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José Lopes. O ator que "não foi fazer novelas, não foi ganhar a vida" e acabou por morrer de "excesso de integridade"

Rui Zink, Fernando Heitor e "Éme" são alguns dos nomes que recordam o trajeto do ator que "vivia pobre" mas sempre "de forma enxuta". Recusava esmolas com a "altivez de um príncipe" dedicado à arte.

As primeiras memórias são do tempo da escola, quando “o professor Limpinho” ajudou a aproximar alunos. Além das disciplinas obrigatórias para quem frequentava o Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, em 1975, o então professor de Filosofia propôs formar um grupo de teatro extra-curricular e “pôr a malta a trabalhar em conjunto”, de forma “muito democrática, muito anárquica”. Rui Zink frequentava o grupo, José Lopes também. Os dois conheceram-se ali. “Era uma pessoa incrivelmente apaziguadora. Calmo, muito calmo. Muito justo, talvez demasiado. E era o único bom ator de todos nós”, recorda o escritor ao Observador, sobre o ator que foi esta semana encontrado morto, numa tenda em que vivia em condições precárias à beira de uma estação de transportes em Sintra.

Durante algum tempo, ainda houve debate entre alunos e o Professor Limpinho quanto ao nome a dar ao grupo de teatro que se formava então no liceu Pedro Nunes. Discutiram-se várias hipóteses, nenhuma saiu vencedora. No final, porque “havia uma colega nossa, do grupo, que se chamava Arlete”, ficaram Os Arletes. E Rui Zink cimentou ali com José Lopes, futuro ator, uma amizade que manteria ao longo da vida, embora nos últimos anos fosse vendo o amigo “nitidamente menos”. Já na altura, “com 16 ou 17 anos”, Rui Zink recorda-se de várias intervenções do ator no grupo de teatro do liceu: “Lembro-me que as intervenções dele eram quase sempre para conciliar. Era um conciliador. Sei que nos últimos anos poderia ser chato enquanto conciliador, às vezes falamos um bocado de mais… mas havia um par de colegas de liceu que me deslumbravam pela organização da cabeça e do discurso e o Zé Lopes era um deles”.

O percurso de José Lopes anterior à passagem pelo Liceu Pedro Nunes e à atividade no grupo de teatro de escola, quase a atingir a maioridade, não é muito conhecido e os amigos próximos pouco falam do assunto. Sabe-se que nasceu a 31 de março de 1958 e que frequentou a Casa Pia. A ficha do ator no Centro de Estudos de Teatro da FLUL (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) indica mesmo que em 1974 concluiu um “Curso Geral de Administração e Comércio da Casa Pia de Lisboa”. Sabe-se também que após abandonar o Pedro Nunes, formou-se em Antropologia Social, e entre 1977 e 1981 (altura em que tinha portanto entre 19 e 23 anos) participou em vários espetáculos — nove, mais exatamente, dois dos quais de teatro de fantoches — da companhia Os Saltitões – Teatro Experimental, a que também estiveram associados nessa época atores como João Lagarto, Fernando Pinto e Paula Pinto. Espetáculos em que José Lopes também contribuiu com música, outra das suas grandes paixões a par da grande devoção ao cinema, e que o terá levado em tempos a tocar com José Afonso.

O percurso de José Lopes anterior à passagem pelo Liceu Pedro Nunes e à atividade no grupo de teatro de escola, quase a atingir a maioridade, não é muito conhecido e os amigos próximos pouco falam do assunto. Sabe-se que nasceu a 31 de março de 1958 e que frequentou a Casa Pia. Participou em vários espetáculos — nove, mais exatamente, dois dos quais de teatro de fantoches — da companhia Os Saltitões - Teatro Experimental, em que também contribuiu com música, outra das suas grandes paixões a par da grande devoção ao cinema, e que o terá levado em tempos a tocar com José Afonso.

