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Isto é a TV em movimento

Nuno Costa Santos olha para vários programas de hoje e de há 30 e 40 anos e pergunta: do "1,2,3" ao "Preço Certo" ou de "Brideshead Revisited" a "Dowton Abbey" será que as coisas mudaram assim tanto?

 

Eu vejo televisão. Peço desculpa. Sei que me ficaria melhor dizer: eu não vejo televisão. Que é o que dizem os nossos amigos e conhecidos que têm três livros nas estantes, um deles oferecido por um semanário. Eu vejo televisão e cresci com ela. Com o Vasco Granja, o “Domingo Desportivo”, “O Tal Canal”, “O Sítio do Pica-Pau Amarelo”, o “MacGyver”, o “Allô Allô!”, o “Eu Show Nico”, o “Era uma Vez o Espaço”, o “Roque Santeiro”, o “Dartacão”, o “Cheers, Aquele Bar”, o “Modelo e Detective”, a “Rua Sésamo”, o “Alf”, os “Três Duques” e “O Barco do Amor”. E com a “Roda da Sorte”, essa missa humorística diária, hilariante concurso sem interesse nenhum que acabou com o instante mais livre da televisão portuguesa e provavelmente mundial: aquele em que Herman enfiou uns quantos balázios no estúdio. Ah e também cresci com os anúncios do Boca Doce, da Mokambo e da Regisconta. Sei que não estou sozinho nisto.

Numa altura em que a internética Netflix aterra com aparato em Portugal, permitindo ao cidadão ver o que quer ver quando lhe apetece, é de lembrar um tempo de fascismo televisivo, em que nada se podia escolher. Gramava-se o “70X7” e bem caladinho. Nessa altura não havia esta coisa ainda desconfortável para alguns espíritos mais conservadores de uma box que permite puxar o telejornal, quase a terminar, para o momento da aclamação de Manuel Palito à saída do tribunal ou para aquela gafe do Rodrigues dos Santos que lhe valeu doze segundos de crucificação nas redes sociais. Só com os dinosssauros tecnológicos Betamax e VHS é que uma pessoa pôde voltar a ver os telediscos do Huey Louie and the News e os resumos das competições europeias narrados pelo Rui Tovar.

Mas este sábado é o Dia Mundial da Televisão e o texto merece o mínimo de ponto de ordem histórico. Diz-se nas esquinas e nos táxis que a TV mudou muito de há 40 anos para cá, que os programas do antigamente é que eram bons e que hoje o panorama é uma mistela entre telenovelas, debates ocos sobre futebol e política, reality shows bestializantes e noticiários que privilegiam gafes. É conversa feita de um país que está sempre a proclamar que gostava de ter um nível cultural superior na televisão mas na verdade passa as horas fixado em rodapés com notícias espatafúrdias e cheias de gralhas? Conversemos um pouco sobre o assunto.

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[Antes, veja nesta fotogaleria alguns momentos das últimas décadas da televisão portuguesa]

16 fotos

A televisão portuguesa demorou muito tempo a ganhar um coloridozinho. As emissões televisivas começaram em Portugal em 1957 mas só em 1980 é que passou o primeiro programa a cores: o cada vez mais cinzento e deprimente Festival da Canção. Até lá assistíamos a peças jornalísticas sobre o chinquilho como se estivessemos a assistir a um filme do Dryer.

Sabemos todos – e o YouTube também – que, pouco tempo antes do 25 de Abril, a televisão foi marcada por programas como “Se Bem Me Lembro”, desse comunicador genial chamado Vitorino Nemésio, e “Zip-Zip”, apresentado por Fialho Gouveia, Raul Solnado e Carlos Cruz e com um genérico psicadélico de Manuel Pires.

https://www.youtube.com/watch?v=ZHlDzP0HAss

Pouco tempo depois da revolução veio um programa revolucionário: “A Visita da Cornélia”, com apresentação de Gouveia e Solnado. Sobre os programas, este último disse que eram “duas maneiras de mostrar os portugueses aos portugueses”. Com uma diferença: no “Zip”, um talkshow, os participantes eram escolhidos. Na “Cornélia”, um concurso, sorteados. Um princípio de democratização.

