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De acordo com os dados fornecidos pela DGS ao Observador, no passado dia 8 de maio o total de médicos infetados em Portugal com o novo coronavírus era de 468
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De acordo com os dados fornecidos pela DGS ao Observador, no passado dia 8 de maio o total de médicos infetados em Portugal com o novo coronavírus era de 468

Ana Martingo

De acordo com os dados fornecidos pela DGS ao Observador, no passado dia 8 de maio o total de médicos infetados em Portugal com o novo coronavírus era de 468

Ana Martingo

Infetados pela Covid no trabalho, três médicos passaram a ser doentes. E contam na primeira pessoa tudo sobre como foi estar do outro lado

Foram contagiados no trabalho, ficaram internados nos seus hospitais e tratados por colegas. Três médicos contam tudo sobre a luta que travaram contra a Covid-19 — no improvável papel de doentes.

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Há doenças em que ser médico pode ser uma vantagem — a Covid-19 não será uma delas. Quem o diz é Fernando Falcão dos Reis, médico, professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, diretor do serviço de Oftalmologia do Hospital de São João e presidente da Sociedade Portuguesa da especialidade.

Quando, no início de março, sentiu os primeiros sintomas, já estava em isolamento profilático há uma semana e já tinha lido tudo o que havia para ler (que na altura não seria assim tanto, como agora continua a não ser) sobre o novo coronavírus, acabado de chegar a Portugal. O seu primeiro sentimento? Medo. De um “desfecho mau ou fatal”, que é como quem diz, de morrer.

“Há doenças em que ser médico é uma vantagem; sabemos exatamente aquilo que é e como vai correr, mas nesta penso que não é assim. Talvez não haja vantagem nenhuma em ser médico ou enfermeiro numa altura destas… Um não profissional tem uma reação melhor do que um profissional, que está mais consciente do potencial de gravidade da doença. Eu próprio senti isso, por um lado tinha uma boa parte de informação científica sobre a doença, mas por outro sentia-me um pouco derrotado em termos psicológicos pela possibilidade de um desfecho mau ou fatal”, confessou em conversa com o Observador.

"Há doenças em que ser médico é uma vantagem; sabemos exatamente aquilo que é e como vai correr, mas nesta penso que não é assim. Um não profissional tem uma reação melhor do que um profissional, que está mais consciente do potencial de gravidade da doença. Eu próprio senti isso, por um lado tinha uma boa parte de informação científica sobre a doença, mas por outro sentia-me um pouco derrotado em termos psicológicos pela possibilidade de um desfecho mau ou fatal"
Fernando Falcão dos Reis, oftalmologista

Aos 66 anos, diabético e hipertenso, ainda que de forma ligeira e controlada, Fernando Falcão dos Reis fazia parte do grupo de risco — e chegou a estar internado no serviço de Doenças Infecciosas do hospital onde estudou e trabalha desde sempre, mas nunca correu risco de vida.

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Um mês e meio depois, continua positivo e fechado num quarto, de onde só quer sair para poder voltar ao serviço onde ficou infetado. “A minha saúde física neste momento está boa, mas a minha saúde mental provavelmente já não estará assim muito bem…”, assumiu, exasperado com o confinamento.

Já Augusto Rocha e Silva, cirurgião vascular, exatamente da mesma idade, igualmente diabético, médico também no São João, internado num quarto de pressão negativa e a respirar com ajuda artificial, nos cuidados intermédios, chegou a receber mensagens de colegas e familiares que, comovidos, lhe diziam que ia tudo correr bem.

Mas garante que nem nessa altura achou que podia morrer. “Percebi que devia estar mesmo mal. Mas nem aí entrei em pânico, devia estar maluco…”, revelou, ainda em casa, positivo e com sintomas da Covid-19, que o obrigou a uma estadia de 17 dias no hospital e o emagreceu 9 quilos.

Há 3.132 profissionais de saúde infetados em Portugal

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A 8 de maio havia, segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde, 3132 profissionais de saúde infetados com o novo coronavírus em Portugal:

  • 468 médicos
  • 817 enfermeiros
  • 735 assistentes operacionais
  • 149 assistentes técnicos

“Se calhar, ao contrário das pessoas que não têm formação neste campo e acham que vai tudo correr bem, nós temos a perceção de que esta doença às vezes não corre assim tão bem, mesmo para algumas pessoas jovens. Sabemos que algumas precisam de ser ventiladas, durante bastante tempo, e que outras acabam mesmo por falecer — e isto pode acontecer mesmo a pessoas saudáveis, não se sabe muito bem porquê”, racionalizou por seu turno Elsa Hipólito, 43 anos, pediatra no serviço de urgência do Hospital de Aveiro.

