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Isaura, António, Luciano, Hermínia e Maria do Carmo. Os centenários que venceram a Covid-19

Com mais de 100 anos, três mulheres e dois homem falam sobre os dias em que estiveram confinados e sobre a sua desconfiança em relação à pandemia. Afinal, nenhum teve sintomas associados à Covid-19.

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Cinco pessoas e três números para compor a sua idade. Isaura, António, Luciano, Hermínia e Maria do Carmo já comemoraram o seu aniversário, pelo menos, 100 vezes e foram recentemente obrigados a ficar em isolamento por causa da infeção por Covid-19. Dos cinco, só Luciano esteve internado, no Hospital de São João, no Porto. Os restantes acreditam que não estiveram doentes, tendo em conta que os sintomas foram poucos ou inexistentes, e contam agora as suas histórias e memórias do período de infeção e de tudo o que já viveram.

Em Portugal, não só a esperança de vida à nascença tem aumentado nos últimos anos, como também tem vindo a crescer o número de anos que alguém com mais de 65 anos pode esperar viver. E, segundo o estudo Como Envelhecem os Portugueses, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em 2018, Portugal era o terceiro país da Europa com maior percentagem de idosos (21,7%), depois de Itália e Grécia. Os centenários têm vindo a aumentar e, em 2019, registaram-se 4243 pessoas com 100 anos ou mais – há mais centenários na zona Centro do país e há também mais mulheres do que homens.

“Não tenho segredos. Foi Deus que me deixou viver tanto tempo”

Isaura Teixeira, 106 anos

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Quando eu vim para este mundo,
Eu não sei nada de nada.
Hoje eu sou Gabriela,
Gabriela, é meu camarada.
Quem me vacinou, quem me batizou, pouco me importou,
Hoje eu sou Gabriela,
Sempre Gabriela”

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Este pedaço de canção não corresponde exatamente à letra original da Modinha para Gabriela, cantada por Gal Costa. Isaura Teixeira, ou Isaurinha, como é conhecida por todas as pessoas do lar Sant’Ana, em Oliveira do Hospital, faz uma adaptação da letra. Improvisa, mas não canta sempre, nem para toda a gente. As melodias só lhe saem quando está sozinha, ou perto de pessoas de quem gosta. Se assim for, canta desde Marco Paulo a Amália Rodrigues, sem esquecer os Fados de Coimbra.

Não tem por hábito dar muita confiança e foi também desta forma que lidou com a Covid-19: sempre com algum distanciamento. O vírus instalou-se no seu corpo em 2021, no mesmo ano em que completou 106 anos, mas nem sinal de sintomas. Sem tosse, sem dores no corpo, sem febre, sem qualquer sinal comum desta infeção, cuja taxa de mortalidade em pessoas acima dos 80 anos é mais elevada. E, tal como em toda a sua vida, não tomou qualquer medicamento. Só toma, como conta ao Observador, se tiver dores de cabeça, o que acontece raras vezes.

Apesar de não sair do lar que dá vista para a Serra do Açor e recebe o frio da Serra da Estrela, Isaurinha tem sempre consigo uma pequena mala verde, onde guarda o lenço que serve para limpar a lágrima que, insistentemente, cai. Esta lágrima explica o único problema relacionado com saúde: “Vejo muito pouquinho, tenho um problema nos olhos e não posso andar sempre a mexer, porque ainda fico pior. Tenho de andar sempre com uma menina para me segurar e tenho sempre os olhos a chorar. Não sou cega, só não vejo bem. Mas olhe, paciência, não se pode ter tudo.”

Isaurinha passa os dias no salão do lar onde está desde os 103 anos e, apesar de não querer participar nas atividades diárias — que incluem trabalhos manuais e jogos –, por considerar que “aquilo não tem jeito nenhum”, mantém as suas rotinas. Acorda, toma banho, veste-se e senta-se sempre na mesma cadeira, perto da casa de banho. Ao pequeno-almoço e lanche pede um “café com leite quentinho e docinho” e, por docinho, entende-se que sejam quatro ou cinco colheres de açúcar. Ainda assim, não há vestígio de diabetes. “Aquilo não é ser gulosa, é comer aquilo de que se gosta”, justifica.

