Inacreditável.
No recreio da escola era coisa para puxar pelo bullying. Desmancharia toda a gente em risos berrantes, dedos de gozo a serem apontados ao alvo, vergonha alheia misturada com incredulidade. Uma jogada não torna alguém melhor ou pior futebolista, mas castiga-lhe a reputação com um chicote. Esta tem tem um pouco de tudo, é verdade: há um remate assim-assim, uma parada que não faz melhor, uma bola que, bem-disposta, diz ao avançado para tentar de novo. Mas a jogada dá-lhe duas chicotadas, com força, das que deixam marca, tão más que o que se diz não é tão mau quanto o que se vê.
O futebol é um jogo que procura marcar golos. Mas se fosse para ver quem fingia que queria acertar com remates na baliza, mas falhava sempre e era convincente, Jonas ganharia — com goleada. Ele recebe a bola, vira-se, está à entrada da área e remata logo. A bola acerta na figura de luvas postas, mas sobra para a relva. O brasileiro resgata-a, finta o guardião das redes, foge-lhe e, com uma baliza escancarada a dois metros, acerta no poste. A bola quer vê-lo a tentar outra vez e Jonas, para o fazer, ainda finta o goleiro desesperado. Só que, a menos de um metro da baliza, cai na partida da bola, que ressalta na relva no momento em que o avançado lhe bate com o pé direito. Sobe como um balão e passa à frente da baliza, nem sai do campo.
Jonas está estupefacto. Apoia as mãos nos joelhos, parece ficar a olhar para o vazio. Que vergonha, pensa, talvez. Mas a vida tem de seguir, bola para a frente, como diz o cliché que tantas vezes dá refúgio a quem joga. A bola, porém, encontra turbulência, à imagem da que trai o brasileiro no campo do Boyacá Chicó, na Colômbia. Do outro lado do oceano veem Jonas desfocado, só detetam o episódio mau no meio de tudo o que já tinha de bom. “O pior atacante do mundo”, escreve o Mundo Deportivo, quando encontra a jogada do brasileiro. “Eu na época nem me importei. Nem sei que jornal é esse”, responde ele, ao recordar os malditos 10 toques que dá na tal jogada, a contar para a Copa dos Libertadores.
A mente é a melhor a pregar partidas. Era fácil ser engolido pelo momento caricato e ir-se abaixo, sentir-se a encolher por uma fama ganha pelo pior motivo. No Brasil, um programa de televisão até pega no falhanço e fala do Grémio como o Inacreditável Futebol Clube. Chegar a ser xingado, à brasileira. Tanto que Evandro Roncatto não se lembra dos golos cantados e falhados, recorda-se do gozo que teve Jonas na mira. “É normal. Na vida de um jogador você acerta e erra, faz parte. Só erra quem está ali, cara! Até os melhores do mundo já erraram. Já vi o Messi e o Cristiano Ronaldo perderem um golo feito”, argumenta, voz de quem faz pouco do assunto porque, depois disso, já viu o amigo fazer muito.
Hoje vê-o a bater o pé com golos, muitos, aos dois extraterrestres que menciona quando nos atende o telemóvel. Tem os mesmos 31 no Benfica que Ronaldo tem no Real Madrid, ambos levam mais seis do que os que Messi já contou no Barcelona. O brasileiro é o mais velho dos três, o que tem menos qualidade por metro quadrado de relva a rodeá-lo, é quem menos obrigação tem para rematar tantas bolas para dentro da baliza. Durante muito tempo Jonas fica na cabeça da corrida à Bota de Ouro. Isto sim, também pode ser inacreditável. Talvez não tanto para Evandro Roncatto. “A gente não é bobo no futebol, sabemos quem vai virar jogador e quem não vai”, diz, para lembrar os tempos em que ele e Jonas eram rebentos a nascer no Guarani.
