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Entrevista com José Milhazes, a propósito do seu novo livro “A mais breve história da Rússia” Oeiras, 10 de Fevereiro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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José Milhazes: "O homem que vem a seguir a Putin pode ser pior do que ele"

José Milhazes viveu 38 anos na Rússia. Em entrevista, reflete sobre a crise na Ucrânia, o futuro de Putin, a atitude do Ocidente desde a Guerra Fria e a Rússia, um país com "um passado imprevisível".

    Índice

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Uma Rússia com traços imperialistas e autoritários, que manteve sempre uma relação de “amor-ódio” com a Europa, onde a servidão da gleba resistiu até ao século XIX e que foi palco de uma revolução em 1917 que alteraria todo o mundo, fruto de um czar “incompetente”, de uma série de conflitos militares e de um problema da gestão de terras. São estes alguns dos fatores mais interessantes que José Milhazes destaca no seu livro A Mais Breve História da Rússia, que é editado esta terça-feira pela Dom Quixote e que serve de ponto de partida para discutir a Rússia do passado e do presente com o autor.

José Milhazes conhece bem o país para lá dos livros. Em 1977, partiu para estudar História na União Soviética e acabou por ficar no país até 2015. Trabalhou como tradutor e jornalista para órgãos como a TSF, o Público e a SIC, tentando transmitir ao português comum a identidade complexa de uma Rússia que, diz, “é possível compreender” — “é preciso é a gente esforçar-se”. Para isso, considera que a História é fulcral. Os estereótipos ainda são muitos, como quando se fala de Catarina, a Grande: “Não era nada uma iluminada, ela chamava velho tonto ao Voltaire!”, diz o escritor, que também sublinha como um poema de Bocage contribuiu para se criar uma perceção errada sobre uma política que era, na verdade, “uma excelente utilizadora do soft power“.

Entrevista com José Milhazes, a propósito do seu novo livro “A mais breve história da Rússia” Oeiras, 10 de Fevereiro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Mas nem só de História se faz esta conversa. José Milhazes tem opiniões fortes sobre a atual situação na fronteira da Ucrânia e dispara em várias direções: a Rússia nunca poderia entrar na NATO, porque seria como “meter um elefante dentro de uma garrafa”, mas o Ocidente tem culpas no cartório. Milhazes crê que o “desprezo” a que a Rússia foi sujeita no pós-Guerra Fria levou a uma política cada vez mais assertiva do Kremlin: “Não prestam [atenção] a bem, prestam a mal.” Considera que as ações — ou inações — da União Europeia na invasão da Geórgia, em 2008, e da Crimeia, em 2014, levaram a um agravar da situação e que os europeus se colocaram na boca do lobo ao dependerem tanto do gás russo: “Tem de haver pesos e contrapesos, e não ficarmos sujeitos a que a determinada altura Putin bata com a mão na mesa e a UE comece toda a tossir.”

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Mas o autor também é implacável com Vladimir Putin e a sua entourage — ou “cambada”, como a define. Da “linguagem de bordel” do Presidente russo à sua falta de vontade em levar a cabo uma verdadeira federalização da Rússia, passando pela propaganda nos órgãos de comunicação estatais que, diz, nos deixa “aterrorizados”. No meio, está o povo russo: “Temos os tais 3%, como tínhamos no tempo dos czares, que viviam à grande e à francesa, e o resto é paisagem. São as pessoas pobres, os remediados”, define. Pessoas que, considera, não estão fadadas ao autoritarismo. A democracia, diz, é como o caviar preto: é preciso prová-lo para saber se se gosta dele. 

Pelo meio, ficam os receios sobre o futuro de um país que conhece bem. A sucessão de Putin, diz, levará a um momento “critiquíssimo”, que pode resultar numa “desintegração pior do que a soviética”. Mas, no presente, aquilo que José Milhazes teme mais é a situação dos “vizinhos” do gigante russo — até porque a sua mulher é originária de um deles, a Estónia. “O milagre é como é que um povo muito pequeno consegue, através de séculos, aguentar a sua cultura e sobreviver e ainda pretender ser um país independente”, reflete. “É por isso que a Rússia não tem direitos especiais em relação aos vizinhos. Que direitos? São Estados soberanos, são membros da ONU.” Um raciocínio que, acredita, não pode falhar em relação à Ucrânia.

