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“Isto não é viver”. Sob cerco e bombardeamentos constantes, os relatos dos palestinianos que estão a ficar sem recursos

O norte não é seguro. O sul também não. A vida continua sob a ameaça de ataque em Gaza, onde se escreve o nome na pele para ajudar com a identificação em caso de morte num bombardeamento.

“É um massacre”. “Estamos a colocar crianças em sacos”. Os relatos somam-se depois de um novo bombardeamento israelita no campo de refugiados de Jabalia, o maior campo da Faixa de Gaza, ter deixado um rasto de destruição no que já era descrito como uma “cidade fantasma”, passadas três semanas do início da guerra entre Israel e Hamas.

Mohammad Ibrahim, como muitos outros residentes, estava simplesmente na fila para comprar pão quando tudo começou. “Sete a oito mísseis caíram e deixaram enormes buracos no chão, com pessoas mortas por todo o lado. Parecia o fim do mundo”, descreveu à CNN sobre o ataque em que, segundo o governo administrado pelo Hamas, morreram na quarta-feira 195 pessoas e em que Israel diz ter “eliminado” dezenas de membros e mais um comandante do grupo. Esta manhã, repetiu-se o mesmo cenário pelo terceiro dia consecutivo, com relatos no terreno de várias dezenas de mortes.

Os bombardeamentos têm sido constantes na estreita e densamente povoada faixa de território em que Israel implementou um “cerco total”. As atualizações do número de vítimas são diárias: 9.061 mortos, incluindo 3.760 crianças e 2.326 mulheres, e mais de 32 mil feridos, segundo o último balanço divulgado pelo Hamas. Famílias inteiras, muitas vezes com dezenas de membros abrigados sob o mesmo teto, têm sido mortas nos ataques aéreos e, com o sempre presente receio de se tornarem os próximos, alguns pais começaram a escrever o nome dos filhos nas suas pernas e braços, para ajudar com a identificação caso sejam mortos num bombardeamento.

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Anadolu Agency via Getty Images

Há quem, seguindo o aviso das autoridades israelitas, se tenha deslocado para o sul de Gaza, refugiando-se em casas de familiares e amigos, junto a hospitais (onde creem estar mais seguros) ou em escolas geridas pela Organização das Nações Unidas — que estima que o conflito já provocou 1.4 milhões de deslocados internos. Outros preferem ficar no norte de Gaza, com o sentimento de que nenhum lugar é seguro e que é preferível morrer na própria casa.

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Quer a norte, quer a sul, sobrevive-se com o pouco que ainda resta, num território em que cerca de 70% da população já recorria a apoio internacional antes desta guerra. Móveis e restos de madeira são usados como combustível para cozinhar, coze-se pão com a pouca farinha disponível ou arrisca-se a exposição durante vários horas em longas filas para o comprar e a outros bens essenciais. Sem eletricidade e internet, os telemóveis servem de pouco e, para aqueles que os têm, os rádios são muitas vezes a principal fonte de informação.

A vida sob cerco em Gaza, onde a ordem civil está a começar a “quebrar”

Apesar dos bombardeamentos sem tréguas, e da devastação que vão deixando a descoberto, as ruas de Gaza não ficam desertas. Três semanas depois de Israel ter anunciado o corte de eletricidade à Faixa de Gaza e um bloqueio à entrada de alimentos e combustível, como parte de um “cerco total” ao território, os moradores continuam a sair: vão em busca de bens essenciais, esperando em longas filas de padarias e mercados, racionando e procurando água limpa para consumo.

Em casas e abrigos que excedem em muito a sua capacidade, juntando nas mesmas divisões muitos rostos que dias antes nunca se tinham cruzado, há falta de tudo. “Eu vou todos os dias ao mercado para ver o que está disponível e se consigo encontrar algo para cozinhar para a minha família. Não podemos guardar nada em casa porque não há eletricidade para o frigorífico. Por isso, tenho de vir aqui diariamente”, explicou ao The Guardian uma residente de Nuseirat, região onde se fixaram muitos deslocados da cidade de Gaza. Aí e noutros locais espera-se quatro, cinco ou mais horas.