Chegou o intuito de dar a conhecer talentos que concorriam para chegar à montra televisiva. As provas, sabemo-lo, iam da demonstração de cultura geral às provas de criatividade, como o pé de dança e a cantoria, passando por momentos de teatro. Um mix entre o “Quem Quer Ser Milionário”, o “Dança Comigo”, o “The Voice” e aquele programa do Diogo Infante que permitia a anónimos arriscarem as artes da representação. “Parece-me que os portugueses encontraram uma nova forma de espectáculo”, comentou Solnado. Fialho Gouveia, além de salientar a importância maior da partilha de talentos, falava do elemento lúdico: “É um momento para brincar consigo próprio e com os outros”. Um regabofe com alguma aprendizagem sem pretensões de maior.

"A Visita da Cornélia" era, como se comprova por alguns dos seus concorrentes, um programa frequentado pelas elites. Assis Pacheco chegou a reivindicar mais gente comum em cena, capaz de partilhar o seu modo de ser e conhecer com a população telespectadora.

O programa tinha um tom muito português, muito cá da casa, assumindo a herança dos espectáculos ao vivo de anos anteriores, mas, acompanhando o embalo experimental de “Zip-Zip”, com ventos mais livres e arriscados. Dos cenários à banda sonora, da maneira de vestir até ao verbo dos apresentadores, tudo remetia para um Portugal ainda fechado sobre si próprio mas muito comunitário, simpático, convivial. Era uma televisão caseira. Às segundas à noite muitas pessoas se reuniam para assistir às emissões. Com tamanho sucesso só a telenovela “Gabriela, Cravo e Canela”, estreada em Maio de 1977 e que viciou até vigários, diáconos e deputados.

Recorde-se que através deste programa alguns nomes se tornaram conhecidos do “grande público”. O jornalista e escritor Fernando Assis Pacheco – que fez par com a cunhada, Maria do Carmo de Ruella Ramos (Carminho) – foi um deles. Mas houve mais: Pitum Keil do Amaral, Gonçalo Lucena, Rui Guedes e José Fanha. Tozé Martinho e a sua mãe, Tareka, tiveram sucesso inesperado, vindo a tornar-se actores, sonho maior dos participantes dos reality shows de hoje. Apesar da valorização do mérito, “A Visita da Cornélia” não deixava de ser, como se comprova por alguns dos seus concorrentes, um programa frequentado pelas elites. Assis Pacheco chegou a reivindicar mais gente comum em cena, capaz de partilhar o seu modo de ser e conhecer com a população telespectadora.

https://www.youtube.com/watch?v=6tj7_ASMqZg

Uma pergunta à Malato: que programa dos anos 2000, emitido numa televisão privada, partilha com “A Visita da Cornélia” um gosto assumido pelo imaginário campestre? Isso: a “A Quinta das Celebridades”. Um reality show da TVI cujo objectivo é reunir uma série de famosos em ambiente rural e obrigá-los não a falar com uma vaca divertida mas a executar tarefas campestres como tratar de animais e dar um jeito aos verdes da horta. Se na “Cornélia” venceram Vasco Raimundo, José Fanha e Rui Guedes (sim, o do Toppo Giggio), na edição de 2004 da “Quinta das Celebridades” ganhou José Castelo Branco, certame que juntou Alexandre Frota, Cinha Jardim e – não nos esqueçamos – o democrata-cristão Avelino Ferreira Torres. A 3.ª edição estreou-se no início do mês passado e não consta que exija conhecimentos sobre a Constituição da República Portuguesa.

"Downton Abbey", inaugurada em setembro de 2010 e já com seis temporadas, foi, para muitos, uma nova "Brideshead Revisited", com as suas múltiplas histórias de nobres e seus criados (seus funcionários, pronto).

Se bem que os números das audiências sejam muito generosos para o gosto televisivo voyeur, a verdade é que em diversas cafetarias do país se sente uma temperatura nostálgica pela televisão de “Dallas” e dos “Jogos Sem Fronteiras”. Os frequentadores de casas de chá relembram com regularidade uma série, “Reviver o Passado em Brideshead”, adaptação ao ecrã, concretizada em 1981 pela Granada Television, de um romance de Evelyn Waugh publicado em 1945. As peripécias emocionais de Charles Ryder (interpretado por Jeremy Irons), Sebastian e Julia não mais saíram do imaginário de uma geração, interessada também nos hábitos sociais e religiosos pré-Segunda Guerra Mundial de uma família aristocrática inglesa: os Marchmain.