Se já nos anos 1970 impressionava pelo talento — Rui Zink diz que vê-lo representar ainda no liceu tirou-lhe “logo as peneiradas todas” e a pretensão de ser ator —, os anos 1980 foram aqueles em que José Lopes teve maior destaque nos palcos nacionais. Segundo o Centro de Estudos de Teatro da FLUL, foi no início da década que se juntou à companhia de teatro Maizum, dirigida por Silvina Pereira. Com a Maizum, com quem foi trabalhando intermitentemente durante muitos anos, fez pelo menos três espetáculos entre 1982 e 184 — “De Madera”, encenado por Carmen Prast, “Drakula’s Concert”, encenado por Adolfo Gutkin e que chegou a ser apresentado em Barcelona, no Festival Internacional de Teatro de Sitges (com João Lagarto, Luís Gamito e Helena Freitas no elenco, entre outros) e “Preparadise, sorry now – O paraíso não está à vista”, com texto de Rainer Werner Fassbinder e encenação e dramaturgia de Rogério de Carvalho, que mereceu notas críticas do JL – Jornal de Letras, Diário de Lisboa, Expresso – Revista, Diário de Notícias e A Capital.

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É deste último espetáculo de Rogério de Carvalho a partir de texto de Fassbinder, apresentado entre 1984 e 1985 (por 58 vezes e para 1607 espectadores) na Casa da Madeira e no Espaço Ocarina, em Lisboa, que Rui Zink tem uma recordação mais viva do trabalho de José Lopes nos anos 1980. “Lembro-me do deslumbramento que tive quando o vi, suponho que por volta de 1984 ou 1985, a interpretar uma peça do Fassbinder, num bar chamado Ocarina, no Bairro Alto. Já era profissional e foi espantoso. Foi sempre óbvio que ele era um grande ator”. O problema, dirá mais tarde o escritor, foi o “excesso de integridade estética” de que “também se morre”, desde logo pela recusa de papéis “mais comerciais”.

"Foi sempre óbvio que ele era um grande ator". O problema, dirá mais tarde o escritor, foi o "excesso de integridade estética" de que "também se morre", desde logo pela recusa de papéis "mais comerciais".
Rui Zink

Ainda em 1985, José Lopes faz a peça “A caça ao Snark” — encenada por Teresa Garcia Fernandes, a partir de “The Hunting of the Snark” de Lewis Carroll, e apresentada no Teatro da Comuna, em Lisboa — antes de se destacar em “Os Negros”, de Jean Genet (trabalhando aqui novamente com Rogério de Carvalho, um dos mais prestigiados encenadores de teatro em Portugal), apresentada no Teatro do Século. No final dos anos 1980 ainda teve várias peças de destaque — “Um jeep em segunda mão”, encenada por Adolfo Gutkin a partir de texto de Fernando Dacosta, “À Procura do Presente”, encenada pelo mesmo Gutkin, e “Lisboa Monumental”, encenada por Silvina Pereira, da companhia de teatro Maizum, a partir de texto de Fialho de Almeida.

[José Lopes em 2014, na peça de teatro ‘A Lei é a Lei’:]

Ainda nos palcos de teatro, segundo um amigo chamado António Alves Fernandes, José Lopes participou em “Vida e Morte de Bamba” de Lope de Vega — encenada por um daqueles a quem chamava “mestre”, Luís Miguel Cintra —, “Epopeia de Gilgamesh”, encenada por Adolfo Gutkin, e “Eu, Antonin Artaud”, em que se apresentou no Festival Internacional de Teatro de Lovaina, na Bélgica. Lecionou ainda, com Luís Miguel Cintra, a disciplina de direção de atores na Escola Superior de Teatro e Cinema — IPL.

Além de "também tocar e cantar" em muitas peças em que participava, "também participou em algumas óperas meio estranhas", aponta Rui Zink, e fez parte do Ensemble JER, um auto-denominado "grupo de artistas-músicos especialmente formado para interpretar um reportório para instrumentos de plástico"

Já no cinema, paixão maior que o levava muito regularmente à Cinemateca Portuguesa (em Lisboa) para ver filmes e a que se dedicou mais nos últimos anos, participou em filmes de produção independente como “Adeus Lisboa” (de 2012, realizado por João Rodrigues), “Interrogatório” (de Maria Mendes e José Pedroso) e “Longe” (2016) e “Guerra”, ambos de José Oliveira. E, claro, a música: além de “também tocar e cantar” em muitas peças em que participava, “também participou em algumas óperas meio estranhas”, aponta Rui Zink, e fez parte do Ensemble JER, um auto-denominado “grupo de artistas-músicos especialmente formado para interpretar um reportório para instrumentos de plástico”. Além disso, “participou no projeto arquivopessoa.net”, em que se encontra a poesia de Fernando Pessoa, dando voz a muitos poemas do escritor do século XX.