Também ela, infetada com o novo coronavírus no hospital onde trabalha, acabou por ter de ser internada e foi obrigada a trocar de lugar: “Conhecia os colegas e a maior parte das auxiliares e enfermeiras que estavam no serviço e só pensava que estava do outro lado e estava infetada com um vírus que lhes podia ser muito prejudicial. Senti um bocadinho de angústia, por estar diferente e fragilizada”.

De acordo com os dados fornecidos pelo Ministério da Saúde e pela Direção-Geral de Saúde ao Observador, Elsa Hipólito, Fernando Falcão dos Reis e Augusto Rocha e Silva são três de 468 médicos infetados pelo novo coronavírus em Portugal — num universo de 3.132 profissionais de saúde afetados. Contam, na primeira pessoa, tudo aquilo por que passaram na luta que travaram pessoalmente contra a covid-19. No improvável papel de doentes.

“Estava a falar com ela, sem sintomas nenhuns, quando de repente começou a ver a saturação do meu oxigénio a descer a pique”

Augusto Rocha e Silva
Cirurgião vascular 
Hospital de São João
66 anos

“Salvo erro, dia 6 de março foi uma sexta-feira. Cheguei a casa a meio da tarde e senti uma forte dor de cabeça — e eu contam-se pelos dedos as vezes que tenho dor de cabeça. Tomei um Ben-u-ron e deixei-me estar pelo sofá. No dia seguinte, de manhã, já tinha febre.

Já havia muitas notícias na altura, portanto quando senti a febre e um bocadinho de tosse comecei logo a desconfiar. Tentei falar com os colegas que estavam de urgência, para ver se havia hipótese de fazer algum teste — mas nada! “Não, não, não, fique em casa, Ben-u-ron para a frente e pronto.”

Casos concretos, de que se soubesse, ainda não havia no hospital, mas só no meu serviço fomos seis ou sete — só eu é que fui internado, os outros conseguiram resolver o problema em casa.

Nunca saberemos ao certo, mas penso que foi no hospital que apanhei esta infeção. Houve uma incidência grande no serviço de cirurgia vascular, lembro-me de um colega que andava a tossir e a espirrar de forma muito pesada e tinha dores musculares, uma pessoa começa a somar dois mais dois e pensa que poderá ter sido dali mas não há provas.

"Sinceramente, nessa altura ainda pensava que podia eventualmente vir para casa. É para ver como esta doença engana, uma pessoa pode até não estar a sentir-se muito mal e está numa situação grave"
Augusto Rocha e Silva, cirurgião vascular

No dia seguinte continuei com febre, que estava a subir aos 38,5ºC, e comecei a ficar com rinorreia, um bocadinho de tosse, e tornei a falar com outro colega, que foi exatamente da mesma opinião e mandou-me ficar em casa.

Nessa semana já não fui trabalhar, mas depois a febre e a prostração começaram a agravar-se, por isso uma semana depois, como já era permitido que os profissionais de saúde fizessem testes, fui ao hospital e pimba, deu positivo.

Continuei em casa, com antipiréticos, e até tive uma certa melhoria da febre e da prostração — por exemplo, subia escadas e ficava um bocado polipneico [com respiração rápida e ofegante] mas não era nada de especial, nem ficava assim muito cansado —, o problema maior era a tosse. E a tosse começou a ser maior, mais intensa, é uma tosse predominantemente seca e altamente angustiante, em que a pessoa fica mesmo prostrada, depois de estar cinco minutos ou mais a tossir ficava fisicamente cansado.

Comecei a sentir-me cada vez pior, a minha mulher, que também estava positiva mas sem sintomas, olhava para mim e já estava em pânico — deve ter começado a traduzir na minha face a desgraça —, então no dia 20 voltei ao hospital.

