Quando se pensa em água e música barroca, a associação mais imediata é a Water music que Handel deu a ouvir a 17 de julho de 1717 para servir de banda sonora a um passeio de Jorge I pelo Tamisa, do palácio de Whitehall a Chelsea e depois no regresso. Enquanto o rei e a sua comitiva seguiam numa barca, eram acompanhados de perto por outra barca com meia centena de músicos que executaram a música de Handel. Num tempo em que nos habituámos a ter música em todos os lugares e em todas as situações, é difícil valorizar devidamente o privilégio único que representava para a época poder disfrutar de música enquanto se passeava de barco — e Jorge I ficou tão agradado com a Water Music que a fez tocar por três vezes durante o trajeto de ida e volta a Chelsea.

No programa do concerto com Le Concert des Nations na abadia de Fontfroide, a 19 de Julho de 2015, disponibilizado na íntegra no disco duplo Les éléments: Tempêtes, orages et fêtes marines: 1674-1764 (Alia Vox), o maestro catalão Jordi Savall preferiu dispensar a exuberante e muito gravada Water Music para revelar obras menos conhecidas mas não menos ricas e sedutoras.

[Les éléments: Tempêtes, orages et fêtes marines: 1674-1764:]

Fluxo e refluxo das marés na foz do Elba

A inspiração dos compositores barrocos estava frequentemente sujeita aos condicionalismos decorrentes dos seus empregos e a Abertura Aquática (Wasser-Overture) de Georg Philipp Telemann é um bom exemplo disso. Foi composta em Hamburgo, onde Telemann assumiu em 1721 a direcção musical das cinco igrejas da cidade, cargo que ocuparia até à morte, em 1767, e que não impediria este compositor de uma produtividade sem par — de compor abundantemente para a ópera da cidade, de dar resposta a incontáveis encomendas e de publicar coleção atrás de coleção de música instrumental para as mais variadas formações (consta que boa parte desta atividade frenética resultou da necessidade de pagar as colossais dívidas de jogo contraídas pela esposa).

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Sendo Hamburgo um dos principais portos europeus, foi julgado necessário constituir, em 1623, um Almirantado que zelasse pela proteção dos navios que demandavam o porto, administrasse o seu funcionamento e o serviço de pilotagem e assegurasse a balizagem dos canais do Elba. Foi para celebrar o primeiro centenário do Almirantado que Telemann compôs a Abertura Aquática (que noutra fonte recebeu o título de Hamburger Ebb und Fluht), uma suíte “programática” por onde desfilam figuras da mitologia clássica ligadas ao mar e à navegação: Tétis (deusa do mar, filha de Urano e Gaia), Neptuno (deus do mar, filho de Saturno e Ops), náiades (ninfas fluviais), tritões (equivalentes masculinos das sereias) e Eolo e Zéfiro (deuses do ventos). As dez peças da suíte oferecem grande variedade — do embalo de “Tétis adormecida” e da majestade de “Neptuno apaixonado” à atmosfera foliona de “As náiades divertem-se” e “As brincadeiras dos tritões” e da ventania em crescendo de “O tempestuoso Eolo” à gentileza de “O afável Zéfiro”. A suíte fecha com a dança viva de “Os marinheiros folgazões”, antecedida por um evocação musical de admirável fidelidade do fenómeno físico do “Fluxo e refluxo das marés”.

A leitura de Le Concert des Nations faz justiça ao colorido e rendilhado da partitura, mas não destrona a versão gravada em Hamburgo, em 1984, pela Musica Antiqua Köln, sob a direcção de Reinhard Goebel (Archiv), de ritmos vigorosos e bem marcados, e que é um dos cumes da discografia do barroco.

[Abertura Aquática de Telemann, pela Musica Antiqua Köln:]

Tempestades no Adriático

Tendo Antonio Vivaldi nascido em Veneza, uma das mais importantes cidades marítimas da Europa, e aí vivido a maior parte da sua vida, é natural que o mar esteja presente na sua obra. Nas suas óperas são frequentes as arie di tempesta, trechos que davam a ouvir sentimentos contraditórios e caraterizados por forte turbulência instrumental e extraordinário virtuosismo vocal. Mas essa era uma convenção a que poucos compositores de ópera do seu tempo escapavam — já é menos vulgar a recorrência das tempestades marítimas na música instrumental do mestre veneziano.