“A dificuldade era crescente e visível. Estava mais frágil”

Rui Zink lembra o amigo como uma “pessoa enxuta” que “não se gabava, não fazia namedropping, estilo trabalhei com este ou conheci aquele”, e tinha uma grande dedicação a causas desesperadas: “Chegámos a trabalhar juntos várias vezes. Surgiram duas ou três situações. O José Lopes integrava o grupo de teatro Maizum [neste caso, nos anos 1980] e sempre que havia uma ideia desesperada, uma ideia engraçada que precisava desesperadamente de alguma ajuda, dispunha-se. Recordo-me de uma vez em que, já ator profissional, fez um espetáculo comigo de borla. Veio dar-me uma ajuda”.

Nos últimos anos, aponta o escritor, havia “uma dificuldade em conseguir papéis, em ter uma vida digna, que era crescente e visível. Mas uma pessoa não quer ver, também… às vezes quando vemos é tarde de mais”. Não é caso único entre os atores a quem a reforma é amarga: “Ainda há pouco tempo soube de um ator que ia pôr termo à vida. O Pedro Alpiarça, que também era meu amigo, fê-lo há uns anos”.

Se quando conheceu José Lopes este era “uma força da natureza aberta para o mundo”, mais recentemente Zink via-o “mais frágil”. Era “um ator que acreditava no teatro mas não se sabia defender. Não foi fazer novelas, não foi ganhar a vida. E isso infelizmente degrada, porque o teatro é o irmão fraco das nossas artes e os atores são os artistas em condições mais frágeis”.

Era "um ator que acreditava no teatro mas não se sabia defender. Não foi fazer novelas, não foi ganhar a vida. E isso infelizmente degrada, porque o teatro é o irmão fraco das nossas artes e os atores são os artistas em condições mais frágeis".
Rui Zink

Admitindo uma “deriva de pequena degradação, de falta de dinheiro”, o escritor recorda algumas das últimas conversas com o ator: “Uma pessoa tenta às vezes dar um conselho, mas o outro pode não ouvir. Lembro-me de lhe ter dito um par de coisas que entraram por um ouvido e saíram por outro. Talvez ajudassem. Sugeria ao Zé Lopes que poderia fazer uma coisa mais comercial, ser em alguns momentos um pouco menos íntegro porque a integridade e a arte sobretudo num país como Portugal são perigosas. Uma pessoa pode morrer de excesso de integridade estética”.

José Lopes na rodagem do filme “Longe”, de José Oliveira (@ Página oficial do filme no Facebook)

O ator, recorda Rui Zink, “sempre foi um bocadinho um poeta” e também por isso, “vivia pobre já há uns 15 anos”. No entanto, “estava feliz com a esposa e com a filha, iam fazendo a vida deles com pouco dinheiro, mas de forma muito enxuta. Estavam sempre numa posição periclitante, como muitas pessoas que conheço do teatro, sobretudo aquelas que decidiram ser profissionais só do teatro, mas iam vivendo”. Tudo terá mudado nos últimos anos. Nas redes sociais, alguns amigos e colaboradores próximos falaram de “um divórcio complicado” sem grandes detalhes — sabe-se apenas que a filha de José Lopes, que estuda atualmente no ensino superior, vive com a mãe. Também se fala numa “doença” que ninguém menciona. “A separação é muito difícil… o Zé Lopes era uma das pessoas mais cândidas que eu conheço. Imagino perfeitamente uma espécie de mistura de timidez, abandono e altivez que pudesse ter acrescido com a separação. E doença… se estivesse deprimido, ou sozinho, ou triste, ou um bocadinho perplexo, não é coisa que me surpreenda”.

