É um daqueles pormenores aparentemente irrelevantes, mas ao mesmo tempo tão espantosos que parece difícil acreditar. E surge logo ao início de “David Attenborough: Uma Vida no Nosso Planeta”, o novo filme de Attenborough para a Netflix que traça um retrato trágico da evolução do planeta nas últimas décadas. A dada altura, o naturalista britânico que apresentou o mundo vivo selvagem à generalidade dos humanos diz-nos o que já sabíamos, que teve uma “vida extraordinária”, mas dá-nos um nó no cérebro: só agora percebeu, diz ele, o “quão extraordinária” foi.
Soa quase inverosímil. Afinal, David Attenborough, a inesperada estrela pop dos cientistas e estudiosos da natureza e do mundo selvagem, o homem que “toda a gente adora” como escreveu recentemente a revista Time Out London, já viveu quase um século e passou décadas a saltitar de país em país, a explorar florestas, oceanos, savanas, tribos recônditas, espécies raras e quase extintas de animais. Como é que alguém que vive assim não está a par do quão extraordinária — única, diferente da de quase todos os mortais — foi a sua vida?
A perceção de que viveu uma vida absolutamente atípica, espantosa em todos os sentidos, não foi a única descoberta recente de David Attenborough. Também aquilo que viu, registou, gravou e traduziu por palavras através da televisão ganhou uma nova leitura. É ele que o diz, no filme que a Forbes diz ser “o documentário mais importante deste ano”. O entusiasmo era “uma ilusão”, porque “aquelas florestas, planícies e mares [que viu e gravou] já estavam a ficar vazios”, conta-nos David Attenborough, agora com 94 anos, ainda interessado no mundo, mais preocupado do que nunca com a forma como os humanos reclamaram para si um planeta que não podem habitar sozinhos.
[O trailer de “David Attenborough: Uma Vida no Nosso Planeta”:]
Em suma, o encanto foi substituído, em parte, pelo desencanto. Não é que a paixão de David Attenborough pela história natural, pela parte do planeta que vive paralela às sociedades e à evolução humana, tenha diminuído — parece exatamente a mesma quando comenta, no filme, as imagens antigas da sua “extraordinária vida”, que lhe permitiu perceber como poucos que o mundo não é nem deve estar centrado numa só espécie.
O problema é outro: usando terminologia temática, é como se David Attenborough continuasse embasbacado e apaixonado pelas árvores mas, quando olha para a floresta, só conseguisse sofrer com as últimas décadas.
Dizer que David Attenborough está preocupado com o destino do planeta talvez seja, na verdade, um eufemismo imperdoável, que não trata com o grau devido o tom do que nos diz em “David Attenborough: Uma Vida no Nosso Planeta”.
O britânico tem uma certeza, que é aliás partilhada por muitos outros cientistas: se os homens continuarem a combater a natureza, a destruir o mundo selvagem e o mundo natural para se apropriarem cada vez mais da Terra, o efeito ricochete não é só inevitável como apocalíptico. O mundo selvagem e o mundo natural hão-de encontrar formas de sobreviver sem os humanos, os humanos é que não serão capazes de sobreviver sem o mundo natural, a biodiversidade e a proteção da natureza. Ou seja: a não ser que as coisas mudem radicalmente, estamos condenados.
O tom do documentário é grave o suficiente para que a versão britânica da revista norte-americana Wired escreva que o filme, disponibilizado na Netflix, é “um obituário para a Terra”. Mas talvez não o seja exatamente. David Attenborough está alarmado, consciente de que se nada de muito significativo mudar, as consequências serão trágicas (para o planeta, sim, mas também para os humanos que o habitam) — mas não está resignado.
A crença de que ainda é possível reverter o caminho humano rumo ao abismo (da sua espécie e da Terra) é o que alimenta o novo documentário. A gravidade do problema não se presta a ligeirezas, mas ainda é possível evitar uma catástrofe com consequências previsíveis (já lá vamos a quais são).
Foi o combate que ainda quer travar, que acha decisivo travar, que levou David Attenborough a aderir à rede social Instagram com mais de 90 anos. Fê-lo no mesmo dia em que ofereceu ao pequeno Príncipe George, de apenas 7 anos, uma prenda inusitada mas preciosa: um fóssil de um dente de um tubarão gigante, que descobriu em Malta mais de 50 anos antes.
