Discurso de Jerónimo de Sousa

Intervenção inicial no XXI Congresso do PCP

Um Congresso que é a prova de responsabilidade de um partido que não vira as costas aos problemas, nem se esconde, quando os trabalhadores enfrentam dificuldades.

Não deixa de ser revelador do estado de espírito dos comunistas. No arranque da sua primeira intervenção, Jerónimo de Sousa concentrou largos minutos na defesa da realização do XXI Congresso do PCP em plena segunda vaga da pandemia, apesar das críticas dirigidas por vários setores e partidos políticos. O líder comunista chegou a recordar a história de resistência do partido à “violência fascista” para justificar a realização deste congresso.

O imperialismo norte-americano, com os seus aliados – em especial da NATO e da União Europeia –, incrementa uma multifacetada e perigosa escalada de confrontação, ingerência e agressão que constitui uma séria ameaça aos povos e à paz (…) Uma escalada que, dirigida contra todos aqueles que afirmem a sua soberania e o direito ao desenvolvimento, aponta como alvos estratégicos a Rússia e, particularmente, a China, face ao desenvolvimento e papel deste país no plano internacional. (…) Lutas que, mesmo travando-se num contexto desfavorável ao nível mundial, conseguem importantes sucessos e vitórias, como na Síria ou na Venezuela, ou ainda na Bolívia e no Chile.

O PCP não deixa dúvidas sobre a sua política de alianças internacionais e sobre o seu papel na geopolítica mundial. Jerónimo de Sousa responsabiliza os Estados Unidos (“uma realidade que não é colocada em causa com a eleição de Joe Biden como Presidente, disse”), a NATO e a União Europeia pela alegada campanha de ataque contra a Rússia de Putin e a China de Xi Jinping, e pela opressão dos povos da Síria, Venezuela, Bolívia e Chile. De fora, curiosamente, ficaram países como Cuba e Coreia do Norte, outrora países que os comunistas portugueses assinalavam como modelos.

A política de direita de décadas de governos do PS, PSD e CDS e a integração de Portugal na CEE e na União Europeia confirmaram-se ao longo das últimas décadas como elementos centrais e complementares entre si do processo contra-revolucionário. (…) A evolução da União Europeia e as manipulações em torno de sucessivas reinvenções e maquilhagens desta estrutura, confirmam que a sua matriz política e ideológica não permite espaço a “refundações” e muito menos a “democratizações”. As soluções que dêem respostas aos problemas de Portugal e de outros países, só serão possíveis rompendo com os constrangimentos da União Europeia, no quadro da afirmação da soberania nacional.

Ao longo da sua intervenção de mais de uma hora, Jerónimo de Sousa defendeu em diversos momentos a saída de Portugal da União Europeia e do Euro. Não que seja uma reivindicação nova, mas antes a prova de que os comunistas, apesar de terem sido aliados do Governo de António Costa, não mudaram um centímetro em relação ao ponto de que partiram.

O crescimento económico verificado entre 2016 e 2019 não alterou de forma significativa uma situação que há muito se apresentava desastrosa.

Neste momento do discurso, já Jerónimo de Sousa apontava todas as erradas “opções políticas dos dois governos minoritários do PS”: o “insuficiente ritmo de crescimento económico”, o “défice produtivo”, a “elevada dívida externa”, a má gestão do sistema bancário, a falta de investimento nos transportes, a política para a TAP, a não reversão da privatização dos CTT, a submissão do PS aos “interesses do grande capital” em matéria laboral, os “profundos desequilíbrios territoriais”, o “depauperamento de recursos humanos” na Administração Pública, a renovação das Parcerias Público-Privadas (PPP) na Saúde, que não fazem mais do que aprofundar o “caminho da privatização”, a “desresponsabilização do Estado” na Educação, a falta de resposta na Segurança Social, nos lares e na Habitação, a falta de “melhorias substanciais” na Justiça, Administração Interna e Defesa Nacional.

Os quatro anos – 2015 a 2019 – que corresponderam à “nova fase da vida política nacional”, não foi um tempo percorrido em vão. Nesse período fizeram-se ruir dogmas e confirmaram-se teses e razões reiteradamente sublinhadas pelo PCP. (…) Mas que mostrou também, como o PCP sempre salientara, que, sem prejuízo da importância da resposta a problemas mais urgentes, as soluções e a política de que o País precisa para assegurar um desenvolvimento soberano, não encontram saída no espartilho das opções de classe do PS e do seu governo.