Ao pequeno-almoço e lanche pede um “café com leite quentinho e docinho”. Por docinho entende-se que sejam quatro ou cinco colheres de açúcar. “Aquilo não é ser gulosa, é comer aquilo que se gosta”, justifica. Perder rotinas por causa do isolamento foi o que causou maior confusão na sua cabeça. Não podia sair do quarto, descer as escadas e sentar-se no espaço comum, mesmo que tenha por hábito não falar com praticamente ninguém.

Perder estas rotinas por causa do isolamento foi o que causou maior confusão na sua cabeça. Não podia sair do quarto, descer as escadas e sentar-se no espaço comum, mesmo que tenha por hábito não falar com praticamente ninguém. “Estar ali todos os dias também é chato. Olhe, faço contas de cabeça.” Ainda assim, só costumava ir para o quarto à noite, para dormir. Durante os dias de isolamento perdeu a noção do espaço, sobretudo porque estava habituada a ter alguém sempre com ela para que pudesse movimentar-se.

A memória já vai falhando, mas ficam as recordações mais marcantes, como a vinda do Papa João Paulo II a Portugal, quando Isaurinha ainda vivia em Lisboa — onde passou a maior parte da vida, antes de se instalar na cidade do distrito de Coimbra para ajudar a irmã, que estava doente. “Tudo rodeado de polícia, porque o Papa não andava sozinho. Foi tão bonito. Nós gritávamos ‘Papa à janela, Papa à janela’”. Como a sua memória seleciona pontos-chave, e como não teve sintomas quando testou positivo à Covid-19, Isaurinha praticamente nem deu conta, explica Sandra, psicóloga daquela instituição e a única pessoa dali para quem canta. E Isaurinha confirma: “Ainda não passou? Andei muito tempo de máscara, mas que raio de coisa, nunca mais passa isto do vírus”.

Tal como aconteceu durante a infeção, quando tomou as três doses da vacina contra a Covid-19, a mulher, de um cabelo tão branco quanto o da sua blusa, não teve sintomas nem foi necessário tomar qualquer comprimido. Continuou a cantar quando queria, para quem queria e continuou também com saudades da sua “casinha”, para onde diz querer voltar. Primeiro, porque “cantava desde que acordava”, limpava a casa e “fazia uma comidinha muito boa”. Cozinhava, no fundo, aquilo de que gostava: carapaus com arroz de tomate, carne estufada “e uma panela de sopa que dava para toda a semana”.

Isaurinha não gosta de falar sobre a idade e considera uma falta de respeito que esse assunto seja abordado. Aliás, conta-se muitas vezes por ali a história do enfermeiro que, pouco tempo depois de se instalar naquele lar, tocou no assunto: “Então, ouvi dizer que tem 103 anos”. “Mas o que é que ele tem a ver com a minha idade?”, questionava, furiosa. Apesar de já não ter essa memória, até porque gosta de recordar só os bons momentos, Isaurinha já viveu duas pandemias — a gripe espanhola, que começou em 1918, e agora a da Covid-19. Nasceu durante a Primeira Guerra Mundial e nunca casou, fazendo assim parte dos 10% de mulheres solteiras com 90 ou mais anos, segundo os dados do INE de 2011.

Este último facto é, aliás, recordado várias vezes e surge sempre com vários detalhes sobre os seus pretendentes e sobre aqueles que a abordavam nas ruas da Baixa de Lisboa, quando vivia na capital e saía de casa para ver as “montras lindas e muito arranjadinhas”, ou para ir ao Parque Mayer e ao cineteatro do Monumental. “Pretendentes tive muitos, mas não calhou casar”, atira. E sobre as abordagens que aconteciam na rua, Isaurinha respondia com a cara que ainda hoje dizem que faz quando não gosta do que ouve. “Passavam dois rapazes e diziam assim: ‘A menina dá licença que a acompanhe?’ Eu olhava para eles assim com uma cara, não dava confiança, e diziam um para o outro: ‘Epa, não te metas com ela, que tem cara de sogra’”.