Batendo o recorde de tempo mais curto para angariar um milhão de seguidores no Instagram, o que atesta bem uma popularidade quase imbatível, David Attenborough explicou em entrevista à BBC que o que fez entrar naquela rede social foi o mesmo que o fez decidir fazer este novo filme (e ainda um livro com o mesmo título): “Bom, sou tão velho… e é demasiado difícil ensinar um burro velho a aprender línguas [na versão original: it’s too difficult to teach old dog new tricks]. Não sou um grande utilizador de redes sociais e nunca tinha usado o Instagram antes, mas a mensagem que me preocupa é tão importante que utilizaria qualquer meio disponível para a difundir”.
A mensagem é corroborada no documentário: “Oxalá não estivesse envolvida nesta luta, oxalá não fosse necessário estar envolvido. Mas iria sentirem muito culpado se visse quais eram os problemas e decidisse ignorá-los”, ouve-se-lhe a dada altura. “Enfrentamos nada menos do que o colapso do mundo vivo, o mesmo que deu origem à nossa civilização, o mesmo de que dependemos para cada elemento da vida que levamos”, problematiza mais tarde. Como quem nos pergunta: já tenho a vossa atenção?
[Novo filme de David Attenborough estreia com pontuação de 9.2 no IMDB:]
Um testemunho que é também “uma visão para o futuro”
O filme começa com David Attenborough em Chernobyl, que foi “o lar de quase 50 mil pessoas” mas em 1986 “tornou-se inabitável”, depois das explosões em duas centrais nucleares. Aquela, começa Attenborough por dizer, foi uma “catástrofe ambiental”, resultante de “mau planeamento e erros humanos”.
É uma tragédia usada como metáfora, para nos explicar que o planeta encaminha-se para uma tragédia ainda maior. Isto porque Chernobyl, diz David Attenborough, “foi um evento único”, episódico. “A verdadeira tragédia do nosso tempo continua a desenrolar-se por todo o planeta, quase impercetível de dia para dia”.
O argumento principal do documentário é este: o modo de vida humano “está a enviar a biodiversidade para um declínio”, o mundo natural “está a desaparecer” e também essa catástrofe já em desenvolvimento decorre “de mau planeamento e erro humano”. No futuro, “aquilo que vemos aqui” — em Chernobyl — será transposto para uma parte do planeta: a Terra encaminha-se para ter cada vez mais porções de territórios “onde não podemos viver”.
Há um dado curioso no filme e no modo como David Attenborough se refere a ele. O britânico, que estudou geologia e zoologia e que se formou em Ciências Naturais em Cambridge antes de ser uma celebridade televisiva, diz que “Uma Vida no Nosso Planeta” é o seu “depoimento de testemunha”, na versão original “witness statement”. Como a estação norte-americana CBS lhe recordava aquando de uma entrevista recente, a expressão é usada quando é cometido um crime. Não é inocente: “Bom, foi efetivamente cometido um crime. E acontece que estou numa idade que me permitiu ver o começo disso”.
Embora o documentário tenha uma vertente de testemunho, apontando na sua maioria os episódios e as tendências evolutivas da vida humana que levaram o planeta a chegar ao estado a que chegou também a partir do que Attenborough viu e explorou, “Uma Vida no Nosso Planeta” — que no próprio título parece referir-se a uma certa era, “uma vida”, possivelmente circunscrita no tempo —, também é uma “visão para o futuro”, explica David Attenborough logo no arranque. Se a empreitada propunha-se a contar a história “de como transformámos isto no nosso maior erro”, também se propunha a indicar os caminhos para o solucionar. Daí que descrever isto como um obituário da Terra, como sugere a revista Wired, possa ser precipitado. O fim ainda não chegou, embora vá chegar se nada for feito: “Ainda podemos corrigir o nosso maior erro, se agirmos agora”, ouvimos no documentário.
Ao longo de quase uma hora e meia, Attenborough recupera imagens de arquivo de uma vida dedicada à descoberta e revelação da natureza e do mundo selvagem — e vai narrando o que viu e observou, com a sua voz omnipresente e também com a sua figura atual a surgir várias vezes, habitualmente de camisa e de frente para as câmaras — mas vai também dando dados sobre as alterações que ocorreram no planeta nas últimas décadas.
Os números atestam o crescente domínio do homem sobre a Terra. Mais do que isso: ilustram a forma como os humanos se apoderaram de boa parte do globo, pondo em risco a biodiversidade e o mundo natural (das espécies animais às florestas e aos oceanos), sem os quais será impossível viver.
Os dados escolhidos para ilustrar “o crime” são sobretudo três: o número de humanos que habitam a Terra, que aumentou espantosamente ao longo das últimas décadas pela natalidade mas sobretudo pelo aumento da esperança média de vida; a quantidade de carbono na atmosfera, que chegou a níveis trágicos, não apenas preocupantes; e aquilo a que Attenborough chama a “natureza selvagem restante”, que não é alvo de intervenção humana. Em 1954, a “natureza selvagem restante” representava 64% do planeta, num equilíbrio harmonioso (afinal é impossível viver sem o que é garantido aos humanos pelas florestas ou pelos oceanos). Em 2020, o cálculo é de que a natureza selvagem represente 35% do planeta, menos 29% do que há menos de um século.
