ocorreu comprovadamente em contexto familiar na última semana foi ainda mais baixo (apenas 2,5% do total de casos).

Na fase de perguntas, Marcelo Rebelo de Sousa deixou ainda críticas veladas a um dos especialistas e à saúde, pela gestão da vacinação na gripe sazonal. Quanto às medidas mais restritivas aplicadas, garantem os especialistas, “estão a funcionar”. Sobre o futuro, os especialistas avisaram que, se se deixar de pressionar a “mola”, voltam a aumentar os casos. Quanto à estratégia para o Natal, Baltazar Nunes, do Instituto Ricardo Jorge, aconselhou a estratégia de Londres: criar “Christmas bubbles”. Isto significa criar bolhas com a família, evitando a exposição sem ser entre estes membros antes e depois da consoada, de forma a evitar potenciar uma terceira vaga.

Marcelo aperta com especialistas e ministério da Saúde

Na fase final da reunião, o Presidente fez quatro perguntas, mas em duas delas deixou críticas veladas. Numa das questões, sobre o número real de casos e a consequente dimensão da imunidade da população, Marcelo Rebelo de Sousa quis que o especialista Henrique de Barros, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, explicasse melhor os números, já que tinha falado em mais de um milhão de portugueses que já tinham tido contacto e numa percentagem de 10 a 15% da população que já estaria imunizada.

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O chefe de Estado pareceu duvidar dos números por assentarem em estudos feitos na área do Porto (na comunidade universitária ou na cidade) e serem bastante distintos dos números a nível nacional. “O professor Henrique de Barros apontou para números entre 10 a 15% de imunizados em Portugal. Há outros estudos, nomeadamente um painel sereológico nacional, que apontam para muito menos, para 4/5%, portanto temos aqui uma dúvida“. E a seguir, parece pôr em causa os números do Henrique Barros por serem circunscritos à área do Porto: “Os estudos do professor são muito norte, são muito específicos, em determinado tipo de população, e é preciso saber o grau de imunidade da população portuguesa. Há uma diferença entre 4 e 5% e 10 e 15 %”.

Henrique de Barros teve de se justificar perante o Presidente, mas não recuou, garantindo que não havia razões para duvidar do seu método: “Sr. Presidente, deixe-me dizer-lhe, embora possa parecer excessivo, que  costumo ter enorme confiança nas previsões que fazemos. E desta vez também.” E a seguir deu exemplos que fez com populações no Porto que coincidiam com estudos feitos a nível nacional. Concordou, no entanto, que quanto antes deve existir um grande inquérito epidemiológico nacional. Mas manteve que “provavelmente estamos com mais de 1,5 milhões de portugueses” que já tiveram contacto com o vírus.

É consensual na comunidade científica que, havendo uma grande percentagem de assintomáticos, são mais os casos de pessoas infetadas do que aquelas que alguma vez serão efetivamente comprovadas. Uma hora antes da pergunta de Marcelo, Henrique de Barros tinha explicado que além dos números dos boletins há formas de fazer uma previsão do número real de casos, relacionando-os, por exemplo com os óbitos.

Henrique de Barros disse que era possível “imaginar que, neste momento, haverá já na população portuguesa cerca de um milhão de portugueses que teve contacto com o vírus”. E que podiam ser mais, embora haja uma “incerteza muito grande”. O intervalo apresentado tem, no entanto, varia entre os 605 mil e os 1,8 milhões de portugueses que podem já ter tido o vírus.

Na pergunta a Carla Nunes, Marcelo deixou críticas à forma como foi gerido o processo de vacinação da gripe, à boleia da vacinação de larga escala que o país se prepara para fazer. “Pergunto se não pode acontecer um bocadinho o que aconteceu por exemplo na vacinação contra a gripe, que é mais pequena, em que havia uma tradição de reticência contra a vacinação contra a gripe e acabou num protesto generalizado pela insuficiência do número de vacinas porque a população esperada era muito inferior à da que aparentemente manifestava a intenção de se vacinar”, questionou o Presidente. Marcelo queria vincar dois pontos: primeiro, mandar uma farpa pelo que correu mal na operação de vacinação da gripe sazonal; segundo perguntar se não pode acontecer o mesmo com o processo de vacinação contra a Covid-19.

Bolhas de Natal são uma das estratégias para evitar terceira vaga pós-Natal

Coube ao epidemiologista Baltazar Nunes, do Instituto Ricardo Jorge, responder à pergunta do Presidente da República sobre se a deslocação de pessoas podia “ser um elemento de relevância” para aumentar o contágio no período natalício e da passagem de ano.  A primeira estratégia, explica, é reduzir o número de novos casos até lá, já que “um dos fatores que mais promove a transmissão é a presença de indivíduos infeciosos na população”. Ou seja: “Até lá, quanto mais conseguirmos reduzir a incidência, mais probabilidade temos que a curva que venha a crescer seja menor”.