E fiquei internado. Até me sentia razoavelmente, não tinha falta de ar, não tinha dores, tinha febre que às vezes nem sentia; os acessos de tosse, espasmódica e seca, é que estavam cada vez piores e eram mesmo horrorosos.

Sinceramente, nessa altura ainda pensava que podia eventualmente vir para casa. É para ver como esta doença engana, uma pessoa pode até não estar a sentir-se muito mal e está numa situação grave.

E eu também não tinha muita consciência disso. Sentia-me com capacidade para andar, subia escadas, descia escadas, o problema era quando vinha a tosse. E a febre, a febre também estava a ser mais persistente, sobretudo de manhã e ao fim do dia.

Augusto Rocha e Silva esteve internado no hospital durante 17 dias. Perdeu 9 quilos no processo

Não me disseram porque é que ficava internado, nisso foram lacónicos, esse contacto médico-doente não existiu assim com muita acuidade… Fiquei num quarto onde já estava outro colega, médico também, que já conhecia, e que já lá estava há uns tempos.

Coitado, tossia, tossia, tossia, estava uma hora a tossir, era uma coisa aflitiva. Conseguíamos conversar mas pouco, cada um estava no seu canto. Nessa altura estava com espírito positivo e confiante de que as coisas se resolviam, tenho diabetes, que estava controlada, muito controlada, e não tinha mais fatores de risco associados. Só me assustei depois…

Dois dias antes de ir para o hospital não comia nada, nada, nada. Não tinha apetite nenhum, só bebia chá — e morno, porque a água fria provocava-me uma sensação horrorosa na faringe. Mas quando chegou o jantar, uma sopa de agriões fantástica, soube-me pela vida! Fiquei de boca aberta, não me deram medicação nenhuma, só um Ben-u-ron, como é que era possível ter apetite para comer aquilo?! A minha teoria é que aquele ar diferente, mais leve, que está dentro das divisões com pressão negativa, pode eventualmente favorecer o apetite, mas isso é uma coisa muito teórica…

Fui internado a 20 de março, estive dois dias no serviço de Infecto e estava a sentir-me muito bem, achei que me iam dar alta no dia seguinte. Tinha uma colega à minha volta, a procurar artérias e veias, e estava a falar com ela normalmente, sem sintomas nenhuns, quando de repente começou a ver a saturação do meu oxigénio a descer a pique — e eu sem falta de ar nem nada!

Mudou-me logo a ventimask [máscara de oxigénio], aquilo compensou, e foi aí que tive de ir para os cuidados intermédios, fazer um BIPAP, em pressão positiva. Estive lá dois dias, com essa intermitência do BIPAP, que é uma máquina que impulsiona o oxigénio com mais força para dentro dos pulmões, e a ventimask.

Nessa altura comecei a somar dois mais dois e a perceber que não estava nada bem. Antes disso já tinha feito uma TAC pulmonar e tinha perguntado ao meu colega como é que estava e ele tinha respondido que as imagens não eram lá muito bonitas, tinha uma pneumonia bilateral.

Ainda assim estava com uma calma fantástica, até fiquei admirado comigo! Eu que tantas vezes tinha dito que se fosse internado ia morrer da cura — há muitos anos tinha pavor de agulhas — deixei que me fizessem tudo nas calmas e portei-me sempre impecavelmente.

Nunca entrei no esquema de pensar negativamente, nos intervalos das máquinas tentava fazer uma certa cinesioterapia respiratória — expiração profunda e aspirações com máscara —, mas de resto tinha de estar o mais quietinho possível, nessa altura, se me virasse na cama, tinha logo um acesso de tosse.

Quando comecei a ver os meus colegas e a família, todos muito comovidos, a mandar-me mensagens, a dizer que ia tudo ficar bem e mais não sei o quê, percebi que devia estar mesmo mal. Mas nem aí entrei em pânico, devia estar maluco…

"Ao todo estive 17 dias internado. No início chegava à casa de banho e tinha um acesso de tosse, tinha de esperar um bocado, fazia as coisas muito devagarinho. Nos primeiros dias tinha uma limitação de movimentos muito grande, era tudo custoso, até virar-me na cama. De manhã, assim que me sentava na cama estava 15 minutos a tossir; já tinha medo só de pensar que ia ter tosse"
Augusto Rocha e Silva, cirurgião vascular

Nos cuidados intermédios estava sempre a olhar para o monitor, tinha aquele controlo todo, e as saturações estavam boas, apesar de estar sempre com oxigénio. Gostava de ver o 100, ficava muito contente. E também os outros parâmetros, as tensões e a frequência cardíaca, que estavam todos bem.