Aos 106 anos, Isaurinha diz não saber o que é “ter cara de sogra” e, se lhe perguntarem qual é o segredo para viver tanto e com tanta qualidade e independência, a resposta surge de imediato, e não é por nunca ter casado: “Não tenho segredos. Foi Deus que me deixou viver tanto tempo”.

“Não se reconhecia ninguém, as pessoas estavam todas tapadas”

Luciano Marques da Silva, 101 anos

Reportagem com idosos de mais de 100 anos, que sobreviveram à Covid-19. 26 de Fevereiro de 2022, Porto TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

As meias cinzentas que Luciano calçou no último sábado de fevereiro contam uma história: foram a sua prenda de aniversário, oferecida pelos profissionais de saúde do Serviço de Infecciologia do Hospital de São João, no Porto. Estas duas peças de roupa já têm quase dois anos e Luciano Marques da Silva está perto dos 102. Atingiu o patamar dos três dígitos quando estava internado, depois de ter testado positivo à Covid-19, logo no início da pandemia, ainda as dúvidas se multiplicavam – quer sobre a doença quer sobre procedimentos médicos e de segurança. Cantaram-lhe os parabéns no corredor do hospital, houve bolo de aniversário e ainda teve direito a um desenho que dizia “Parabéns, tio Luciano”.

Uma ambulância transportou Luciano da casa da sua filha, na Maia, para o Hospital de São João no dia 24 de março de 2020, 22 dias depois de ter sido detetado o primeiro caso de infeção em Portugal. A tosse, primeiro seca e depois com expetoração, deixaram a filha Maria José preocupada. Maria José, a filha de Luciano, decidiu então fazer um teste e, perante um resultado positivo, pediu para que o pai fosse também testado. Quando deu entrada no hospital, Luciano já tinha sinais de pneumonia.

“Tinha muita tosse e cansaço. Fiquei logo lá no hospital e fui para uma sala que não tinha ninguém, estava despida. Fiquei lá 15 dias e depois quando vim para casa ficámos todos de quarentena dois meses”, recorda Luciano. Enquanto esteve hospitalizado, Luciano teve sempre noção do sítio onde estava e, como consequência dos sintomas que desenvolveu, teve de receber oxigénio. “E quando vim para casa, ainda estive ligado ao oxigénio quatro meses”, acrescenta.

“Tinha muita tosse e cansaço. Fiquei logo lá no hospital e fui para uma sala que não tinha ninguém, estava despida. Fiquei lá 15 dias e depois, quando vim para casa, ficámos todos de quarentena dois meses”, recorda Luciano. Enquanto esteve hospitalizado, Luciano teve sempre noção do sítio onde estava e, como consequência dos sintomas que desenvolveu, teve de receber oxigénio. “E quando vim para casa, ainda estive ligado ao oxigénio quatro meses”, acrescenta. Do internamento, este centenário guarda na memória o cenário de um hospital que estava, naquela altura, a aprender a adaptar-se a um novo vírus. Não falou com a família, porque não podia receber visitas, e também não falou com a filha através do telemóvel. “Não se reconhecia ninguém, as pessoas estavam todas tapadas. Estamos isolados do mundo, não sabemos o que se passa lá fora, nem com a família, nem nada”.

Luciano faz parte dos primeiros 100 recuperados da Covid-19 em Portugal, mas as sequelas da infeção ainda são hoje visíveis, apesar de não apresentarem gravidade. A tosse seca continua, interrompendo algumas vezes o discurso de Luciano, e, explicou a filha, “ficou com sequelas, tem um derrame no pulmão esquerdo, que tem de ser vigiado”.

Mas Luciano não se queixa, nem mesmo quando esteve hospitalizado. Não chatear as pessoas que estão à sua volta faz parte dos seus princípios. E dá muito valor à liberdade, sobretudo numa idade em que já não tem ninguém da sua geração por perto. Vai à missa, frequenta a mesma igreja que a filha, mas quando vão os dois, ao domingo, nunca saem de casa juntos. Luciano gosta de ir mais cedo, no seu carro, e de aguardar dentro da igreja. E à tarde vai sempre lanchar ao café. Nunca vai ao mesmo, “porque assim dá para ajudar toda a gente”.