Mas Baltazar Nunes sugere mesmo que seja seguido o modelo do Reino Unido em que as pessoas criem bolhas com os agregados quem vão passar o Natal. “Era importante que criassem bolhas nos agregados antes do período natalício e mesmo depois desse período, como o Reino Unido está a criar as chamadas christmas bubbles.”

Também sobre o futuro próximo, o epidemeologista Manuel Carmo Gomes prevê que se a “taxa de redução por -2,5% casos por dia, teríamos o Natal com menos de 2 mil casos por dia. Se for -2%, ficaremos entre os 2.500 e os 3 mil”.

O especialista avisa que “se não mantivermos medidas que forçam estas taxas a descer, pode acontecer o que aconteceu na Holanda que chegou a atingir 10 mil casos por dia, depois tomou medidas, baixou. Depois aliviou e voltou a subir”. E o mesmo com a República Checa que “teve uma segunda onda violentíssima, confinou e depois desconfinou e já estão nos 5 mil casos diários”. Conclusão: “Assim que aliviamos a mola, a mola volta a subir e vai ser assim até conseguirmos vacinar uma percentagem significativa da população”.

Contexto familiar representa comprovadamente apenas 2,5% do contágio

O caso já tinha dado polémica quando António Costa apresentou um gráfico em que dizia que 68% do contágio tinha ocorrido em contexto familiar quando, na verdade, esse valor era relativo aos casos conhecidos. Isso significava que só 10% eram em contexto familiar. Esse número é cinco vezes menor na última semana.

Afinal, só 10% dos casos ocorrem comprovadamente nas famílias. Mais de 80% dos casos de Covid em Portugal são de origem desconhecida

De acordo com um gráfico que André Peralta Santos, da Direção-Geral de Saúde, mostrou durante a sua intervenção as autoridades continuam sem ter informação sobre como ocorreram contágios em 77% dos casos, aos quais   ainda se juntam 9,7% dos casos (3,5% + 6,2%) em que os médicos não conseguiram encontrar o link epidemiológico.

Isto significa que maior preponderância do “contexto familiar” — que André Peralta Santos voltou a destacar — continua a ser relativa a uma fatia muito pequena do total de casos (que são os que são conhecidos). Só se conhece, na verdade o link epidemiológico de 13,3% dos casos, que se dividem da seguinte forma:

  • Outros: 75%
  • Contexto familiar: 19%
  • Laboral: 4%
  • Escolar: 1%
  • ERPI: 1%
  • Social: 1%
  • Estabelecimentos de Saúde: 0%

Ora, o somatório apresentado pelo especialista dá 101%, o que significa que haverá um erro. Mas aplicando os 19% atribuídos ao contexto familiar ao universo de 13,3% de total de casos, isto significa que a grande “preponderância” do contexto familiar corresponde a apenas 2,53% dos casos totais.

R(t) está abaixo de 1 a nível nacional

As boas notícias é a que a transmissão da doença está mesmo a aumentar. Baltazar Nunes, do Instituto Ricardo Jorge, fez uma apresentação sobre a evolução da incidência e transmissibilidade e disse que “houve um primeiro aumento do índice de transmissibilidade no final do mês de agosto, que foi o período associado ao final do período de férias”. Depois houve a “abertura das escolas deu a origem a um crescimento mais acentuado”, que “preocupou mais” os especialistas e culminou num R acima de 1,2 no início do mês de outubro.

A partir do início do estado de calamidade, “a transmissibilidade inicia o seu processo de descida”, mas “o decréscimo da transmissibilidade inicia-se um pouco antes”. O especialista anunciou a boa notícia de que transmissibilidade tem “vindo a crescer de forma sustentada desde meados de outubro”. Atualmente, a média do R(t) para os últimos 15 dias está abaixo de 1. Está a 0,99. O pico foi do R a nível nacional, explica, foi a 6 de novembro.

No Norte, o R(t) está nos 0,96. Na região Centro nos 1,05. Já na região de Lisboa e Vale do Tejo está “em estabilização ou em decréscimo” nos 1,00. O R na região de Lisboa, explica, nunca “teve valores tão elevados como noutras regiões” e foi entre 16 e 23 de novembro que houve maior taxa de incidência nesta zona. No Alentejo, o R(t) está nos 1,12 e no Algarve com 1,08. Nestas duas regiões a transmissibilidade ainda está a crescer. Nos Açores o R(t) está nos 1,1 e está a “crescer há 36 dias”. Já na Madeira está nos 1,05.