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ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR

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Ivo M. Ferreira: "A Guerra Colonial ainda é uma caixa muito bem fechada"

"Cartas da Guerra", realizado por Ivo M. Ferreira e baseado num livro de António Lobo Antunes, estreia-se esta quinta-feira. Falámos com o realizador.

“Cartas da Guerra” é baseado no livro D’este viver aqui neste papel descripto — Cartas da Guerra de António Lobo Antunes, organizado e compilado pelas filhas do escritor após a morte da mãe. O argumento foi adaptado pelo realizador e por Edgar Medina, numa história verídica que leva o público até à Guerra Colonial em Angola, mais propriamente, ao mundo do então alferes António Lobo Antunes.

O filme retrata a intimidade do médico destacado para o exército português, que utilizava a escrita de cartas à mulher, Maria José, como escape face à violência do conflito. Foi na guerra, com 28 anos, que se tornou um homem consciente para a política, o país e o amor. Em Angola, fez-se escritor e soldado. Em “Cartas da Guerra”, Miguel Nunes e Margarida Vila-Nova estão nos papéis principais.

[o trailer de “Cartas da Guerra”]

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A Margarida [atriz do elenco e mulher de Ivo] leu o livro “D’este viver aqui neste papel descripto” enquanto estava grávida. Daí, como surge a oportunidade de adaptar esta obra de António Lobo Antunes?
Bem, a oportunidade não surgiu, criou-se. Tinha há algum tempo o desejo de trabalhar sobre esta matéria da Guerra Colonial. Nunca tive nenhuma ideia de como pegar no assunto e foi através desse célebre episódio que se fez luz. Depois de ler e reler as “Cartas da Guerra”, o trabalho fílmico veio a seguir. Embora as pessoas achem que era um grande desafio, pegar nas cartas e retratá-las no filme, para mim serviu como uma espécie de entusiasmo acrescido — porque estava a trabalhar com um texto não dramatúrgico.

Como eram estas cartas?
A estrutura tinha uma componente geográfica, como se fosse uma viagem, desde o navio Vera Cruz até ao primeiro quartel. Funcionava como o prólogo de um livro. As cartas descreviam as pessoas e as paisagens de Angola e daí seguia-se para a parte mais politizada da Guerra, da ditadura e de Portugal. É aqui que António Lobo Antunes forma a sua identidade política como homem e escritor. Numa terceira parte, acaba por ser uma escrita mais isolada, que retratava a realidade dele e dos soldados que tratava. É a visão de um homem inteligente, que olha pelos seus camaradas. A preocupação deixava de ser o Estado português para passar a ser como é que eles iriam sobreviver. E se sobrevivessem, como é que iriam viver com as mazelas da Guerra. Embora as cartas fossem um material muito disperso, pareceram-me suficientemente organizadas para um argumento.

"Porque é que haveríamos de estar a ouvir palavrões, asneiras e disparates? Não me interessava lidar com discursos corriqueiros. O filme tem muito texto, porém não queria diálogos desnecessários."

Chegou a afirmar que ainda havia um certo pudor em filmar sobre a Guerra Colonial. Acredita que com o filme “Cartas da Guerra” desbravou caminho?
A verdade é que a Guerra Colonial ainda é uma caixa muito bem fechada. A História recente demonstra alguns avanços em relação ao assunto, mas passaram mais de 40 anos e a visão sob a Guerra não é falada. No entanto, já algumas coisas foram feitas sobre a Guerra Colonial. Não há neste filme a ideia de pioneirismo.

Mas qual a razão para esse pudor?
O 25 de Abril atirou para o canto o fascismo, e com ele, a Guerra Colonial. Entendo perfeitamente que não se queira falar sobre o processo de descolonização, nem da forma como foram tratados milhares de soldados portugueses. Não houve tempo para tomar conta deles. Quando se fala da experiência traumática da Guerra, estamos a falar de miúdos que foram afastados da família. Alguns vinham de aldeias e nunca tinham visto uma viatura. São empurrados para a Guerra. Os que sobreviveram voltaram e carregavam o peso de tudo o que viram e foram obrigados a fazer. Obviamente, que o que resta é o silêncio. Uma atitude que acaba por contaminar todos os que os rodeiam, nem eles falam, nem os outros querem falar. É um silêncio que se alimenta.

"Cartas da Guerra" é a terceira longa-metragem do realizador © André Marques/Observador

ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR

Teve reações ao tema do filme?
Sim, houve pessoas que me disseram “mas porque é que quer falar sobre isso? Nem nós, que lá estivemos, falamos”. Acho que chegou a altura de falar. Sinto até que algumas pessoas mudaram com o filme. Um camarada do António Lobo Antunes tem estado presente nas projeções de “Cartas da Guerra”. Porém, não tenho nenhuma presunção para afirmar que o filme é cinema didático. Apenas acredito que acabo por arranjar uma forma de se falar na Guerra Colonial.