Jordi Savall escolheu para este programa o n.º1 dos seis concertos para flauta op. 10 (publicados por volta de 1728), que leva por título La tempesta di mare (RV433). O compositor teria provavelmente esta peça em grande estima, já que dela existem duas outras versões: como o Concerto da camera RV98, para flauta, oboé, violino, fagote, dois violinos ripieno e baixo contínuo, ou o Concerto grosso RV570, em que a flauta, embora mantenha o preponderância, ganha a companhia de um oboé, um fagote e um órgão como solistas. Com o título La tempesta di mare, Vivaldi compôs ainda um prodigioso concerto para violino, o RV253 (faz parte da afamada colecção de 12 concertos Il cimento dell’armonia e dell’inventione op. 8), embora seja uma peça inteiramente diversa do RV433.

A leitura de Savall, com Pierre Hamon na flauta de bisel, é de alto nível, embora possa preferir-se a turbulência e acutilância de Sébastien Marq (flauta) com o Ensemble Matheus e Jean-Christophe Spinosi no registo para a Opus 111/Naïve.

[Concerto para flauta RV433, por Sébastien Marq e Ensemble Matheus, numa gravação ao vivo no festival “Sinfonia en Périgord”, 2000:]

Na ilha encontada de Própero

Num ano em que se assinala o quarto centenário da morte de William Shakespeare, foi uma escolha judiciosa a inclusão num disco sob o signo das tormentas a música composta em 1674 por Matthew Locke para The tempest or the enchanted island.

Locke (c. 1621-1677), hoje caído no esquecimento, foi figura relevante da vida musical inglesa do século XVII: foi um dos cinco compositores que contribuiu para a ópera The siege of Rhodes (1656), tida como a primeira ópera em língua inglesa, e em 1661 compôs música para a coroação de Carlos II, de quem se tornaria “compositor ordinário”. As suas atribuições na corte aumentariam com o casamento do rei com Catarina de Bragança, de quem se tornou organista. The tempest não foi a primeira incursão de Locke em Shakespeare, pois no ano anterior compusera música para uma adaptação de Macbeth por William Davenant.

A Inglaterra seiscentista opôs resistência ao modelo da ópera italiana, preferindo-lhe a “semi-ópera”, em que os números cantados alternam com teatro declamado e números de bailado acompanhados por música instrumental — é neste género que se inserem The tempest e Macbeth. É música agradável e refinada e sem nada de tempestuoso.

[Excertos de The Tempest por Il Giardino Armonico:]

Tempestades mitológicas e em paragens exóticas

O enredo dos libretos da ópera barroca italiana não costumava envolver tempestades — as arie di tempesta eram cosa mentale, tinham lugar apenas no espírito das personagens que, vítimas de acontecimentos tremendos ou confrontadas com ameaças terríveis ou dilemas insolúveis, se sentiam como um pequeno navio no meio de uma procela, à mercê do vento e das ondas. Mas se na ópera italiana as tempestades tinham lugar apenas na esfera emocional, os libretos da ópera francesa desse tempo incluíam amiúde tempestades “físicas”. Savall seleccionou uma “Tempête” da ópera Alcyone (1706), de Marin Marais (mais conhecido como compositor de música para viola da gamba), e rodeou-a de danças instrumentais que envolvem marinheiros e tritões. O libreto de Alcyone, inspirado na versão de Ovídio para o mito de Alcione e Ceix, tem uma forte componente trágico-marítima, mas o final, como usual na ópera deste tempo, é feliz: Neptuno intervém e devolve à vida Ceix, que perecera no naufrágio, e Alcione, que se suicidara ao ver o corpo do amado dar à praia.

Jean-Philippe Rameau, o maior compositor de ópera francês do século XVIII, tem momentos borrascosos em algumas das suas óperas e Savall escolheu uma “Orage” e um “Air por les Zéphyrs” de Les Indes galantes (1735) e uma “Tonnerre” de Hyppolyte et Aricie (1733), bem como algumas danças muito vivas. Le Concert des Nations, um grupo que nasceu a tocar música do barroco francês, está, com Marais e Rameau, como peixe na água.

Caos e ordem

Também francês é o compositor da peça mais invulgar deste programa: Les éléments (1737). Jean-Féry Rebel (1666-1747) foi maître de musique dos 24 Violons du Roy, compositor de câmara de Luís XV, primeiro violino e maître de musique na Académie Royale de Musique e dirigiu o Concert Spirituel (uma temporada regular de concertos públicos que funcionou em Paris entre 1725 e 1790), mas este impressionante curriculum não impede que a música de Rebel raramente seja tocada nos nossos dias, com exceção da peça em apreço.