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Em Gaza, os palestinianos chegaram a aguardar durante cinco horas para conseguir comprar pão

Anadolu via Getty Images

O gás para cozinhar é pouco ou nenhum, obrigando muitos a prepararem as refeições em fogueiras improvisadas. “Tenho um jardim em frente à casa. É lá que cozinhamos pão em fogueiras, quase todos os dias. Trocamos as baterias numa casa lá perto, que tem um painel solar que permite ter luz e carregar os telemóveis”, disse um outro, reconhecendo que, ao abrigar-se com vários parentes fugidos de cidades de Gaza, se torna “difícil alimentar tantas bocas”. O desesperou já levou centenas de palestinianos a invadir armazéns da ONU, no que o organismo descreveu como um “sinal preocupante de que a ordem civil está a começar a quebrar”.

Antes da guerra, os alimentos entravam em Gaza através do setor privado e organizações humanitárias, nomeadamente a UNRWA. Segundo dados da ONU, mais de 70% da população de Gaza recebia, antes de 7 de outubro, alguma forma de assistência internacional. Com o bloqueio imposto por Israel, são poucas as entregas ao território. Até agora, apenas 171 camiões de assistência humanitária foram autorizadas a entrar em Gaza, valor descrito como “insuficiente”. “Os alimentos no mercado estão a acabar e a ajuda humanitária que chega à Faixa de Gaza em camiões vindos do Egipto é insuficiente”, sublinhou recentemente o diretor da UNRWA.

Com as condições a deteriorarem-se a cada dia, os habitantes de Gaza estão a recorrer a alimentos e fontes de água impróprias para consumo, o que aumenta o risco de doenças. Sem outra opção, são muitos os que arriscam, como disse à Reuters Rafif Abu Ziyada, uma criança de nove anos. “Estamos a ficar doentes”, afirmou, descrevendo como tem vindo a beber água suja, ignorando as dores de estômago e de cabeça que se seguem.

Mesmo antes do início da guerra, a ajuda humanitária que chegava a Gaza era limitada. Até 7 de outubro, cerca de 550 camiões carregados com bens essenciais, para uso comercial e para distribuição das organizações humanitárias, entravam diariamente na Faixa de Gaza. Grande parte pelas duas passagens controladas pelo lado israelita e, em menor quantidade, pelo lado egípcio. A maior parte transportava algo que há três semanas permanece interdito: combustível, essencial para o funcionamento de hospitais e para operar equipamento nas operações de resgate, bem como para a distribuição de água e alimentos.

"Um cessar-fogo humanitário imediato tornou-se uma questão de vida ou morte para milhões."
Philippe Lazzarini, líder da agência da ONU para os refugiados palestinianos (UNRWA)

Tudo indica que o Hamas continua a ter armazenadas grandes quantidades de alimentos, medicação e combustível dentro dos seus túneis subterrâneos. Foi isso que confirmaram ao New York Times vários responsáveis de países ocidentais e árabes — com um responsável libanês a estimar que o grupo tem, graças a isso, capacidade para resistir três a quatro meses sem ser reabastecido.

Mas a população civil continua sem ter qualquer acesso a este material, como já acontecia antes do início da ofensiva israelita. Isto apesar da quantidade substancial do combustível que entrava em Gaza já ser não suficiente para garantir o funcionamento da central de energia da região, razão pela qual parte da energia era comprada a Israel pela Autoridade Palestiniana, chegando através de dez linhas de energia diretas. No seu conjunto, esse valor não era suficiente para abastecer toda a faixa de território, estimando-se que só abastecia metade da procura real da população, segundo Miriam Marmur, advogada da organização não governamental israelita Gisha.