O filme acaba por falar mais em mágoas de amor ou nas cicatrizes da guerra?
Julgo que ambos caminham juntos. A juntar ao drama dos soldados estarem perante uma guerra injusta para todas as partes — todos sabiam que era uma batalha perdida — interrompe-se também um grande amor. E depois existem todas as implicações disso: o facto de a Maria José [personagem de Margarida Vila-Nova] estar grávida, serem muito novos e cada um decidir seguir o seu caminho, o desejo de quererem estar um com o outro… Para mim, o mais grave é a indefinição de não saber se se estará vivo ou não, no dia a seguir. Já no regresso a Portugal, muitas mulheres viram-se casadas com um homem diferente e quiseram, ainda assim, voltar a amá-los.

"Um camarada do António Lobo Antunes tem estado presente nas projeções de "Cartas da Guerra". Porém, não tenho nenhuma presunção para afirmar que o filme é cinema didático. Apenas acredito que acabo por arranjar uma forma de se falar na Guerra Colonial."

O Ivo não tem uma ligação familiar a África, como acontece com muitos portugueses. Isso pode ter facilitado a forma como o filme foi feito, na procura de alguma imparcialidade?
Acho que a imparcialidade não existe. Todos somos influenciados pelo nosso passado e pelas experiências que tivemos. Havia uma ideia muito clara a passar no filme: todos foram vítimas da Guerra Colonial, tanto as tropas portuguesas como os angolanos. Na altura, a maioria dos países africanos iniciavam o seu processo de descolonização, mas havia a ideia estúpida da ditadura de que não o queriam fazer. Todos sabemos que as coisas foram mal feitas e que após vários anos com colónias, a solução não iria ser perfeita. Ainda assim, o maior crime foi a descolonização não ter sido feita no momento certo. A ditadura fez à sua forma e como bem entendeu.

Cartas da Guerra é também um olhar sob o passado de Portugal?
Tenho consciência de que o filme não é o retrato de todos os portugueses. Na ante-estreia, a escritora Dulce Maria Cardoso disse-me: “Gostei, mas esta história não é minha, porque eu estava do outro lado”.

A vida dos soldados portugueses em Angola é retratada em "Cartas da Guerra"

"Cartas da Guerra"

A narração das cartas de amor de António Lobo Antunes à esposa Maria José é mais utilizada do que o discurso entre as personagens. Porquê esta escolha?
Acho que é o retrato do silêncio e do interior das personagens. Porque é que haveríamos de estar a ouvir palavrões, asneiras e disparates? Não me interessava lidar com discursos corriqueiros. O filme tem muito texto, porém não queria diálogos desnecessários. O meu objetivo era trabalhar a essência de cada um deles, principalmente do protagonista. Como diria o próprio Lobo Antunes, “um silêncio ensurdecedor”.

O preto e branco foi uma escolha estética?
Não. Os filmes a preto e branco sempre tiveram muito sucesso, mas não foi isso que me guiou. Acho que acabámos por ligar muito a dogmas: não interessa se é a preto e branco, o que interessa é o “corpo” do filme. Esta escolha foi uma opção que tomei para, de certa forma, situar-me num tempo histórico.

5 fotos

Sabe se António Lobo Antunes já viu o filme ou que achou dele?
Ainda não se proporcionou uma oportunidade para António Lobo Antunes ver “Cartas da Guerra”. Estou extremamente agradecido à Maria José e à Joana Lobo Antunes [filhas do escritor] por me terem deixado utilizar estas cartas para o filme. É um material de grande intimidade, e embora estejam publicadas, é um assunto delicado. Tem de haver uma grande elegância para retratar a vida de outras pessoas.

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O filme é baseado no livro “D’este viver aqui neste papel descripto – Cartas da Guerra” (Dom Quixote)

Foi por isso que decidiu filmar na casa de infância de António Lobo Antunes?
Muito sinceramente, essa foi uma ideia das filhas do escritor. O sítio não era o mais indicado para gravar, mas houve qualquer coisa que me atraiu. Talvez fosse a carga emocional. Por outro lado, rodar em Angola na província de Kuando Kubango foi uma opção prioritária. Não queria que as paisagens fossem recriadas.

Espera que algumas pessoas se revejam no Cartas da Guerra?
Não tenho expectativa. Mas de uma coisa tenho a certeza, o argumento é familiar a muitos portugueses. Os pais de uma amiga minha disseram-me depois de ver o filme: “Isto foi exatamente o que nos aconteceu, é a nossa história”.

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