Dois dias depois deram-me alta para o internamento e aí fiquei sozinho num quarto. Fui progressivamente melhorando até que um dia veio um colega dizer que as gasimetrias estavam bem e que ia tirar-me o oxigénio. Como tive um bocado de medo de ficar sem ele durante noite, o colega autorizou-me a pôr — no máximo dois litros. Como na altura já estava com oxigénio por cânula nasal, e não por máscara, conseguia levantar-me, regulava o dispositivo de oxigénio e punha — ser médico traz vantagens.

Ao todo estive 17 dias internado. No início chegava à casa de banho e tinha um acesso de tosse, tinha de esperar um bocado, fazia as coisas muito devagarinho. Nos primeiros dias tinha uma limitação de movimentos muito grande, era tudo custoso, até virar-me na cama. De manhã, assim que me sentava na cama estava 15 minutos a tossir; já tinha medo só de pensar que ia ter tosse.

Às vezes acho que as pessoas podem pensar que sou maluco — “É só uma tosse” —, mas há tosses e tosses e como esta nunca tive na vida. Gera uma angústia, uma coisa horrorosa…

Desde que fui para o hospital e até chegar a casa, perdi 9 quilos. Parecia aqueles indivíduos que saíram dos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial, pele e osso… Não tinha bem a noção de como estava, mas a minha mulher, quando me viu, teve um susto fantástico. Eu nem sequer vi, disfarçou bem, foi chorar para outro lado.

Tive alta no dia 6 de abril. Só fiz um teste, ainda no hospital, e deu positivo. Penso que ainda estou positivo porque continuo com sintomas. Tenho uma ligeira perda de olfato; alguma perda de paladar, ainda não tenho bem a noção do que é muito salgado ou muito doce; e, mais aborrecido, continuo com tosse…

Estou quase há dois meses nesta brincadeira. Tenho vindo a melhorar — há uma semana não conseguia estar a falar este tempo todo, nem pensar, começava a ficar com uma rouquidão e depois vinha aquela tosse horrorosa…

Todos os meus colegas me disseram que isto era demorado, demorado, demorado, demorado. Mas eu nunca pensei que fosse demorar tanto.”

“Tinha medo de ficar com uma pneumonia vírica e de ter necessidade de ventilação ou de cuidados intensivos”

Elsa Hipólito
Pediatra
Hospital de Aveiro
43 anos

“No meu serviço tivemos várias pessoas atingidas pela Covid, mas a maioria teve apenas pequenos sintomas. Além de pediatras, tivemos internos, enfermeiros, auxiliares e secretárias infetadas. Eu comecei com sintomas a 16 de março, na noite seguinte a urgência de pediatria já não abriu.

Nessa altura ainda só eram considerados casos os que tivessem vindo de países onde houvesse infeções (sendo que Espanha ainda nem era considerada, só Itália), e não havia ninguém assim no serviço, mas como já havia dois colegas doentes e outros com sintomas, fomos para casa de quarentena.

Fiz um teste logo no dia 17 — que foi negativo. Apesar disso fiquei em casa, e como achei sempre que o primeiro resultado tinha sido um falso negativo, mantive todos os cuidados: tenho três filhos e marido, guardei sempre os dois metros de distância em relação a eles e ainda andava de máscara.

No fundo sabia que se houvesse algum agravamento ia ter de repetir o teste e aí ia dar positivo. O meu medo era o agravamento; tinha medo de ficar com uma pneumonia vírica e de ter necessidade de ventilação ou de cuidados intensivos. Como médicos temos sempre a noção de como a doença poderá evoluir, sabemos sempre medo que pode evoluir para o pior, é sempre uma angústia…

Inicialmente tive só uma dor de garganta e um aumento do número de dejeções. Depois comecei com uma tosse seca, com uma temperatura sub-febril e ao oitavo dia da doença, depois de estar apirética durante dois dias, reiniciei febre e uma dor torácica à direita.

Foi nessa altura que liguei para os meus colegas da medicina do trabalho, que já estavam a acompanhar-me, e eles acharam que era melhor ir ao hospital, fazer um raio-x e repetir o teste para o coronavírus.