Em declarações ao Haaretz, a advogada explicou por estes dias que mesmo antes da guerra os residentes só recebiam eletricidade em ciclos de oito horas, enquanto infraestruturas que não podiam funcionar com cortes prolongados, como hospitais, colmatavam as dificuldade adquirindo combustível e através de geradores, que mantinham a trabalhar quando a eletricidade não estava disponível.

Esta quinta-feira trouxe um raio de esperança sobre o levantamento da atual proibição de entrada de combustível, com o chefe de gabinete das Forças Armadas israelitas, Hertzl Halevi, a admitir que Israel poderá transportar algum para a Faixa de Gaza, de forma supervisionada, assim que as reservas dos hospitais acabarem — embora nos últimos dias fontes de vários dos 35 hospitais instalados naquele território tenham garantido estar no limite das suas capacidades, ou mesmo já sem combustível. A informação não tardou, no entanto, a ser negada pelo gabinete do primeiro-ministro israelita, que garantiu que essa medida não foi aprovada.

Para as organizações internacionais, um cessar-fogo humanitário imediato tornou-se uma “questão de vida ou morte para milhões”, nas palavras de Philippe Lazzarini, da UNRWA. A Casa Branca garantiu no mesmo dia estar a explorar a ideia de “pausas humanitárias” no conflito Israel-Hamas, para ajudar os civis em Gaza. Um pausa temporária não impedirá Israel de se defender, sublinhou o porta-voz da segurança nacional, John Kirby, garantindo que estão a trabalhar com os responsáveis israelitas para tentar minimizar o risco de mortes de civis.

Israel, porém, não parece ter intenções de desacelerar ou moderar as suas operações. O primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, anunciou que as tropas passaram aos arredores da cidade de Gaza. “Estamos no auge da batalha. Temos tido sucessos impressionantes e passámos os arredores da cidade de Gaza. Estamos a avançar”, vincou.

No norte ou no sul de Gaza, “não há lugares seguros” — nem os hospitais, onde se operam pessoas sem anestesia

Foram muitos os que deram ouvidos ao aviso das autoridades israelitas — e que chegou a ser impresso em panfletos lançados a partir de aviões — de que estariam em “grande perigo” se decidissem permanecer no norte da Faixa de Gaza. Com a ameaça de uma invasão iminente, e que já viu trazer esta semana tanques israelitas até aos arredores da cidade de Gaza, famílias inteiras deixaram tudo para trás e partiram em carros ou carrinhas — com o pouco combustível ainda disponível — ou partiram a pé.

“Eu tenho um Kia Sorento. Estamos agora em Khan Younis e vivemos perto de uma escola da UNRWA [Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente]”, revelou ao The Guardian Amr, um residente da cidade de Gaza que há duas semanas fugiu com a mulher e os dois filhos para o sul. “Não conseguimos dormir na escola, por isso usamos o carro. Às vezes conduzo à procura de um lugar que tenha casas de banho ou então vamos a casas de amigos ou familiares para tomarmos banho a cada poucos dias. Isto não é viver“, sublinhou em declarações ao mesmo jornal.

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Os palestinianos buscam abrigo em casas de familiares e amigos. Cerca de 150 escolas da ONU são agora refúgio para 671.000 pessoas

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A família aguarda, à semelhança de muitas, a abertura da passagem de Rafah — o único acesso a Gaza não controlado por Israel — para poder atravessar para território egípcio. Expectante, Amr deslocou-se repetidamente até à cidade, onde as longas filas de pessoas desesperadas por partir e o aglomerado de camiões de ajuda humanitária à espera de autorização para entrar se tornaram numa imagem habitual. Em todas as tentativas, viu barrada a sua passagem.

Só a meio desta semana começaram a ser permitidas, pela primeira vez desde o ataque lançado pelo Hamas a Israel a 7 de outubro, saídas da Faixa de Gaza e a um grupo restrito: feridos com gravidade e cidadãos estrangeiros. Durante esta quinta-feira, atravessaram a passagem de Rafah 100 cidadãos estrangeiros e as autoridades egípcias esperam que seja possível até ao final de quinta que o número chegue perto dos 400 — a que se deverão somar 60 civis palestinianos gravemente feridos.