A poucas semanas de completar 102 anos, este homem ainda conduz. “Ando melhor a pé do que de carro”, acrescenta. A velocidade é muito reduzida, circula sempre muito próximo da berma da estrada e, por ali, já sabem que é preciso ter paciência para ir atrás do senhor Luciano. Com mais rapidez, e “só para se entreter”, este homem faz contas de dividir. E lê livros e jornais, apesar de “as letras estarem agora mais pequenas”.

“Não me sentia mal, mas tinha de estar ali fechado. Isso são coisas que se façam?”

António Martinho, 100 anos

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A idade traz alguns privilégios e António Martinho faz questão de usar todos os trunfos que tem à mão. Logo de manhã, na sala onde toma o pequeno-almoço, senta-se no respetivo lugar e aguarda pelas suas duas chávenas de café com leite e pelos dois pães, ao lado dos restantes idosos que vivem na Fundação Sarah Beirão, em Tábua. Martinho, como é tratado por ali, espera, mas não espera demasiado. Se não for o primeiro a ter à frente o seu pequeno-almoço habitual, ouve-se logo: “Então, mas eu é que tenho 100 anos, tenho de ser o primeiro”. A pressa existe, mas o tom é sempre de brincadeira.

Esta frase, porém, não se ouviu durante sete dias, nem o pequeno-almoço do senhor Martinho foi servido na sala comum. A cerca de seis meses de acrescentar mais um ano aos seus 100, no início do mês de fevereiro, Martinho testou positivo à Covid-19. Já com a terceira dose da vacina, vários casos nesta instituição empurraram os utentes para os respetivos quartos e foi exatamente este isolamento que o deixou chateado.

Nos primeiros dois dias, sentiu cansaço, sobretudo nas pernas, e esteve deitado na sua cama. Este sintoma rapidamente desapareceu e, por isso, sempre achou que a Covid-19 lhe tinha passado ao lado e não estava infetado. Afinal, sentia-se muito bem, com vontade de andar e pedia constantemente às pessoas que ali trabalham todos os dias para sair do quarto, enquanto comparava o seu isolamento a uma prisão. “Não me sentia mal, mas tinha de estar ali fechado. Isso são coisas que se façam? Olhe, era como uma pedra que estava ali”, conta agora, indignado com o confinamento.

Durante estes sete dias de isolamento, além de não poder sair do quarto, também não conseguiu fazer aquilo de que mais gosta: tocar acordeão. Não só no Natal, ou a propósito do aniversário de alguém do lar, Martinho está sempre pronto para dar música aos que estão à sua volta. Afinal, este instrumento é a sua companhia há tantos anos, que já lhe perdeu a conta. Aprendeu e começou a tocar regularmente no Brasil, onde viveu mais de 60 anos, fez parte de ranchos folclóricos em Portugal, depois de ter regressado do Rio de Janeiro, e usa agora o talento para animar os dias da Fundação Sarah Beirão.

Durante estes sete dias de isolamento, além de não poder sair do quarto, também não conseguiu fazer aquilo que mais gosta: tocar acordeão. Não só no Natal, ou a propósito do aniversário de alguém do lar, o senhor Martinho está sempre pronto para dar música aos que estão à sua volta. Afinal, este instrumento é a sua companhia há tantos anos, que já lhe perdeu a conta.

Quando o presente se cruza com o acordeão, as memórias vão de imediato parar à rua do Bom Pastor, na Tijuca, onde esteve mais de meia década. As festas na Casa do Porto e na Casa dos Poveiros — dois espaços onde ainda hoje se encontram conhecidos e desconhecidos que trocaram Portugal pelo Brasil — são também recordadas com nostalgia. Primeiro trabalhou como vendedor de pão, depois começou um negócio como sapateiro e, quando tinha a sua vida organizada em território brasileiro, deu outro passo: “Mandei uma carta de chamada para Portugal, mas só foi a minha mulher. As minhas filhas não foram. Uma já tinha casado e a outra arranjou um namorado e não quis ir”.