Inicialmente não parecia uma pneumonia por coronavírus, parecia mais uma sub-infeção bacteriana, provavelmente de uma coisa vírica, por isso iniciei antibiótico. E fiz a pesquisa por coronavírus, que veio positiva no dia a seguir.

Como continuava com febre e a sentir-me muito em baixo — para além de estar preocupada com a evolução da doença, sentia um mal-estar constante —, três dias depois acabei por ligar novamente aos meus colegas.

O serviço de urgência pediátrica do Hospital de Aveiro encerrou um dia depois de Elsa Hipólito ter ido para casa

Se calhar, ao contrário das pessoas que não têm formação neste campo e acham que vai tudo correr bem, nós temos a perceção de que esta doença às vezes não corre assim tão bem, mesmo para algumas pessoas jovens. Sabemos que algumas precisam de ser ventiladas, durante bastante tempo, e que outras acabam mesmo por falecer — e isto pode acontecer mesmo a pessoas saudáveis, não se sabe muito bem porquê.

Era nisso que pensava, que tenho três filhos pequenos, que ainda precisam de mim, e também tinha receio de que o meu marido ficasse contaminado.

Nesse dia voltei ao hospital, para repetir análises e raio-x, e acabei por ficar internada, quando me viram na urgência disseram-me logo: “Não sais mais daqui”. Estava mesmo com uma pneumonia e embora não tivesse dificuldade respiratória e a saturação de oxigénio estivesse bem, como mantinha febre acharam mais prudente que ficasse em vigilância.

Foi um choque, não tanto por ficar lá — sabia que estavam preocupados comigo e com a minha evolução e que iam fazer tudo para que eu melhorasse —, mas mais porque não tinha avisado ninguém em casa. Quando liguei ficaram todos um bocadinho receosos de que estivesse a omitir alguma coisa e que a situação estivesse mesmo a ficar grave. O meu marido só me dizia: “Estás a esconder-me alguma coisa, para ficares aí é porque não estás bem!”.

Não estava muito bem, é verdade. E, no dia do internamento, cheguei a ter medo de não os voltar a ver, pensei “pronto, isto vai correr mal e não vou voltar para casa, só espero que o meu marido também não fique doente”.

No dia seguinte, como a febre começou a espaçar e como me dei conta de que não estava a agravar o SDR, que é a dificuldade respiratória, comecei a sentir-me um bocadinho mais tranquila e a minha angústia passou a ser como é que eles se estariam a sentir. Por isso é que também é bom podermos ter os nossos telefones, não só para os podermos ver mas também para os tranquilizarmos, para eles nos poderem ver.

Dentro dos colegas que ficaram infetados, só eu e outro enfermeiro é que precisámos de ser internados, mas mesmo assim nunca precisei de fazer oxigénio suplementar, nem qualquer outro tipo de terapêutica.

Estive três dias no hospital. Foi… diferente. É diferente estar no papel de doente — tirando os partos nunca tinha estado internada. Conhecia os colegas e a maior parte das auxiliares e enfermeiras que estavam no serviço — fiquei no serviço de pneumologia —, mas eles entravam sempre no nosso quarto completamente equipados — como eu ando agora também — e só pensava que estava do outro lado e estava infetada com um vírus que lhes podia ser muito prejudicial. Senti um bocadinho de angústia, por estar diferente e fragilizada.

"Senti muito cansaço, tive dores musculares, lombares e de garganta, e tive tosse, primeiro mais seca, depois com mais expetoração. E ao nono ou décimo dia acordei e percebi que não conseguia cheirar nada, e saborear também não. Estive assim durante 15 dias, já fiquei doente há um mês e meio, já estou negativa e já voltei a trabalhar, mas ainda não tenho o sabor perfeitamente normal e o cheiro também é diferente"
Elsa Hipólito, pediatra

Estava no quarto com outra senhora, que tinha um certo grau de demência, e passávamos os dias ali, no nosso cantinho. Estava tão cansada e tão doente que nem me apetecia sair da cama, só queria era estar sossegada.

Na pediatria, talvez porque contactamos diariamente com vários vírus, vamos criando alguma imunidade. Eu nunca fico doente, há anos que não me lembro de ficar doente, por isso, quando os primeiros colegas começaram a adoecer, estranhámos — “nós não ficamos doentes”, pelo menos não com estas coisas víricas.

