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Desde 2013 que Jorge Bacelar, médico veterinário, fotografa agricultores e animais na vila da Murtosa, em Aveiro

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Desde 2013 que Jorge Bacelar, médico veterinário, fotografa agricultores e animais na vila da Murtosa, em Aveiro

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Jorge Bacelar, o veterinário que fotografa agricultores e animais: “Todos sabem que existe o interior, poucos o conhecem verdadeiramente”

Jorge Bacelar é veterinário, mas é a fotografar agricultores e animais que ganha prémios, faz exposições e lança livros. Em entrevista, conta como tudo começou e do que ainda o comove no mundo rural.

Foi numa passagem pelo Porto, onde apresentou a exposição “Ruralidades” no Ateneu Comercial, que falámos com Jorge Bacelar, o médico veterinário que se tornou conhecido, aqui e além fronteiras, pela arte de fotografar.

Nasceu em Figueira de Castelo Rodrigo, cresceu na Póvoa de Varzim e foi a observar aves, plantas e animais no campo que aprendeu a explorar a natureza e a descobrir a biodiversidade. Ser veterinário, no entanto, não estava nos seus planos, mas aconteceu e foi à boleia da profissão que começou a entrar na casa e nos currais de agricultores, ganhando um acesso privilegiado à vida, à rotina e aos desabafos destas pessoas. “Quando vou a casa deles, tratam-me mesmo como membro da família, tratam-me por Jorge, sento-me à mesa com eles, desabafam comigo, contam-me o que não contam a mais ninguém.”

Trabalha há mais de 20 anos na vila da Murtosa, no distrito de Aveiro, e foi a necessidade de registar atividades que corriam o risco de desaparecer com o tempo que o levou a pegar numa máquina de filmar pela primeira vez. Veio depois a fotografia e o gosto por captar o mundo rural, aquele que “todos sabem que existe, mas poucos conhecem verdadeiramente”.

Se durante a semana Jorge Bacelar trata dos animais, de pequeno ou grande porte, aos fins de semana reservas umas horas para retratar produtores, animais e crianças no seu habitat natural. “Há pessoas que mostro nas minhas exposições que nunca foram fotografadas na vida, só mesmo para o cartão do cidadão, aliás, a Silvina [uma agricultora] nem uma fotografia do casamento tem.”

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Em 2019, o veterinário-fotógrafo decide publicar algumas imagens num livro a que chamou Ruralidades, percorrendo o país com várias exposições, em 2021 recebe o voto popular de um dos maiores concursos de fotografia de viagens do mundo, o Travel Photographer of the Year, com uma imagem do agricultor Abílio da Fonseca abraçado a uma das suas cabras, e nesse mesmo ano lança mais um livro de fotografia intitulado A Nossa Gente.

Os seus retratos parecem “pinturas da vida real”, têm tanto de dramático como de intimista, e resultam da relação de proximidade e cumplicidade a uma comunidade à qual se sente privilegiado por pertencer. Bacelar não vende obras, diz que quer apenas mostrá-las ao mundo numa tentativa de homenagear e eternizar e a vida e o trabalho dos protagonistas. Esta sexta-feira inaugura uma exposição no Museu da Guarda, que estará patente até 22 de maio, e de uma coisa tem a certeza: “o mundo rural não se esgota e continua a comover.”

Estas são algumas imagens e protagonistas presente no livro "Ruralidades", que já vai na terceira edição, e que integram a exposição de fotografia de Jorge Bacelar

Fale-me das suas origens.
Nasci em Figueira de Castelo Rodrigo, na Guarda, quase por acaso. O meu pai é juiz, a minha mãe advogada e a primeira comarca onde o meu pai foi trabalhar era lá. Nasci com sete meses em junho e em dezembro os meus pais foram para a Póvoa de Varzim, onde já tinham raízes e onde acabei por ter mais memórias de infância.

O que queria ser quando era miúdo?
Passei pela fase de querer ser astronauta, gostava muito de matemática e de ciências, queria estar ligado a alguma destas áreas. O curso de medicina veterinária só existia em Lisboa e no ano em que entro com um grupo de amigos é exatamente o ano em que abre o curso pela primeira vez na UTAD [Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro]. Ao contrário de alguns colegas, não tinha o sonho de fazer isto a vida toda, não idealizava de forma alguma ser veterinário, mas aconteceu e adoro o que faço. Depois do curso fui para a Universidade de Saragoça estudar Cirurgia e Radiologia, e quando regresso arranjo logo emprego na Murtosa, em Aveiro, onde sou médico há mais de 20 anos.