São miúdos, ideias de avançado para serem concretizadas, quando se encontram no clube, entre 2003 e 2005. Evandro já anda por lá no momento em que Jonas aparece. Vem de longe, tem de fazer os quase 300 quilómetros que separam Tauíva de Campinas. Do campo com relva alta e seca, onde ele joga com amigos, e da farmácia do irmão, onde o resguardo que Jonas tem atrás do balcão o faz pensar em ser farmacêutico quando for grande. O mano arranca-lhe a ideia da cabeça, fá-lo ver que o que tem nos pés é mais precioso. É talento, e toda a gente sabe que o talento não se desperdiça. “Tinha muita qualidade para bater na bola com o pé direito e o pé esquerdo, era um jogador muito técnico”, pensou Evandro Roncatto, ao ver Jonas chegar ao clube de Campinas.
Depois viu-o a provar tudo isso. O brasileiro começou a ser feliz no relvado, a jogar muito e a marcar, mas os golos não eram tantos quanto tudo o que fazia antes de a bola entrar na baliza. Jonas era um caso mais peculiar do que raro, um avançado com mais técnica nos pés do que golo nas botas, alguém a quem pedem bolas dentro da baliza e ele dá toques bonitos, receções de bola com pantufas ou vê como simples o que para os outros é difícil. “Quando o Jonas aparece no Guarani, nós vemos que ele teria um futuro brilhante”, resume o amigo, também avançado. Evandro Roncatto fala do Jonas que conhece a sair da adolescência e a entrar graúdo no futebol. Mas quem decide ser futebolista tem sempre dois lados, o do jogador e o da pessoa. E Jonas parece golear em ambos.
Evandro dá-lhe “dez estrelas”, diz e repete que é “um cara muito brincalhão”, humilde como poucos. Gostava e gosta de pegar, como dizem os brasileiros. De brincar. E Jonas, de uma maneira ou de outra, conseguia estar no lado de quem pega. “A pegadinha tinha que ser com os outros. Brincadeira, com o Jonas, acho que nunca chegamos a fazer. Fazíamos era com os outros!”, recorda o brasileiro que, entre 2007 e 2009, faz duas épocas no Belenenses, bem antes de completar 2014/15 no Oriental. Também se lembra de como Jonas alinhava no conluio para brincar com Mariano, o hoje lateral direito do Sevilha que, no Guarani, era alvo de broma “porque tinha oito irmãs”. Jonas gostava destas brincadeiras e ainda deve apreciar, pois Roncatto diz que “continua a ser a mesma pessoa”.
O mesmo homem com o foco na família sempre que não está em campo. E quando está, também. Em 2012, os dois irmãos ajudam-no a organizar um jogo de solidariedade lá na terra. Jonas Gonçalves Oliveira nasceu em Tauíva no dia 1 de abril de 1984. Esta cidade do Estado de São Paulo tem pouco mais de cinco mil pessoas e à volta de duas mil assistem ao jogo em que, depois de marcar um golo, Jonas convida a mãe para uma dança em campo. “Minha mãe sempre me apoiou, sempre me deu todo o suporte que podia, nunca deixou faltar nada. Em toda a oportunidade que tenho, faço questão de agradecer à minha família por tudo o que fizeram e fazem por mim”, explica, depois do gesto que acontece nas férias que o Valência lhe dá, no verão. Aí a aventura brasileira já tinha acabado.
Mas é longa e tem vários capítulos, depois do prefácio no Guarani. As vistas que Jonas alegra (12 golos) levam-no para perto do mar. O Santos vai buscá-lo em 2006 e o ano e meio que lá passa com o 7 nas costas, que estava na camisola de Robinho, não é famoso. O Grêmio não quer saber e vê em Jonas potencial para melhor. O avançado vai para Porto Alegre, mas não é feliz à primeira. Três golos em ano e meio são a autorização do empréstimo à Portuguesa dos Desportos, onde atinge a dezena e faz com que o chamem de volta. Justifica-o com uma temporada (2009) que apanha boleia nos 24 golos que marca, apesar de a meio ter os 10 segundos fatais e o cognome de “pior avançado do mundo”. Mas Jonas promete a ele mesmo que um dia marcará 30 e, na época seguinte, acaba com 42 e como artilheiro do campeonato brasileiro.