Do outro lado do Atlântico, “tinha uma casinha jeitosinha”, mas a aventura pelo Rio de Janeiro chegou ao fim quando a sua mulher lhe fez um pedido que ainda hoje recorda. “Vende tudo e vamos embora. Se tu morreres, o que é que eu faço? Não sei ler, não sei nada”, insistiu a mulher. E assim foi. Venderam tudo e, já reformados, regressaram a Portugal. Ela morreu pouco tempo depois, Martinho passou a viver sozinho.

Alguns anos mais tarde, entrou no lar e, apesar de ter muita vontade de voltar para casa, porque, afinal, dorme sozinho de qualquer forma, admite que este sítio “é melhor, porque tem médica e a comida é boa”. E há jogos e ginástica, como aquela que começou a fazer quando foi obrigado a vestir-se de verde e era ainda jovem, recorda. “Na tropa comecei a fazer ginástica.” No total, seis anos distribuídos por Cabo Verde e por São Miguel, nos Açores.

A vida vai acumulando memórias, mas também cansaço. No seu registo consta uma operação ao joelho e, no ano passado, já durante a pandemia, mas sem qualquer relação com a Covid-19, deixou de andar. Melhorou e voltou a ser autónomo. Martinho faz 101 anos em julho e já está a pensar nas fotografias que podem tirar e nos vídeos que vão depois para o Facebook, onde as netas podem ver o que o avô faz.

“Não podemos sair, porque o bicho ainda não morreu”

Hermínia Fernandes, 100 anos

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Virada para a antiga Fábrica da Cerveja, na Avenida Almirante Reis, em Lisboa, Hermínia Fernandes guarda na varanda do seu quarto dois vasos — um aspargo, que está sempre verde, e uma roseira, que dá rosas vermelhas de vez em quando. As plantas foram transportadas de sua casa para o lar Esperança no Castelo, onde está há cerca de seis anos e, dentro do atual quarto, só a cama é que não é sua. Até o pano em renda pousado em cima da mesa de cabeceira foi feito por Hermínia quando casou.

As recordações permanecem na parede, nos móveis, nas rendas e nos santos expostos em cima da cómoda, mas algumas já escapam da memória de Hermínia. O quarto serve, no entanto, apenas para dormir, ou para receber as visitas diárias que o filho fazia antes da pandemia, altura em que não existiam restrições. Mesmo quando testou positivo à Covid-19, a mulher que vai completar 101 anos no terceiro dia de abril não ficou confinada às quatro paredes daquela divisão. Apesar de não poder sair da estrutura residencial, Hermínia continuava a visitar os espaços comuns, porque, afinal, todos os utentes e funcionários receberam um resultado positivo.

Quando o vírus chegou ao lar de uma das mais movimentadas avenidas da capital, em novembro de 2020, Portugal ainda não tinha recebido a vacina contra a Covid-19 — o processo de vacinação começou apenas no final do ano. Mesmo sem vacina, Hermínia não teve qualquer sintoma, nem foi necessária intervenção médica.

Passou pela infeção sem sinais da doença, está hoje sem marcas da Covid-19 e é por isso que, diz quem ali trabalha todos os dias, Hermínia não teve noção de que teve Covid-19, sobretudo numa época em que tantos lares registaram surtos e mortes. Só nesse mês de novembro, em plena segunda vaga da doença, havia mais de quatro mil casos ativos em lares. E foi aí que o Ministério da Saúde decidiu dar início a um plano de testagem nas Estruturas Residenciais para Idosos.

Antes de começar a pandemia, esta mulher tinha uma vida muito mais independente. Exemplo disso é o último natal que passou fora do lar, em 2019. Saiu, foi a pé até casa do único filho que vive perto da Avenida Almirante Reis, jantou e por volta da meia noite voltou para o seu quarto repleto de recordações.