Que relação tinha com os animais?|
Sempre tive animais domésticos, cães e gatos, e na Póvoa, como mais tarde na Murtosa com os moliceiros, ficava fascinado a ver os pescadores a estender o sargaço ao sol e depois transportarem-no com carroças para adubar terrenos. A minha relação com a natureza e com a biodiversidade esteve sempre presente, adoro observar aves classificadas e plantas, tenho esse gosto desde miúdo, quando ia com um grupo de amigos para o campo explorar e aprender através do contacto com a natureza. Nesse aspeto, fui um sortudo.

Apesar de nunca ter sido propriamente um sonho, percebeu logo que o seu caminho era este?
Acho que sim, gosto muito do ato médico, em clínica de campo vou essencialmente a casa das pessoas tratar dos animais, da galinha ao bovino, pesquiso algumas doenças, faço testes e colheitas de sangue Além de gostar disso, também gosto muito do contacto com as pessoas, mais do que com os animais, adoro ajudar os agricultores, sentir os desabafos deles. É por isso que as minhas imagens não têm títulos nem legendas, quero que as pessoas olhem para elas e percebam a sua história. Tenho conversas de horas e horas com estas pessoas, sinto uma amizade e um respeito enorme por elas. Se todos hoje temos uma refeição na mesa é graças a eles e ao seu trabalho, que infelizmente não é valorizado e passa ao lado de tanta gente. Tenho a sorte de entrar em casa deles, nos currais e nas cozinhas e fotografar este mundo interior que todos sabem que existe, mas poucos o conhecem verdadeiramente.

Porque acha que isso acontece?
O trabalho dos agricultores costuma ser tão desvalorizado que eles acabam por produzir para eles e existem produtos que dão mesmo muito trabalho. Há uns dias um agricultor queixou-se que já não chove bem há algum tempo e dizia-me que a chuva é o sangue da terra. Eles têm uma perceção muito diferente daquela que encontro noutras pessoas, o diálogo que tenho com eles todos os dias prova que são autênticas bibliotecas vivas, aprendo imenso e isso enche-me. No fundo, a fotografia foi o encontro perfeito deste meu respeito e carinho, uma forma de perpetuar estas pessoas que considero minhas amigas, homenageá-las e eternizá-las, trazendo-as para grandes espaços.

"Se repararmos, a mão de um agricultor é uma mão suja de terra, cheia de rugas e de veias salientes, de trabalho, se fosse a mão de um pescador era limpinha porque andava no mar. Ainda que não coloque uma legenda, espero que estes detalhes permitam sentir a dureza deste trabalho e o respeito e admiração que tenho por estas pessoas."

Que relação tinha com a Murtosa, vila onde trabalha há mais de 20 anos?
Quase nenhuma, passava por lá quando ia observar animais à reserva de São Jacinto, mas quando passei pela Torreira, onde atualmente vivo, pensei logo: ‘é aqui que vou viver’. Tive logo essa perceção, senti que ali era um bom sítio para ficar, depois até tive oportunidades para ir trabalhar para outras zonas do país, mas nunca quis, o afeto e o carinho que tenho com as pessoas dali prevaleceu sempre. Se hoje sou respeitado por colegas médicos, que conhecem o meu trabalho, devo-o aos agricultores, muito dificilmente imagino a minha vida fora daquele território, seria muito triste para mim perder esta ligação. Quando vou a casa deles, tratam-me mesmo como membro da família, tratam-me por Jorge, sento-me à mesa com eles, desabafam comigo, contam-me o que não contam a mais ninguém.

Além de médico é também uma espécie de psicólogo. Foi sempre assim?
Sim, nunca senti resistência da parte deles, é uma troca, um respeito mútuo. Esta troca deu-me a perceção e a sensibilidade de espaço e de luz de uma forma completamente inconsciente, até porque nem sabia mexer numa máquina fotográfica.