"Não conseguimos dormir na escola, por isso usamos o carro. Às vezes conduzo à procura de um lugar que tenha casas de banho ou então vamos a casas de amigos ou familiares para tomarmos banho a cada poucos dias. Isto não é viver.“
Residente da cidade de Gaza que fugiu com a família para as regiões a sul

Mas mesmo a cidade de Rafah, e outras no sul de Gaza para onde os palestinianos se deslocaram devido aos avisos de Israel, não escapam aos repetidos bombardeamentos. A justificação das Forças de Defesa israelitas, pela voz do porta-voz Daniel Hagari, é que, apesar do principal centro de poder do Hamas estar concentrado na cidade de Gaza, o grupo terrorista está entrincheirado entre a população por todo o território. Por isso, os outros locais onde os militantes do Hamas se concentram são “alvos legítimos”, ainda que civis palestinianos vivam ao seu lado. A lógica de pensamento tem sido amplamente criticada por vários organismos, com o secretário-geral da ONU, António Guterres, a declarar que é “crucial” proteger a vida dos civis.

“Israel fez-nos crer que o sul era seguro e não é”, resumiu ao jornal El País um médico que fugiu para junto da passagem de Rafah, na esperança de conseguir passar a fronteira graças ao passaporte espanhol. A mesma certeza de que “não há lugares seguros” levou inúmeras famílias a permanecer no norte de Gaza, incluindo no campo de refugiados de Jabalia, alvo de repetidos ataques.

“Os bombardeamentos e a destruição afetaram todas as cidades e os bairros do norte ao sul de Gaza”, lamentou Rasheed al-Balbisi, residente do campo, numa declaração à à revista israelita +972 Magazine. O homem, de 67 anos, ainda chegou a alugar uma carrinha de transporte de gás para se deslocar para o sul de Gaza, mas preferiu regressar a Jabalia depois de alguns dias na casa de familiares, onde testemunhou os mesmos bombardeamentos sem tréguas e a falta de serviços básicos e de comunicações.

As suas declarações são eco da realidade para a qual várias organizações humanitárias têm vindo a alertar. “Dezenas de milhares de civis palestinianos no norte de Gaza não querem ou não podem fugir — incluindo os feridos, os doentes, trabalhadores humanitários, médicos, pessoas com deficiências, idosos, crianças e mulheres, algumas das quais numa fase avançada da gravidez. As instalações médicas avisaram que não é possível serem evacuadas”, denunciaram esta semana num comunicado conjunto organizações palestinianas como a Al Mezan e Al-Haq. “Os factos no terreno são irrefutáveis: nenhum lugar é seguro em Gaza”.

Nem mesmo os hospitais, junto do qual centenas de pessoas se têm refugiado na esperança de aí encontrar maior segurança, estão a escapar a ataques. Um bombardeamento ao hospital Al-Ahli, no qual Israel e Hamas trocam acusações — com vários governos ocidentais a apontar para um provável origem num rocket disparado a partir de Gaza —, terá provocado centenas de mortos, segundo o Ministério de Saúde palestiniano, controlado pelo grupo. Esta quinta-feira, a organização Crescente Vermelho denunciou um ataque a uma ambulância, que deixou feridos vários paramédicos que seguiam no seu interior.

Nos hospitais de Gaza há muito que se repetem os relatos sobre uma “situação-limite”. “São feitas operações e amputações no chão, sem anestesia”, denunciou recentemente o diretor-geral dos Médicos Sem Fronteiras em Portugal, em declarações à rádio Observador. “Estamos a falar de operações feitas no chão na sala de atendimento, onde não há praticamente qualquer tipo de anestésico” para cirurgias como “amputações, que causa uma enorme dor ao paciente, incluindo crianças”.

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