“Eu quero sair. Não podemos sair, porque o bicho ainda não morreu”, vai dizendo Hermínia, visivelmente contrariada. É que antes de começar a pandemia, esta mulher tinha uma vida muito mais independente. Exemplo disso é o último natal que passou fora do lar, em 2019. Saiu, foi a pé até casa do único filho que vive perto da Avenida Almirante Reis, jantou e por volta da meia noite voltou para o seu quarto repleto de recordações.

Nunca aprendeu a ler nem a escrever. Mas a escola nunca se transformou numa barreira durante a vida. Já com a voz tremida, Hermínia garante que “conseguia resolver tudo”, estando em Oleiros, onde cresceu, ou em Lisboa, onde era doméstica e, mais tarde, ajudou a tratar da neta. Uma vez, relembra, foi sozinha com o filho para uma zona do país para fazer um tratamento que ajudaria a resolver a falta de iodo.

E nem mesmo a fratura do colo do fémur, quando tinha 95 anos, determinou o fim de uma vida autónoma. Hoje, a poucos meses de completar 101 anos, Hermínia faz questão de escolher a roupa que veste todos os dias, não gosta de mantas e ainda aprecia um copo de vinho.

“Há muito tempo que não vou à rua, mas é porque não posso andar”

Maria do Carmo Poupinha, 100 anos

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Entre estar em casa do filho e viver no lar, Maria do Carmo Poupinha acrescenta e escolhe uma terceira opção: “preferia estar em minha casa. Gosto de estar aqui, mas gostava mais de estar na minha casa”.

A menos de dois meses de completar 101 anos, esta centenária mantém as ideias firmes e, apesar de não ter noção de que o mundo atravessa há dois anos uma pandemia, garante que só não sai do lar Esperança no Castelo, em Lisboa, porque as pernas já não colaboram. “Há muito tempo que não vou à rua, mas é porque não posso andar. Se pudesse andar, ia à rua.” Neste lugar, a realidade sobre a doença que se espalhou pelo mundo há dois anos passa despercebida e um dos motivos passa pelos programas de televisão.

Na sala comum, os utentes estão sentados estrategicamente em direção ao monitor, mas naquele retângulo passam sobretudo filmes portugueses, música ou programas de animais. As notícias são um tema sensível e este lar optou por evitar preocupações.

“Trabalhei 30 anos numa casa de engomar. Estava todo o dia de pé. Trabalhava aos sábados, domingos e feriados”, contou Maria do Carmo. Durante três décadas, fez o percurso entre a Avenida João III, onde vivia, e a zona da Feira da Ladra, onde trabalhava. “A minha vida era de trabalho, mas agora já não consigo andar muito”, vai dizendo.

A cadeira de rodas faz parte da vida de Maria do Carmo há algum tempo e passou a ser presença assídua desde que foi operada, a propósito de uma fratura do colo do fémur e já depois de ter testado positivo à Covid-19. Mais uma vez, e à semelhança dos testemunhos anteriores, esta mulher não teve qualquer sintoma, mesmo sem vacina. Maria do Carmo passou pela doença em novembro de 2020, na mesma altura que Hermínia Fernandes e, depois disso, quando foi vacinada não existiram quaisquer sinais de tosse, febre ou dores no corpo — alguns dos sintomas mais comuns.

A cadeira de rodas que hoje a ajuda a mover-se dentro do lar é também um reflexo do percurso que foi traçando ao longo da vida. “Trabalhei 30 anos numa casa de engomar. Estava todo o dia de pé. Trabalhava aos sábados, domingos e feriados”, contou Maria do Carmo. Durante três décadas, fez o percurso entre a Avenida João III, onde vivia, e a zona da Feira da Ladra, onde trabalhava. “A minha vida era de trabalho, mas agora já não consigo andar muito”, vai dizendo.

As mudanças são uma constante na vida de Maria do Carmo. Do trabalho à reforma, da casa ao lar, da autonomia que tinha há dois anos para a cadeira de rodas, e até a loja onde engomava roupa se transformou num café.

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