Começou pelo vídeo, certo?
Sim, um amigo meu criou um canal de vídeo no Youtube sobre a Murtosa e pediu-me para gravar algumas entrevistas com agricultores e pescadores que ia conhecendo em trabalho. Comecei a ver o resultado e sentia que aparecia demasiado a minha cara e achava que aquelas pessoas tinham muito mais importância do que eu, foi aí que salta para trás da câmara e comecei a fazer pequenos vídeos. Acordava cedo, procurava a melhor luz, chegava a casa e editava como sabia.

Com que objetivo?
Queria registar aquilo para o futuro, achei que existiam atividades na Murtosa e na Torreira que iriam desaparecer com o tempo e que era necessário documentá-las. Depois era mostrar como aquela zona é bonita, apesar de ser muito esquecida, está no litoral, perto dos grandes centros urbanos, tem mar, ria, fauna, flora, carne, peixe, tem tudo, mas não tem muita projeção. Um dia estava a filmar uma regata de moliceiros, em 2012, e um grupo de fotógrafos começou a dar-me dicas de fotografia, comprei uma máquina barata, comecei a experimentar e nunca mais parei.

O que valoriza mais numa imagem?
A luz, a composição, o cenário, os contrastes. Quando vou fotografar não tenho nada pensado, não sei bem o que vou encontrar naquele dia, olho ao meu redor vejo as vestes dos agricultores, vejo os animais, os alimentos que estão na cozinha e jogo com isso tudo. Gosto que uma imagem tenha vários elementos que me permitam contar uma história, são poucas as fotografias que retrato apenas o rosto de alguém, gosto das mãos pousadas numa mesa, dos animais a interagir com as crianças, tudo isso ajuda a transportar-nos para aquele local. Se repararmos a mão de um agricultor é uma mão suja de terra, cheia de rugas e de veias salientes, de trabalho, se fosse a mão de um pescador era limpinha porque andava no mar. Ainda que não coloque uma legenda, espero que estes detalhes permitam sentir a dureza deste trabalho e o respeito e admiração que tenho por estas pessoas.

Fotografar animais não deve ser fácil…
Sim, é mais difícil do que fotografar crianças, claro que o facto de ser médico veterinário ajuda, mas temos de ter paciência, conhecer bem o comportamento animal, saber como ele vai reagir a determina posição ou luz. Mesmo um animal de grande porte consegue reconhecer-me como médico, quando entro com a bata eles reagem logo, e também me interessa mostrar o quão bem são tratados. Por vezes há a ideia de que os animais são mal tratados no campo, que os donos os veem apenas como uma forma de sobrevivência, mas não, eles são mesmo parte da família. Quando um deles morre, os donos choram e choram bem. Procuro que as minhas fotografias sejam reais, que nada ali seja artificial.

Há alguma história que o tenha marcado especialmente?
Acho que todos os médicos veterinários têm histórias fabulosas para contar, não costumo partilhar muitas para não induzir as pessoas a interpretarem as minhas imagens de uma forma ou de outra. Trabalho durante a semana e ao fim de semana agendo com eles e fotografo-os, muitas vezes pergunto se estão em casa ou no campo a trabalhar, não tenciono quebrar rotinas. Quando não apareço por muito tempo, eles também me ligam a cobrar [risos]. Isso é muito gratificante.

Tem alguma imagem preferida?
Não consigo escolher, não consigo mesmo.

Aos 56 anos, o veterinário e fotógrafo autodidata não esconde o desejo se ter um papel ativo na política local da região onde trabalha

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Quando é que começa a partilhar estas imagens com o mundo?
Começo por publicar nas minhas redes sociais e vi logo que tinham um grande impacto, o feedback começou a ser muito grande e muito bom. De um momento para o outro, comecei a receber prémios e algum reconhecimento, fiz um livro em 2019 e hoje sinto que as pessoas gostam do meu trabalho e talvez encontrem na ruralidade um pouco das vivências que tiveram na sua infância. O meu trabalho acaba por ser nostálgico para uns e uma novidade para outros.