A ideia de representar musicalmente a criação do universo a partir do caos não era original — André-Cardinal Destouches (com a colaboração de Michel-Richard Delalande) já tinha composto uma ópera-bailado sobre o tema, Les élémens, que estreou em 1721 e granjeou popularidade suficiente para se manter no repertório até 1780. Mas enquanto a música de Destouches se ateve às convenções da época, Rebel entendeu que a figuração do caos requeria música verdadeiramente caótica — não se tratou de um ato de “modernidade” avant la lettre ou de uma tentativa de inaugurar uma nova via estética, Rebel foi apenas impelido a encontrar a representação musical mais fiel possível para a situação em causa.

[“Le chaos”, de Les éléments, pela Musica Antiqua Köln:]

Adivinhando a perplexidade que a sua ousadia despertaria, o compositor explicou-se no prefácio da obra: “A introdução a esta sinfonia era natural: era o próprio Caos, essa confusão que reinava entre os Elementos antes do instante em que, submetidos a leis invariáveis, tomaram o lugar que lhes estava destinado na ordem da Natureza. Para esboçar, nesta confusão, cada Elemento em particular servi-me das convenções correntes. O baixo exprime a Terra através de notas ligadas entre si e que se tocam aos sacões; as flautas , através de linhas ascendentes e descendentes, imitam o fluxo e o murmúrio da Água; o Ar é pintado [sic] pelas notas sustentadas tocadas pelas flautas piccolo; finalmente, os violinos, com as suas linhas vivas e brilhantes, representam a actividade do Fogo […] Esta primeira ideia levou-me mais longe. Ousei reunir a ideia da confusão dos Elementos com a da confusão da harmonia. Tentei fazer ouvir em primeiro lugar todos os sons misturados, ou seja, todas as notas da oitava reunidas num único som. Estas notas desenvolvem-se, erguem-se num uníssono, na progressão que lhes é natural, e, após uma dissonância, fazem soar um acorde perfeito”.

Pintando a borrasca

Em contraste com o interesse que os compositores barrocos manifestaram em “pintar” tempestades, os pintores barrocos mais famosos só as representaram no contexto de episódios específicos da mitologia clássica ou da Bíblia. É o caso de “Neptuno acalmando tempestade”, de Peter Paul Rubens (1735) ou do episódio em que Cristo e os apóstolos são apanhados por uma tempestade no Mar da Galileia, tratado por Jan Brueghel e Rembrandt.

A tempestade em si mesma só foi tema de eleição para a escola holandesa de pintura marítima, que conheceu intensa atividade no século XVII, coincidindo com o apogeu dos Países Baixos como potência comercial e naval. Entre os pintores (todos de segundo e terceiro plano) que deram relevo à tempestade — alguns preferiram representar batalhas, portos ou situações de mar chão — contam-se Jan Porcellis, Jacob van Ruisdael, Laureys a Castro Ludolf Bakhuizen e Willem van de Velde, o Jovem.

Contudo, a escolha de uma imagem para a capa do disco de Le Concert des Nations saltou sobre a escola marítima holandesa e deteve-se num quadro quase um século posterior à mais tardia das obras nele registadas: “O navio negreiro” (1840), de J.M.W. Turner, pintor que dedicou parte substancial da carreira a representar as variações de humor e luminosidade do oceano – e, no processo, acabou por prefigurar algumas “invenções” do impressionismo.

“The slave ship” (“O navio negreiro”), do pintor inglês J.M.W. Turner. A obra é datada de 1840 (Wikimedia Commons)

Mas enquanto as figurações musicais de tempestades no período barroco são, pelo menos pelos padrões actuais, relativamente cordatas e civilizadas (não assustam ninguém que esteja familiarizado com free jazz ou death metal), o quadro de Turner, que também é conhecido como “Slavers throwing overboard the dead and dying: Typhoon coming on”, retrata um cenário sinistro: a tripulação do navio negreiro, perante a aproximação de uma tempestade, atira pela borda fora os escravos mortos e moribundos, que se tornam pasto dos tubarões e outras criaturas marinhas. Tudo no quadro – o torvelinho sanguinolento que agita as águas, a silhueta espectral do navio, o brilho malsão do sol poente e a linha do horizonte que, participando no clima de pesadelo, se inclina perigosamente para a direita – denota uma obra essencialmente romântica, que pouco tem a ver com a música contida no disco.