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A tese de que a biodiversidade é indissociável da sobrevivência humana não é uma opinião, é um fato. Ao The Guardian, o professor David Macdonald, da Universidade de Oxford, dizia-o da forma mais clara possível recentemente: “Sem biodiversidade, não há futuro para a humanidade”. O jornal dava exemplos tão simples quanto “sem plantas, não há oxigénio” e “sem abelhas para polinizar, não haveriam frutas ou nozes”.
Como lembra Attenborough no documentário, “a cada cem milhão de anos”, mais coisa menos coisa, “acontece algo catastrófico” no planeta: uma extinção em massa, que se verifica quando “desaparecem imensas espécies que, de súbito, são substituídas por poucas”. Na última grande extinção em massa, a quinta — e que pôs fim à era dos dinossauros — 75% das espécies foram extintas. É motivo mais do que suficiente para recear uma “sexta extinção em massa”, que Attenborough e alguns cientistas consideram já estar em curso.
A “ilusão” a que Attenborough se refere quando revê a forma como registou e gravou o mundo natural ao longo das décadas era generalizada: depois da Segunda Guerra Mundial (que ele, ao contrário da maioria dos humanos vivos, ainda viveu), a discussão sobre as consequências do desenvolvimento humano era inexistente. Em contraponto, o entusiasmo era grande. “Parecia inconcebível que nós, uma única espécie, poderíamos ter o poder de ameaçar a própria existência da natureza selvagem”, diz agora o britânico.
O que parecia impossível confirmou-se e hoje “tornou-se óbvio”, diz David Attenborough, que em tempos chegou a ser considerado inapto para produções televisivas por deter dentes demasiado grandes. Num dos momentos chave do documentário, o britânico recorda a série “Vida na Terra”, que o fez “viajar pelo mundo na segunda metade dos anos 70” e que o popularizou como figura televisiva. “Filmámos 650 espécies [em 39 países] e percorremos 2,4 milhões de quilómetros”, lembrou, mas já na altura “era percetível que alguns animais estavam mais difíceis de encontrar” e já então “o processo de extinção que tinha visto em miúdo, nas rochas, estava a acontecer à minha volta”, em alguns casos com animais como os famosos gorilas da montanha, que Attenborough viria a gravar e com quem acabaria por “confraternizar”, num dos seus momentos mais populares na televisão:
O problema é nomeado de forma muita clara: os humanos, diz-nos Attenborough com a experiência acumulada de ter visto mais mundo que quase todos (todos?) os outros mortais, passaram décadas a “consumir a Terra até a esgotarmos” e o desaparecimento de “habitats inteiros” foi a consequência.
Um dos exemplos trágicos dados é o da floresta húmida do Bornéu, que David Attenborough visitou e filmou nos anos 50. As florestas húmidas, como nos é explicado, são um “habitat especialmente precioso” porque “mais de metade das espécies da Terra vivem aqui” e todos têm “um papel crucial” no ecossistema. O que aconteceu nas décadas seguintes? “Até ao final do século, a floresta húmida do Bornéu foi reduzida para metade”.
Outro dado chocante é a extinção de mamíferos: hoje, os humanos são já dois terços dos mamíferos do planeta e mais, só 4% dos mamíferos não são nem humanos nem animais criados pelos humanos para se alimentarem. Em suma, substituiu-se uma natureza selvagem por uma natureza domesticada — e as consequências são devastadoras. “Este é agora o nosso planeta, gerido pela humanidade para a humanidade”, nota ainda, dizendo que “as populações do mundo selvagem” são hoje menos de metade do que eram quando começou a filmar.
Se David Attenborough é regularmente recordado, em entrevistas, de que se mostrou cético de que o modo de vida humano era decisivo para o aquecimento global até tarde (deixou de ter dúvidas por volta de 2005), no documentário enfrenta o problema de frente: diz que o aquecimento do planeta foi “uma característica comum a todas as cinco extinções em massa” do passado e que a temperatura global só se manteve estável até aos anos 1990 porque “o oceano absorvia muito excesso de calor”, dissimulando e mascarando o impacto humano.
De repente tudo mudou — e com a sobre-exploração humanos dos oceanos, a gravidade do problema tornou-se gradualmente mais catastrófica. “O oceano há muito que se tornou incapaz de absorver o excesso de calor causado pelas nossas atividades”, alerta-nos Attenborough. “A temperatura média global é hoje mais um grau do que quando nasci”, o que é “um ritmo” de mudança “que excede qualquer outro registado nos últimos 10 mil anos”.