O cognome muda. Lê-se nas tarjas da bancada, ouve-se na boca dos adeptos e aprende-se nas notícias dos jornais — Mestre Jonas. A alcunha, que vem da bíblia e da história do profeta com o mesmo nome, que fica aprisionado no interior de uma baleia e que até inspirou o escritor Moby Dick, dá origem a artigos académicos. Jonas é muito falado, marca golos que se farta e vira ídolo da torcida, expressão deles, dos brasileiros que o perdem no início de 2010 para os espanhóis. O Valência fá-lo aterrar na Europa e o avançado estranha. Diz que é tudo mais rápido, o futebol e a bola que nele rola. O avançado nota, uma e outra vez, como os relvados são regados e ficam molhados para acelerar as coisas, diferente dos gramados que no Brasil a tradição quer secos.
Jonas lá se habitua. É mais segundo avançado do que homem que espera por golos, mas não passa uma temporada sem marcar pelo menos uma dezena. Vê-se no Valência o que Evandro Roncatto via no Guarani: “Jogava um pouco mais recuado, não muito como avançado, era mais como um 10, mas perto da área. Só que tinha muita facilidade para fazer golo e depois foi sendo segundo atacante. Deixavam-no mais móvel. Depois, tem uma técnica muito boa, tanto para passe como para finalizar. Muita qualidade, mesmo”. Mas não a suficiente para Nuno Espírito Santo querer ficar com ele, há dois anos. O Benfica esfrega as mãos de contentamento.
O brasileiro está sem contrato e os encarnados dão-lhe um. Ele recupera a forma, põe-se ao gosto de Jorge Jesus e começa a jogar. Joga muito e, agora sim, marca ainda mais, de todas as maneiras — fecha a época com 31 golos. De Mestre Jonas passam a chamá-lo de Jonas Pistolas e, na primeira época, apenas fica a um disparo de Jackson Martínez, o melhor marcador do campeonato. Pelo meio, Evandro Roncatto mete “o papo em dia” com ele. Coincidem em Lisboa e falam sobre muita coisa. “Falei da qualidade do Jesus, mas ele já sabia”, diz-nos, entre risos que denunciam o feitio difícil do então treinador do Benfica, com quem Jonas faz faísca em agosto de 2015, quando Jesus já é treinador do Sporting e o brasileiro confronta-o no final da Super Taça perdida para os leões.
O episódio parece picá-lo. Jonas joga muito e os golos aparecem a condizer, são às dezenas. As semanas sucedem-se em que os jornais lá de fora escrevem como o líder da corrida à Bota de Ouro está cá dentro. É em Portugal que o brasileiro faz a vida negra a adversários, tanto que, dos três clubes a que o Observador bate à porta, nenhum quer um dos seus defesas centrais a falar de como é ter de jogar contra Jonas. Porque a relação entre avançados e defesas é inversamente proporcional — quanto melhor for para os primeiros, pior é para os segundos. É tão bom para Jonas que, quatro anos depois, voltam a convocá-lo para a seleção brasileira, embora não ganhe bilhete para jogar na Copa América. “Hoje não está lá ninguém que tenha mais golos que ele. O problema, infelizmente, é a política que existe à volta da seleção”, lamenta Evandro Roncatto.
De inacreditável a sensacional, do oito ao oitenta, vão sete anos.
Jonas está com 32 anos, é o melhor marcador do campeonato — é o 15.º brasileiro que logra a façanha — e, mesmo que os gostos se discutam, é talvez o melhor jogador que mora em Portugal. Ajudou o Benfica a ser bi — e talvez tri —, sempre na frente de quem faz mais golos na equipa. Além de tudo isto, o amigo do Guarani ainda diz que o brasileiro é “um amor de pessoa” e alguém “que merece tudo o que está a acontecer na vida dele” e “muitas coisas mais”. Vamos lá ver o que lhe falta fazer por cá.