O discurso já levava 40 minutos e Jerónimo de Sousa ainda não tinha feito um único esboço de defesa de António Costa ou da ‘geringonça’. Chegaria finalmente uma referência ao período 2015 – 2019 como um “tempo que não foi percorrido em vão”. Esta passagem reflete, em parte, a convicção que existe na liderança do PCP: por um lado, os comunistas entendem que a solução encontrada em 2o15 ficou muito aquém do que seria expectável e desejável para o país; ainda assim, as conquistas alcançadas “na defesa dos trabalhadores e do povo” devem-se ao PCP — e foram, alcançadas apesar do PS. Jerónimo de Sousa explicou com uma frase clara porque é que, apesar de todos os problemas, o PCP mantém este caminho: é preciso “não desperdiçar nenhuma oportunidade”.

Foi pela mão do PS que se mantiveram opções essenciais da legislação laboral; não recuperação pelo Estado de sectores estratégicos, que têm estado presentes em décadas de política de direita. Em várias matérias o PS não só recusou propostas que em áreas diversas davam resposta a problemas importantes, como procurou, na base de incumprimentos, cativações e cortes fazer prevalecer critérios orçamentais determinados pela sua submissão às imposições da União Europeia.

Mais uma vez, o PS e António Costa surgem como os grandes responsáveis pelas insuficiências e “contradições” no percurso seguido até aqui.

A valorização do que se alcançou é de particular importância. Contribuiu, pese as tentativas de apropriação pelo Governo, de medidas positivas que não eram suas.

Ainda que nunca o assuma publicamente — a exceção foi na noite eleitoral das europeias, quando o partido sofreu uma hecatombe eleitoral histórica –, no PCP existe a convicção de que o partido foi prejudicado pela perceção pública que se gerou sobre o seu papel na última legislatura. Daí as palavras de Jerónimo de Sousa: o Governo tentou, em muitos momentos, apropriar-se das bandeiras do PCP.

O período da actual legislatura apresenta uma distinção significativa em relação à anterior resultante da alteração da correlação de forças na Assembleia da República decorrente das eleições de 2019. De facto, o que mudou entre a legislatura anterior e a de agora, são as circunstâncias e não o PS e a sua política.

Esta é uma passagem-chave do discurso de Jerónimo de Sousa porque marca a distinção entre os dois momentos: entre 2015 e 2019 houve, de facto, um quadro de convergência possível entre PS e PCP, que permitiu, apesar de tudo, reverter algumas das medidas aprovadas pelo Governo de Pedro Passos Coelho. Essa cola, sugeriu Jerónimo de Sousa, já não existe mais. As circunstâncias mudaram.

Uma situação que PSD, CDS e os seus sucedâneos da Iniciativa Liberal e do Chega procuram aproveitar, cavalgando a situação de crise e falta de resposta aos problemas por parte do governo do PS para relançar a sua política de desastre nacional.

A aliança à direita nos Açores vai marcar a nova fase da política portuguesa. À esquerda, PS, Bloco e PCP não vão deixar de ameaçar com o fantasma do Chega num eventual futuro governo como forma de apelo ao voto. Mais à frente no seu discurso, Jerónimo recuperaria a ameaça e responsabilizaria também Marcelo Rebelo de Sousa.

O PCP não é agora, como não foi na legislatura que findou, governo ou parte de uma alegada “maioria”, mas sim força de oposição a tudo o que contrarie ou faça retroceder os interesses e direitos dos trabalhadores e do povo.

O regresso às origens do PCP. Apesar de ter acabado de salvar o Orçamento do Estado, o PCP sabe onde está e para onde vai: é uma “força de oposição” e não um membro honorário de qualquer aliança de esquerda. É um claro aviso a António Costa e a manifestação de que o PCP está disposto a intensificar as exigências. Um sinal importante em vésperas de eleições autárquicas e num momento em que há uma crise económica e social no horizonte.

As opções do PS não permitiram que o Orçamento acolhesse o conjunto de medidas que mais globalmente se impunham e recusaram-se, a partir da convergência entre PS e PSD, medidas essenciais. Mas a persistência do PCP, a sua determinação em não desistir do País, permitiram inscrever na versão final do Orçamento do Estado medidas que terão tradução concreta na vida dos trabalhadores e do povo. Uma abstenção que marca um distanciamento face a opções e critérios que o Governo assume num Orçamento que é da sua responsabilidade. O Governo não tem qualquer desculpa

Depois de ter votado contra o Orçamento Suplementar, o PCP decidiu abster-se no Orçamento do Estado para 2021, tendo sido fundamental para salvar o Governo de António Costa. A decisão traz riscos: com o Bloco de Esquerda fora de jogo, o PCP torna-se o único corresponsável pelas medidas tomadas para enfrentar a crise. Jerónimo de Sousa tentou separar as águas: os comunistas só deram a mão porque entenderam que não podiam “desistir do país” — uma crítica implícita ao Bloco de Esquerda já ensaiada por Jerónimo de Sousa em entrevista ao Observador — e cabe agora a António Costa responder à crise. “O Governo não tem qualquer desculpa”. Foi a última oportunidade que o PCP deu ao PS?