O que fazer para que a Terra não fique parcialmente inabitável? David dá a receita
Não há porém momentos em “David Attenborough: Uma Vida no Nosso Planeta” tão preocupantes quanto as previsões feitas para o futuro. Eis o que é expectável para a década de 2030 a 2040, se nada for feito: Ártico sem gelo no verão, ciclo global da água alterado pelo ataque à floresta húmida amazónica, aquecimento global cada vez mais acelerado. De 2040 a 2050, “os solos congelados derretem, libertando metano” — o que terá consequências ambientais incalculáveis, “acelerando o ritmo das alterações climáticas de forma drástica”.
De 2050 a 2060, “os recifes de coral por todo o mundo morrem” e as “populações de peixe entram em declínio”. E três décadas depois, de 2080 a 2090, chega-se a um ponto em que “a produção global de alimentos entra em crise à medida que os solos se gastam por uso excessivo”, em que “os insetos polarizadores desaparecem” (vão-se as frutas e as nozes) e em que a temperatura “é cada vez mais imprevisível”, quebrando de vez um ciclo de estações que foi decisivo para a estabilidade do planeta.
Se nada de essencial mudar, daqui por 90 a 100 anos, na década de 2100 a 2110, “o nosso planeta fica quatro graus Celsius mais quente”, “grandes extensões da Terra tornam-se inabitáveis” e “milhões de pessoas ficam sem casa”. Como ser otimista perante isto?
A pergunta de um milhão de dólares é: como é que tudo isto se evita? Como isto não é ainda um obituário da Terra, ainda há soluções à vista. Attenborough diz-nos que a resolução “esteve sempre diante dos nossos olhos: temos de recuperar a biodiversidade, é a única saída desta crise que criámos”.
É preciso “renaturalizar o mundo”, nota Attenborough, se possível “reduzindo o impacto” disso nas condições de vida das pessoas. Trunfos para o fazer: aposta nas energias renováveis — só a luz do sol, garante-nos Attenborough, dá “quase 20 vezes a energia de que precisamos” —, acabar com os combustíveis fósseis e garantir que temos um “oceano saudável” e “diversificado” porque “quanto mais diversificado for, melhor faz o seu trabalho”. Sem um oceano saudável, aliás, “não podemos viver” — precisamos dele “até como fonte de alimento”, porque “quanto mais sadio for o habitat marinho, mais peixes haverá e mais haverá para comer”, lembra-nos o britânico.
Outra alteração inevitável ao modo de vida humano: a alteração da dieta. David Attenborogh não é inteiramente vegetariano, mas é o primeiro a dizer que é preciso “uma dieta baseada largamente em plantas”, porque “o planeta não consegue sustentar milhares de milhões de grandes comedores de carne” e porque uma dieta menos carnívora faria com que precisássemos “apenas de metade da terra que usamos neste momento” para cultivar e criar gado. Mas também é preciso garantir mais espaço para o desenvolvimento do mundo selvagem, produzindo comida por exemplo “em muito menos terra” do que atualmente, aproveitando por exemplo “novos espaços, indoors, no interior das cidades”. E assegurar que as florestas se mantêm habitats grandes e sadios, porque são “a melhor tecnologia que a natureza tem para bloquear o carbono [absorvendo-o] e são centros de biodiversidade”.
Eis uma súmula possível da tese de Attenborough, apresentada no documentário: “Uma espécie só pode prosperar se as outras à sua volta prosperarem. Se cuidarmos da natureza, a natureza cuidará de nós. Está na hora de.a nossa espécie deixar simplesmente de crescer, de estabelecermos uma vida no nosso planeta em equilíbrio com a natureza”. Ou por outras palavras: em todas as atividades, é preciso que o modo de vida volte a ser sustentável. Afinal “a vida no nosso planeta” não acabou — mas para a sobrevivência humana, diz-nos Attenborough, é preciso que passe a ser outra.
Os dados recentes produzidos e calculados por cientistas ajudam a sustentar a tese, mesmo que não sejam nomeados no novo filme para a Netflix. Como escrevia recentemente a BBC (e há um ano a agência Reuters), em 2019 um grupo intergovernamental internacional que agrupa 130 países, o IPBES, revelou um estudo conduzido pelo investigador Robert Watson que calculava que um milhão de espécies de animais, insetos e plantas estão em risco de extinção na próxima década. Também há consenso científico sobre os níveis de dióxido de carbono estarem a níveis nunca vistos na atmosfera.