Rui Zink diz que “há um ano ou dois” não via regularmente o ator, mas que lhe pareceu tê-lo visto há apenas dois meses. Estava “a lançar um livro” e pareceu-lhe vislumbrar “ao fundo da sala o Zé Lopes”. Enfim, a apresentação do livro continuou, “continuei a estar ali naquela coisa dos autógrafos, as luzes todas, a impressão do sucesso, e quando fui à procura dele tinha desaparecido. Fiquei sem saber se era ele, o fantasma dele… não saberei nunca mas se calhar não interessa”. Antes disso, nos encontros anteriores, sentia “um bocadinho a impotência ao ver uma queda”. Do outro lado estava alguém que contornava isso parecendo “sempre bem disposto e portanto…”.

Quem também trabalhou com José Lopes num espetáculo “no Teatro da Cornucópia” foi Fernando Heitor. Os dois foram “convidados pelo Luís Miguel Cintra para fazer o espetáculo”, o já referido “Vida e Morte de Bamba”. “Era uma pessoa muito afável, muito educado, mais do que a norma. É o que me recordo dele, era muito prestável. Por um lado era introvertido, mas por outro era entusiasta pelo trabalho. Estava muito informado sobre tudo o que se passava no teatro e no cinema, via muita coisa e gostava de discuti-las”, descreve Heitor.

"Ao longo dos anos", quando se encontravam, um dos temas de conversa era "ele estar com dificuldades laborais", por "não ter trabalho", por "não o convidarem". Isto já acontecia, diz o ator e encenador, "há muitos anos". "O facto de ele ser muito criterioso em relação ao trabalho, não gostar de muitos trabalhos de que vivem a maioria dos atores — da televisão, nomeadamente — não ajudou".
Fernando Heitor

Ressalvando não ter tido intimidade estreita com José Lopes, Fernando Heitor diz que “ao longo dos anos”, quando se encontravam, um dos temas de conversa era “ele estar com dificuldades laborais”, por “não ter trabalho”, por “não o convidarem”. Isto já acontecia, diz o ator e encenador, “há muitos anos”. “O facto de ele ser muito criterioso em relação ao trabalho, não gostar de muitos trabalhos de que vivem a maioria dos atores — da televisão, nomeadamente — não ajudou”.

Ator José Lopes encontrado morto na tenda onde vivia

“Dizia que ia apanhar o comboio para Sintra…”

Quem também conheceu José Lopes, mas numa fase mais posterior da vida do ator, foi o músico João Marcelo, que edita as suas canções e discos com o nome artístico Éme. Sublinhando ao Observador que “não era propriamente amigo íntimo do Zé Lopes”, iam-se “encontrando circunstancialmente”, o músico recorda o convívio com “uma pessoa super afável” em dois locais específicos: a Cinemateca portuguesa, onde José Lopes “estava sempre a ver filmes e a discutir cinema”, e um café que entretanto fechou, o café Estádio.

Há muitos anos que João Marcelo começou a frequentar o café entretanto encerrado. “Quando comecei a ir lá com os meus amigos, tínhamos 13 ou 14 anos. Aquilo era um sítio conhecido por ser um café barato, à antiga”, conta, recordando que a faixa etária dos clientes era tão elevada que era conhecido entre miúdos como “café dos velhos”. Só mais tarde João e o grupo de amigos foram-se apercebendo que “frequentavam aquele café pessoas cultas, intelectuais”.

A ida da Cinemateca Portuguesa para o café Estádio era “uma sequência normal para o Zé Lopes”. João Marcelo lembra-se de muitas vezes o ator ter-se despedido dos clientes do café dizendo que “ia apanhar o comboio para Sintra”. É claro, “a maior parte das pessoas não imaginava especificamente para onde é que ele ia em Sintra: que era para uma tenda [onde dormia]”.