Em anos recentes, surgiu o interesse televisivo por outra família da nobreza inglesa a viver no campo, desta feita no início do século XX, os Crawley. “Downton Abbey”, estreada em setembro de 2010 e já com seis temporadas, foi, para muitos, uma nova “Brideshead Revisited”, com as suas múltiplas histórias de nobres e seus criados (seus funcionários, pronto). Mas, a partir de certa altura, a doutrina dividiu-se. A exigência pouco intelectual de novas temporadas tirou a “Downton Abbey” a classificação de Arte para passar a ser mais uma série que se prolongou demasiado como um casamento que foi feliz mas a certa altura deixa de fazer sentido.

Pode dizer-se que o “Preço Certo em Euros” é o “1,2,3” de hoje. A menos sensual Botilde foi substituída por uma torneada moça estrangeira chamada Lenka. Não existe uma grande diferença na forma de comunicação com o público entre Carlos Cruz e Fernando Mendes. Os dois, em estilos diferentes, sabem falar uma língua que um vasto Portugal compreende. Com um pivô de apoio: no caso do “1,2,3” António Macedo e no “Preço Certo” Miguel Vital. Os prémios são do mesmo tipo. O “1,2,3” tinha um extra. Quem não se lembra do Fininho?

Por alguma razão o “Preço Certo” ultrapassou em muito o seu previsto prazo de validade. Teve uma primeira versão nos anos 90, mas reapareceu em 2002 com o nome “Preço Certo em Euros” para familiarizar os portugueses com a nova moeda. Daqui a nada teremos o “Preço Certo em Escudos”. É aguardar.

https://www.youtube.com/watch?v=IRFX3-XPtuE

A criançada dos anos 80 tinha um amigo televisivo: Vasco Granja, homem de um ameno carisma que dispensava a melhor das dicções. Hoje existem hipóteses diversas de desenhos animados na 2. Mas muitos miúdos praticam o frenético gesto do zapping e vários preferem avançar com o botão do comando para programas do Cabo onde se pode encontrar todo o tipo de animações, de “Harry e o Balde de Dinossauros” até aos infantis delírios da Baby TV. Mal sonharia o amável Granja, mais dado a produções checas mas também aberto a um ou outro Walt Disney, que uns anos depois surgiria um Disney Channel que não consta que passe algum cineasta de Leste especialista em filmes com duas latas de atum à conversa.

Quem viveu a infância nos anos 80 também foi marcado pela série “Verão Azul”, sobre um conjunto de amigos em férias no sul de Espanha. Cinco rapazes e duas raparigas. E dois adultos, um marinheiro na reforma (o nome Chanquete é repetido com frequente ternura por gente com 40 anos) e uma pintora. Todos envolvidos num universo aventureiro que não excluía a conversa sobre temas sérios e polémicos. Foram 19 os episódios da já canónica “Verão Azul”. Nada que se compare com essa fábrica de encher chouriços televisivos, por onde passaram dezenas e dezenas de candidatos a actores, que foi a série “Morangos com Açúcar”, da TVI, orgulhosa de ter apresentado mais de 2000 episódios e de se ter mantido no ar entre Agosto de 2003 e Setembro de 2012.

https://www.youtube.com/watch?v=GVTLcZ6nVHw

Já há um tempo considerável Herman deixou de ser o único a fazer rir. O humor abriu-se a múltiplos praticantes e possibilidades, estando até disseminado um pouco por todo o lado, criando aquele efeito de “engraçadismo” que irrita um Pacheco Pereira. O autor de “Humor de Perdição” deixou muitos descendentes, como os Gato Fedorento, uma mistura, com voz própria, entre o espírito dos Monty Python e o sentido de observação de um Miguel Esteves Cardoso. Surgiram linguagens distantes do nonsense como um humor negro influenciado por comediantes americanos, seguidos em vídeos de internet. Desde 18 de Novembro que a Fox tem um canal de comédia, alguma dela lusitana. Deixámos em definitivo de ser só o país do fado.