Sente que ocupa um lugar que estava vazio? Que ninguém ainda tinha registado estes lugares e estas pessoas?
Acho que sim. Entendo que não seja nada fácil fotografar dentro de casa destas pessoas, é preciso existir uma grande cumplicidade para poder entrar no seu ambiente, sentir alguma liberdade. No início eles nem sabiam se ia correr bem ou mal, nem sabiam o que implicava aparecer na internet, mas colaboraram sempre porque são meus amigos, confiam em mim, na minha forma de ver e sentem a minha felicidade a fazer aquilo. Ainda hoje chego a casa e depois ver as imagens e todos os detalhes ainda me emocionar com as imagens, é fantástico.

O que é que o emociona?
Ver pessoas com uma certa idade ainda terem que trabalhar tanto de manhã à noite, não terem fins de semana, férias ou uma recompensa. Hoje em dia o cliente quer comprar barato, não interessa se o que compra vem de um produtor que tinha 50 ou 60 hectares e produziu aquilo numa escala enorme ou vem de um pequeno produtor que não ganha para o que produz.

Os seus hábitos mudaram depois de conhecer estas pessoas?
Sim, um pouco. Acredito que somos aquilo que nos rodeia, claro que tudo o que vemos e ouvimos tem influência nos nossos hábitos e rotinas. Há uma consciência diferente.

O que aprende mais com eles?
Tanta coisa. Sempre que um agricultor morre é uma biblioteca que arde e só por isso devem ser respeitados, sei que tenho amigos ali para o resto da vida. Os animais são mesmo bem tratados, circulam pela casa e pelo terreno, sabem identificar os sítios mais quentes, sabem quando algo não está bem. Há um ambiente quase mágico naquilo que vejo que é exatamente aquilo que fotografo, para mim isso é altamente inspirador. Claro que não há sorte, a sorte procura-se e é preciso muito trabalho e dedicação. Acredito que as pessoas que olham para o meu trabalho sentem um pouco da minha personalidade, não preciso de escrever nem falar muito sobre mim.

Que imagem é que acha que as pessoas têm de si?
Alguém que respeita estes agricultores, que sou incapaz de tirar uma fotografia sem autorização.

Os prémios e o reconhecimento mudam alguma coisa? São uma validação?
São um catalisador, indicam que vou no caminho certo. Gosto de ver o orgulho deles na forma como fotografo e como mostro o mundo rural. Há pessoas que mostro nas minhas exposições e que nunca foram fotografadas na vida, só para o cartão do cidadão, aliás, a Silvina nem uma fotografia do casamento tem. Claro que nestes casos sinto uma responsabilidade maior porque tenho a certeza que se fosse outra pessoa bater a porta para os fotografar não era autorizado a fazê-lo.

"O consumidor quer sobretudo produtos baratos, não quer saber como aquilo é feito. A verdade é que estas pessoas vão acabar sempre por trabalhar, mesmo com poucas condições, até porque parar para eles é morrer."

Depois de uma pandemia, com as alterações climática e com uma guerra na Europa, do que conhece e tem visto, a vida destas pessoas está pior?
Quando comecei a trabalhar, há mais de 20 anos, existiam muito mais pequenos agricultores e pequenas explorações agropecuárias, sinto que têm vindo a desaparecer, as maiores têm tendência a ficar cada vez maiores. O consumidor quer sobretudo produtos baratos, não quer saber como aquilo é feito. A verdade é que estas pessoas vão acabar sempre por trabalhar, mesmo com poucas condições, até porque parar para eles é morrer.

O que é necessário a sociedade fazer para valorizar mais este trabalho?
Acho que estes pequenos produtores têm que encontrar o seu nicho de mercado, têm que se habituar a produzir biológico, a encontrar o seu público e a trabalhar para as suas necessidades. Para isso é preciso criar uma cadeia de comércio, mas não é fácil introduzir esta transição. Penso que o poder local poderia criar selos de produtos alimentares da região, um símbolo de qualidade capaz de criar uma identidade e uma marca, com regras e fiscalização.

A ouvi-lo falar agora parece um político. Nunca pensou seguir essa área?
[risos] Localmente sim, já me desafiaram para isso. Gostava de poder ajudar o setor primário, a agricultura e a pesca, mas entendo que há mudanças que acontecem apenas nos órgãos de decisão, são eles que têm o poder de mudar estruturalmente as coisas. Vejo-me a colaborar de qualquer forma, sim.

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