João Marcelo lembra-se de muitas vezes o ator ter-se despedido dos clientes do café dizendo que "ia apanhar o comboio para Sintra". É claro, "a maior parte das pessoas não imaginava especificamente para onde é que ele ia em Sintra: que era para uma tenda [onde dormia]".
João Marcelo

O discurso do ator era “aveludado”, tratava-se de “uma pessoa que falava super bem, com uma cultura incrível, tanto que era difícil conversar com ele porque as referências que ele dava eram imensas, de um tempo que, feliz ou infelizmente, não sei, já passou”. Um dos aspetos curiosos é que o ator foi-se apercebendo que o músico e alguns dos seus amigos que lançaram a editora de música Cafetra — como Maria e Júlia Reis, do duo Pega Monstro — tocavam e tinham o mesmo interesse pela música. “Apanhou-nos num Ípsilon ou num Expresso. E passou, para além de ser uma pessoa que simplesmente falava connosco, a ser um apoiante feroz das nossas coisas, o que era incrível. Guardava registos quando nos encontrava [nos jornais], aparecia nos nossos concertos”.

João Marcelo lembra-se ainda de uma “sessão” com José Lopes — que acompanhava muitas vezes a cantora Marta Ramos à guitarra — em que estavam também “as Pega [Monstro] e o [Luís] Severo”. Estavam “num atelier perto do Intendente, a um final da tarde” e estavam todos “com viola, a tocar em roda. A determinada altura o Zé Lopes começa a tocar a ‘Ir e Vir’ do Grupo de Ação Cultural, mas com uma força de interpretação louca, uma coisa de arrepiar e comover. Quando chegou àquela parte [cantarola] ‘sem descanso / e sem dinheiro’, foi incrível. Claro que à luz do que agora sei, se calhar ainda percebo melhor porque é que aquilo lhe saía tanto de dentro do coração. Foi a melhor interpretação que alguma vez vi dessa música”.

José Lopes na rodagem do filme ‘Longe’, de José Oliveira (@ Página oficial de Facebook do filme)

A conversa ia quase invariavelmente parar às artes. “Falava dos mestres dele, como o Luís Miguel Cintra. Falava de teatro e falava com orgulho. Pode parecer estranho mas nunca o vi com palavra de remorso ou de zanga em relação ao destino que teve e que outros tiveram. Vi-o sempre orgulhoso do facto de ter trabalhado com os seus mestres”, recorda ainda o músico. No entanto, se a família de José Lopes quase nunca era tema de conversa, havia uma exceção: “Falava da filha [Inês Gonçalves, a sua única filha], muito. Não falava de mais nada da sua família, mas lembro-me que até contou uma vez que me tinha visto a mim e às Pega Monstro num jornal ou numa revista e que tinha pedido à filha para lhe mostrar os vídeos, para lhe mostrar a nossa música. E acho que a filha tinha adorado Pega Monstro. Ele falava bastante dela, notava-se que gostava muito dela”. Ao Expresso, um antigo parceiro de José Lopes no grupo musical Ensemble JAR apontou, sem muito mais detalhe: “O núcleo familiar era complicado e a vida dele está longe de ter sido fácil”.

“Durante muito tempo recusou qualquer espécie de ajuda”

Nas redes sociais, as homenagens foram muitas. António Alves Fernandes, um agricultor e amigo de José Lopes, escreveu um longo texto em que recordava os momentos do ator a “beijar o chão” no Fundão dizendo “a sorrir” que aquela terra “era o seu ‘Paris Texas’ e o último reduto de resistência cultural do país”. Lembrou ainda que “a vida proporcionou-lhe aplausos nos palcos de teatro, nas salas de cinema, nos convívios culturais”, mas também “se atravessou com muitos espinhos: um divórcio muito complicado, uma precariedade que afeta os verdadeiros artistas que não se vendem por ‘dá cá aquela palha’, um desemprego de longa duração, o fado português de o mérito artístico não ser reconhecido, a doença e a pobreza extrema”.

Após a circulação de um texto pedindo o contributo de amigos do ator e gente solidária para dar a José Lopes um funeral digno (ficará no Cemitério da Ajuda, perto da mãe, e não numa vala comum), ficando o remanescente do dinheiro para a sua filha estudante, surgiram comentários nas redes sociais acusando os amigos de não o terem ajudado em vida. No entanto, António Alves Fernandes, amigo pessoal do ator — e que o Observador tentou contactar sem sucesso —, escreveu no Facebook que José Lopes “durante muito tempo recusou, com a altivez de um príncipe, qualquer espécie de ajuda e, quando a obtinha, logo a distribuía por quem mais precisava. Era pobre (não de espírito) mas distribuía generosidade como um Rei. Estava doente mas perguntava sempre pela nossa saúde. Deu tudo aos outros e acabou sem nada…”.