Senti muito cansaço, tive dores musculares, lombares e de garganta, e tive tosse, primeiro mais seca, depois com mais expetoração. E ao nono ou décimo dia acordei e percebi que não conseguia cheirar nada, e saborear também não. Estive assim durante 15 dias, já fiquei doente há um mês e meio, já estou negativa e já voltei a trabalhar, mas ainda não tenho o sabor perfeitamente normal e o cheiro também é diferente. Não consigo cheirar logo uma coisa, só passado algum tempo é que sinto o cheiro.

Tenho dois testes negativos, um de dia 8, outro de 9 de abril. E de vez em quando ainda sinto também um cansaço diferente, alguma rouquidão e uma tosse esporádica.

Aos poucos estou a recuperar, espero que daqui a mais uma semana ou 15 dias já me sinta completamente normal. Acho que o vírus deixa sempre algumas sequelas a nível da orofaringe e que isso se vai mantendo durante algum tempo, apesar de o vírus já cá não estar. Especialmente nas crianças há alguns vírus que também deixam tosse durante mais tempo e alguma hiperatividade brônquica, não sei se será a mesma coisa, ainda nos falta descobrir muita coisa em relação a este vírus e todos os dias estamos a aprender mais um bocadinho e todos os dias surgem dados novos.

Quando voltei para casa continuava positiva, e o mais complicado foi lidar com os meus filhos, que estão habituados ao miminho, ao abraço e ao beijinho e só perguntavam “quando é que vamos poder voltar a abraçar-te?” — mesmo o mais velho, que já tem quase 15 anos.

Fiquei sozinha no quarto, com casa de banho, e o meu marido passou a dormir no quarto da minha filha, que tem 12 anos e é a do meio. O mais novo tem 9.

"As minhas colegas que estiveram na última noite de urgência disseram-me que foi uma tristeza, foi a primeira vez que tivemos de fechar portas e apagar as luzes. É muito triste ter de fazer isto num serviço que sabemos que vai precisar de nós, é muito triste pensar que as nossas crianças vão precisar de nós e que não vamos estar lá para as ajudar"
Elsa Hipólito, pediatra

Quando comecei a melhorar, todos os dias ia um bocadinho lá abaixo, para perto deles. Antes de sair do quarto mudava de roupa, punha a máscara e desinfetava as mãos mas mesmo assim mantinha-me à distância.

Comecei a trabalhar no dia 14 de abril e já voltámos a abrir o serviço de urgência mas só durante o dia, das 8h às 20h. Estava muito ansiosa para trabalhar, os colegas estavam muito sobrecarregados, foi muita gente para casa e alguns ainda não voltaram, custou-me muito estar longe, sobretudo por eles, que ficaram e tiveram de reorganizar todo o serviço. Não foi fácil, nem para eles nem para nós, que os víamos aflitos no campo de batalha e não podíamos fazer nada.

As minhas colegas que estiveram na última noite de urgência disseram-me que foi uma tristeza, foi a primeira vez que tivemos de fechar portas e apagar as luzes. É muito triste ter de fazer isto num serviço que sabemos que vai precisar de nós, é muito triste pensar que as nossas crianças vão precisar de nós e que não vamos estar lá para as ajudar.

Agora tudo é diferente: tentamos não nos cruzar no serviço com os colegas da neonatologia e dos partos, cada um está no seu setor, e estamos a condensar horário, com escalas rotativas — estamos 15 dias em teletrabalho e outros 15 nas urgências, onde alternamos nas áreas Covid e não Covid, como precaução para o caso de desenvolvermos sintomas.

Espero que todos nós, que fomos infetados, tenhamos alguns anticorpos contra o vírus e que, se formos reinfetados, tenhamos apenas sintomas ligeiros, mas continuo a ter todos os cuidados que tinha antes de ter estado doente.

Montei a minha área Covid na garagem: deixo os sapatos, tiro a roupa que trago vestida e meto-a logo na máquina, visto um robe, tomo banho, visto uma roupa lavada e só depois é que estou com a minha família.”