O processo de rearrumação de forças que sectores mais reaccionários promovem, para recuperar na plenitude as condições para retomar a sua ofensiva, exige a denúncia das opções do PS e do seu Governo e a da convergência que, com o beneplácito do Presidente da República, se verifica entre PS e PSD em questões essenciais, e o combate e confronto com os projectos reaccionários que PSD e CDS, e os seus sucedâneos políticos, têm em curso.

Mais uma vez, o secretário-geral do PCP alude à reconfiguração do espaço político à direita e responsabiliza Marcelo Rebelo de Sousa por abençoar todos os sinais de aproximação entre PS e PSD, como parte de um alegado esforço de Belém para afastar a esquerda à esquerda do PS do poder.

A valorização salarial assumida como emergência nacional; avançar para uma justa política fiscal; a prioridade ao investimento público; avançar com um programa ambicioso de financiamento dos serviços públicos e das funções sociais do Estado; inscrever como prioridade absoluta um programa de investimento na Saúde; implementar um programa extraordinário de investimento no sector dos transportes públicos; afirmar, reforçar e ampliar a protecção social; garantir um salto qualitativo e quantitativo no desenvolvimento das forças produtivas, nomeadamente com a economia digital; avançar para uma viragem nas políticas ambientais; avançar na recuperação pública dos sectores estratégicos; assegurar um País coeso e equilibrado e a regionalização; um novo rumo para a Justiça e o firme combate à corrupção.

Neste momento, já Jerónimo de Sousa elencava todo o caderno de encargos desenhado pelo PCP para dar resposta aos problemas no país. Um guião a que António Costa terá de dar resposta (pelo menos em parte) se quiser continuar a contar com os comunistas em Orçamentos futuros.

Entraremos no novo ano com a realização das eleições presidenciais com a importância que se reveste e à qual o camarada João Ferreira dá voz e expressão, tão mais importante quanto constitui a candidatura que coloca no centro da sua acção o trabalho e os trabalhadores e concebe um exercício das funções presidenciais no que a esse órgão de soberania se exige de respeito pela Constituição e pelos direitos fundamentais que ela consagra.

Foi a única (e curta) referência às eleições presidenciais e chegou já perto do final do discurso. O elogio ao eurodeputado e candidato presidencial comunista foi seguida por um forte e longo aplauso dos congressistas presentes. Se estas decisões fossem tomadas tendo em conta as palmas, estaria encontrado o sucessor de Jerónimo de Sousa?

Num quadro de forte ataque à sua estrutura e aos seus activistas, delegados e dirigentes, a CGTP-IN confirmou-se como a grande central sindical dos trabalhadores em Portugal, a organização firme, consequente e de confiança que, ao longo dos seus 50 anos de história, na resistência ao fascismo, na Revolução de Abril, na contra-revolução e em décadas de política de direita, sempre cumpriu o seu papel e assumiu as suas responsabilidades em defesa dos interesses dos trabalhadores e do País.

A referência incontornável à CGTP e ao papel da central sindical. Não sendo novidade, não deixa de ser relevante depois de a liderança da central sindical ter ficado fora do Comité Central do partido, que perdeu ainda Arménio Carlos.

E também essa importante batalha que as eleições para as autarquias locais constituirá para afirmar o percurso de trabalho na promoção das condições de vida de cada freguesia e concelho. Uma batalha que exige uma ampla participação unitária fazendo da CDU o espaço de convergência democrática com uma presença alargada em todos os concelhos do Pais e ao maior número de freguesias.

Nas últimas eleições autárquicas, em 2017, quando a ‘geringonça’ comemorava dois anos, o PCP perdeu dez bastiões autárquicos, sendo que nove dessas câmaras foram para mãos socialistas. Em 2021, esse será o grande desafio do PCP: para um partido que deve grande parte da sua influência à implantação autárquica e força sindical — em declínio –, as próximas eleições locais serão de grande importância.

Lidamos com uma conjuntura complexa e difícil, num quadro e num contexto político de incerteza e insegurança, de exercício do medo, em que as forças mais retrógradas não se limitam a espalhar o medo de morrer, mas a tentar transformá-lo em medo de viver, de trabalhar e lutar. Temos de resgatar a esperança, com a nossa confiança, num futuro melhor para os trabalhadores, o povo e a nossa Pátria.

Jerónimo terminou o seu primeiro discurso neste congresso como começou: com o reconhecimento de que a situação é grave, mas que o PCP não está disposto a ceder às pressões daqueles que se limitam a semear o “medo” usando a pandemia para condicionar a intervenção política. O PCP mantém-se convicto de que escolheu o caminho certo.