Hoje, nos canais, debate-se política com políticos, muito deles personagens secundárias dos partidos, e com observadores vindos em geral da imprensa. Criaram-se novos protagonistas da opinião e abriu-se espaço ao pluralismo. Os debates eleitorais, esses, têm regras – de tempo, por exemplo – cada vez mais apertadas, ditadas pela Comissão Nacional de Eleições, distanciando-os do ambiente distendido de confrontos de outros tempos, como o ocorrido a 6 de Novembro de 1975 entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, com a espantosa duração de três horas e meia.

Diga-se que o debate futebolístico caminha para uma óbvia insanidade. Os descendentes televisivos do "Domingo Desportivo" são muitas vezes querelas agressivas sobre todas as mais irrelevantes ocorrências dos jogos.

E os telejornais de hoje são muito diferentes daqueles que se faziam no final dos anos 70, nos 80 e mesmo nos 90? Tememos que sim. Para já, não se nomeava tanto os “mercados” e a forma como despertam todos os dias. Antes os pivôs não corriam tantos perigos. Ser pivô de telejornal passou a ser uma profissão de alto risco. Mais vale andar no arame entre dois prédios em Nova Iorque ou entrar num programa com o Pedro Guerra. Qualquer asneira tem vasta repercussão na internet. Qualquer errozinho de português origina infinitos insultos. É de lembrar que antigamente havia, entre os pivôs, quem fumasse na televisão (em princípio tabaco). Hoje as brigadas do televisivamente correcto não deixam passar uma. A sorte é que no dia a seguir há outro alvo a abater.

Diga-se que o debate futebolístico caminha para uma óbvia insanidade. Os descendentes televisivos do “Domingo Desportivo” são muitas vezes querelas agressivas sobre todas as mais irrelevantes ocorrências dos jogos. Mude-se por um momento o objecto da discussão – em vez dos jogos da semana os debatentes discutiriam temas como tiramisu e bolo de bolacha. “Eu gosto mais de tiramisu porque o tiramisu é um doce honesto, não se andou a fazer ao chef como o sonso do bolo de bolacha”. “Ah, eu sou mais pelo bolo de bolacha porque o tiramisu aproveita-se do seu nome engraçado para tirar proveito disso, deixando de estar em plano de igualdade com outros doces como a bavaroise de chocolate”. Um absurdo que pode tornar-se motivo de atracção turística. Estes portugueses são loucos?, dirá o visitante, no seu quarto de hotel, inspirado por um famoso gaulês.

Falta apenas a conversa cultural crítica. Entre 1972 e 1974, Manuel Poppe foi autor de um programa intitulado “O Livro à Procura do Leitor”. Alguns intelectuais portugueses, como Eduardo Prado Coelho, António Mega Ferreira e o já referido Fernando Assis Pacheco chegaram a tratar de livros na televisão de um modo subjectivo, pessoal. Hoje nada disso existe. Se na política e no desporto há discussão, na cultura existe apenas divulgação e cada vez mais escassa e neutra. A televisão francesa é um bom paradigma no sentido contrário, com as suas conversas, muitas vezes polémicas, a partir de objectos artísticos.

Para o final de emissão ficam mais perguntas do que sentenças. Seria possível um público tão viciado em trash TV ser convocado por um formato que se assemelhe com uma actualizada “A Visita da Cornélia”? Com tanta degradação televisiva, fruto de um combate sem sentido – que durou demasiados anos – entre o serviço público e os privados, é possíver ir aos poucos aumentando a qualidade, dando condições aos telespectadores para, eles próprios, perceberem que estar agarrado durante semanas a uma declaração de um dirigente desportivo é um disparate sem tamanho? Será que um actor como Mário Viegas teria hoje espaço televisivo em horário nobre, lendo clássicos da literatura portuguesa? Ninguém sabe. Por enquanto celebremos o Dia Mundial da Televisão. Como? Assistindo a 30 segundos de um programa de cada canal e tirando notas como um crítico de serviço. Ou então apagando o aparelho durante 24 horas como quem lhe dá o feriado que também merece.

Nuno Costa Santos é autor de programas televisivos como “Melancómico”, “Zapping” e “Serviço Público”. Entre outros livros, escreveu a biografia “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco”.

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