“É um misto de angústia, ansiedade e preocupação por aquilo que vai ser a evolução da doença — e tudo isso incomoda muito”

Fernando Falcão dos Reis
Oftalmologista, diretor de serviço 
Hospital de São João
66 anos

“Entrei em isolamento profilático por volta do dia 8 ou 9 de março, depois de ter tido contacto com um colega, também do serviço de oftalmologia, que estava infetado, sem saber.

Trabalhou na zona de Felgueiras, que aqui na região Norte foi onde começou a infeção, dias depois começou a ter sintomas, fez o teste e deu positivo. Foi praticamente oito dias depois de ter sido identificado o primeiro caso em Portugal. Ele foi um dos primeiros infetados no Hospital de São João, eu terei sido o segundo. Aparentemente ele foi contagiado fora do hospital e eu fui contagiado lá dentro, por ele.

Comecei com febre e com tosse uns oito dias depois de saber que ele estava infetado e de me ter isolado. Fui fazer um teste e deu positivo.

"Apesar de ter ido sozinho, a conduzir, fui com receio do que me podia acontecer. Sei bem que isto não é uma gripe vulgar, e também sei muito bem que o agravamento clínico acontece de uma maneira súbita e em pessoas do grupo de risco, e eu, com a idade que tenho e com uma hipertensão e uma diabetes ligeira, fazia parte do grupo de risco"
Fernando Falcão dos Reis, oftalmologista

Fiquei preocupado, tinha a noção de que o desfecho podia ser muito mau, mas como só tinha febre não muito alta, tosse com uma expetoração abundante, dores musculares, fadiga e mal-estar, continuei em casa.

Depois, mais ou menos ao oitavo dia de doença, tive um pico de febre e uma acentuação dos sintomas, senti-me de facto mal… Sabia, daquilo que tenho lido, que o agravamento quando acontece é à volta do sétimo ou oitavo dia, por isso nessa altura acabei por pedir opinião a um colega do serviço de infecciosas que me recomendou que fosse para o hospital. E assim fiz.

Apesar de ter ido sozinho, a conduzir, fui com receio do que me podia acontecer. Sei bem que isto não é uma gripe vulgar, e também sei muito bem que o agravamento clínico acontece de uma maneira súbita e em pessoas do grupo de risco, e eu, com a idade que tenho e com uma hipertensão e uma diabetes ligeira, fazia parte do grupo de risco.

Fui para o hospital cheio de medo de um agravamento e acabei por ficar internado, num quarto de pressão negativa, como mandam as regras.

Entrei diretamente no serviço de [Doenças] Infecciosas, para não ter de percorrer um longo trajeto dentro do hospital, e no serviço reparei que de facto aquelas pessoas estão muito habituadas a lidar com doenças infecciosas, têm rotinas muito bem implementadas — e a provar isso está o facto de não haver ninguém infetado naquele serviço, que é o que lida diretamente com os doentes com Covid-19.

Umas das coisas que me impressionou foi ter entrado no elevador e ter visto as paredes completamente riscadas com aqueles movimentos circulares de limpeza, aquilo devia ser limpo praticamente de cinco em cinco minutos, e o próprio chão também.

A equipa clínica era uma médica que entrava e outra que ficava no exterior do quarto, e a de enfermagem eram duas enfermeiras que entravam e outra que ficava à porta. A verdade é que me senti completamente apoiado, percebi que se fosse necessária alguma coisa, que se a situação se complicasse, teria ali apoio completo.

Acabou por não ser necessário, só tive de estar internado um dia e quando saí, saí bastante mais tranquilo e confiante de que de facto não estava em perigo de vida. Aquela angústia de pensar que podia ter um desfecho negativo acabou por desaparecer por inteiro quando tive alta do hospital.

Fernando Falcão dos Reis, na fotografia oficial da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia e no São João, a operar

Esfera das Ideias

Mas ainda não estava bem. No total, mantive-me durante 12 dias com tosse, dores musculares e febre, cheguei a ter 3 ou 4 dias com um pico de febre, o que não é muito comum na Covid. Tive 39,5ºC, com essa temperatura a pessoa fica prostrada, não consegue não fazer nada a não ser praticamente dormir. Depois finalmente fiquei bem. Desapareceu a tosse, desapareceu a febre e agora estou há já 20 dias sem qualquer tipo de sintomas — mas ainda estou positivo.