José Lopes "durante muito tempo recusou, com a altivez de um príncipe, qualquer espécie de ajuda e, quando a obtinha, logo a distribuía por quem mais precisava. Era pobre (não de espírito) mas distribuía generosidade como um Rei. Estava doente mas perguntava sempre pela nossa saúde. Deu tudo aos outros e acabou sem nada...".
António Alves Fernandes

Davide Freitas, da livraria lisboeta Tigre de Papel — onde chegou a ser projetado o filme ‘Longe’, com conversa com os participantes, entre os quais José Lopes —, comentou também a morte do ator nas redes sociais: “O Zé Lopes tinha muito orgulho na sua filha Inês, que também gosta de cinema e faz teatro”, apontou, por exemplo, escrevendo também que a vida do ator “não foi fácil, era casapiano e teve muitas voltas e reviravoltas pessoais e artísticas. Gostava muito do seu carácter, da sua dignidade e orgulho em não revelar as suas necessidades e fraquezas. Nunca foi oportunista nem se vendeu como muitas vezes acontece na vida e no meio artístico”. Além disso, recordou dois reveses no trajeto recente do ator: por um lado, o facto de ter ficado sem a sua viola e ainda o fecho da Casa dos Amigos do Minho, um porto seguro “onde era recebido com carinho”.

LONGE + VIDROS PARTIDOS

LONGE + VIDROS PARTIDOS(apresentação e conversa)Na livraria Tigre de Papel22/02/2017

Posted by LONGE, um filme de José Oliveira on Thursday, February 23, 2017

Há três anos, falava em “terapia” e “renascer das cinzas”

Numa entrevista a propósito do filme “Longe”, o realizador José Oliveira falava assim do contacto com o ator, que conheceu em 2010: “A sua companhia continua para mim vital e indecifrável, fonte de todas as dádivas e segredos. Se pudesse fazer mais um filme, ou muitos, à maneira da Hollywood clássica ou das fábricas genuínas, gostaria que fossem todos com ele. Assim, em Lisboa ou em Braga, como no Mississipi ou em Monument Valley. Naturalmente, sem contratos, nem princípio, nem fim”.

Ao semanário Expresso, o realizador contou também que o ator não falava muito dos seus problemas ou da sua condição de vida: “Não queria contar. Não queria chatear os amigos. Preferia dar-nos amor do que falar das coisas difíceis. Há muita coisa nebulosa na vida dele. Apesar de sermos dos melhores amigos dele nos últimos anos, ele não queria falar. Sabemos muito pouco”.

Há apenas três anos, era o próprio ator que falava assim dos seus últimos anos e da sua participação no filme “Adeus Lisboa”, de 2012: “Receber o convite de João Rodrigues, na Primavera de 2012 (já passaram 4 anos, senhores!) para trabalharmos neste projeto final – ‘Adeus Lisboa’, para a Escola Superior de Teatro e Cinema – devo dizer, com toda a franqueza – foi inesperado, emotivo e milagroso. Inesperado porque, à época, a minha vida pessoal traduzia-se numa existência precária e a minha autoestima enquanto ator, ou melhor, enquanto ‘trabalhador da cultura’ estava muito em baixo… É importante sublinhar este aspeto porque fazer esta curta-metragem, ‘Adeus Lisboa’, representou uma terapia no plano pessoal e um renascer das cinzas do meu trabalho de ator”.

Houve quem lhe chamasse “andarilho da cultura”, quem dissesse que o ator foi “encontrado morto na tenda onde dormia desde que a segurança social lhe cortara o rendimento mínimo, nos arrabaldes de Sintra, junto a uma estação de comboios”. José Lopes foi encontrado morto esta semana. Tinha 61 anos.

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