Curado já estou, isso é óbvio, estou curado, tenho uma ausência total de sintomas, estou curado; mas poderei estar contagiante. Ontem fiz mais um teste, ainda positivo. E agora vou ter de esperar mais oito dias para fazer o próximo.

Este confinamento num quarto — não estou confinado em casa, estou confinado a um quarto — não é muito fácil de aguentar. Portanto direi que a minha saúde física neste momento está boa, mas a minha saúde mental provavelmente já não estará assim muito bem…

Passo o dia fechado, a ler, ver televisão, ouvir música e fazer alguma ginástica, para combater este sedentarismo compulsório. Tento ser regrado na alimentação, para não estar a engordar também, mas no fundo a rotina é essa. Vou fazendo isto ciclicamente ao longo do dia para ver se os dias passam. No conjunto já estou há um mês e meio confinado e isso é duro, é muito duro.

Pelo menos tenho a consolação de não ter infetado a minha mulher; tenho alguns colegas  que acabaram por infetar a mulher e os filhos… Agora, olhando para trás, percebo que o meu isolamento foi muito eficaz, porque ninguém da minha família está infetado, e no serviço também não.

Eu passei por ela, enfim, com alguma facilidade, mas esta doença é de facto muito diferente de uma gripe. Não só pelo tempo de febre — não me recordo, em toda a vida, de ter tido 12 dias de febre — mas também pela fadiga muscular e pelo mal-estar que provoca. É uma sensação que é difícil de concretizar em palavras, é um misto de angústia, ansiedade e preocupação por aquilo que vai ser a evolução da doença — e tudo isso incomoda muito…

A maior parte das pessoas que tem isto de maneira assintomática, ou com uma doença leve, poderá não ter noção da gravidade, mas um médico sabe que o desfecho poderá ser muito grave.

"Esta doença é de facto muito diferente de uma gripe. Não só pelo tempo de febre — não me recordo, em toda a vida, de ter tido 12 dias de febre — mas também pela fadiga muscular e pelo mal-estar que provoca. É uma sensação que é difícil de concretizar em palavras, é um misto de angústia, ansiedade e preocupação por aquilo que vai ser a evolução da doença — e tudo isso incomoda muito"
Fernando Falcão dos Reis, oftalmologista

Há doenças em que ser médico é uma vantagem; sabemos exatamente aquilo que é e como vai correr, mas nesta penso que não é assim. Talvez não haja vantagem nenhuma em ser médico ou enfermeiro numa altura destas… Um não profissional tem uma reação melhor do que um profissional, que está mais consciente do potencial de gravidade da doença. Eu próprio senti isso, por um lado tinha uma boa parte de informação científica sobre a doença, mas por outro sentia-me um pouco derrotado em termos psicológicos pela possibilidade de um desfecho mau ou fatal.

Sobre a questão da imunidade ainda não se sabe grande coisa, mas o hospital está a fazer um estudo-piloto e pediu-me para ir lá tirar sangue. Em primeiro lugar é necessário testar os parâmetros médicos e laboratoriais que avaliam se a pessoa tem ou não tem imunidade. Se for o caso, a ideia é tentar usar o componente líquido do sangue, o plasma, como possível tratamento para doentes que tenham a doença em forma grave. Isto ainda está numa fase um bocado incipiente mas fico contente por ter participado no estudo, espero que permita de alguma maneira ser útil para as tais formas graves da doença.

Para já, tudo o que quero é ser negativo para poder regressar imediatamente ao hospital. Estou lá desde sempre, foi lá que fiz a faculdade, o chamado internato e o internato complementar de oftalmologia, e desde então que sou especialista do Hospital de São João, tenho muita vontade de regressar ao trabalho.

No meu serviço, até agora, não houve mais ninguém infetado; os que tiveram mais contacto com o primeiro caso estiveram de quarentena, e alguns colegas, com mais de 60 anos, têm estado mais afastados. Mas o serviço tem muitos médicos e os que lá estão têm assegurado o serviço de urgência e as cirurgias urgentes.

Tem havido algumas consultas presenciais mas grande parte das consultas que estavam agendadas têm sido feitas por telemedicina, portanto o serviço nunca parou e tem funcionado bem, para as condições atuais. Estamos agora a pensar em como podemos regressar a uma atividade o mais normal possível.”

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