“Temos de ter consciência de que existem fronteiras europeias. E as fronteiras europeias podem estar ameaçadas por uma guerra”

Porque decidiu escrever este livro? Sente que as pessoas no Ocidente não compreendem a Rússia?
Não quero falar sobre o Ocidente, dedico-me a falar sobre Portugal. Aqui há uma grande falta de discussão sobre os grandes temas internacionais. Vivemos como que afastados do mundo e só acordamos quando nos acontece alguma desgraça, porque estamos sempre convencidos de que a nós nunca toca nada. Por exemplo, no caso dos ataques informáticos: toda a gente sabia que eles vinham, mas ninguém acreditava que fosse a nossa vez e fomos apanhados, como se costuma dizer, com as calças na mão. Não escrevi este livro para esta crise ou nesta crise. Comecei a escrevê-lo muito antes, com um objetivo. Em língua portuguesa e escrito por portugueses ou brasileiros, não existe este tipo de obra, mesmo as traduções para português não são muitas. Há muita literatura anglo-saxónica e francesa, mas vendo já há muito tempo que há aqui um nicho que está completamente vazio, decidi arriscar. É um risco grande, porque escrever uma História da Rússia, já por si…

É uma empreitada.
Exato. E uma breve História da Rússia ainda mais difícil é, porque, sendo um país enormíssimo, é normal que o leitor diga “Você não falou disto ou daquilo”. É perfeitamente natural. Se calhar até dá para escrever mais dois ou três volumes, se os editores acharem por bem [risos]. Mas este foi o principal objetivo: escrever para pessoas que querem conhecer melhor a Rússia. É como o desafio que apresento no início do livro, aquela citação de um poeta do século XIX, “A Rússia não se pode compreender”. Mas eu acho que se pode compreender, é preciso é a gente esforçar-se. E queria dar pistas, no fim do livro há uma bibliografia em língua portuguesa de obras onde as pessoas podem aprofundar o tema. Além disso, há uma ligação. Já tinha publicado, juntamente com o João Domingues, a Antologia do Pensamento Geopolítico e Filosófico da Rússia (ed. Dom Quixote), também desde o início da Rus de Kiev até Putin. O objetivo era o mesmo: ver que tipo de pensamento têm os russos. Depois de acabar aquela obra, vi que era preciso algo mais simples, que permitisse explicar ao leitor daquela obra quais são as bases e as raízes desse pensamento.

"Os nossos políticos fazem-nos crer 'Ah, a guerra é tão longe, não vai acontecer nada'. Claro que vai e nós vamos apanhar por tabela. Há um exemplo muito simples, que é o preço dos combustíveis. Só isso obriga-nos a pensar, vamos sentir na pele as consequências."

O desconhecimento é tanto que até o mais básico da História do país faz falta?
Nós conhecemos alguma coisa, alguns pensadores russos, alguns escritores russos e soviéticos. Mas, como já disse, em Portugal dá-se muito pouca importância à política externa.

Vimos que a questão da Ucrânia nem entrou nesta campanha eleitoral…
Nem se falou disso. Chamei-lhe “campanha parola” e continuo a dizê-lo. Não tenhamos ilusões. Os nossos políticos fazem-nos crer “Ah, a guerra é tão longe, não vai acontecer nada”. Claro que vai e nós vamos apanhar por tabela. Há um exemplo muito simples, que é o preço dos combustíveis. Só isso obriga-nos a pensar, vamos sentir na pele as consequências. O aumento do preço dos cereais… A Rússia, neste momento, é um dos maiores exportadores de cereais e a Ucrânia também. Temos de estar atentos porque aquilo é na nossa fronteira. Se os nossos políticos nos colocaram dentro da União Europeia, com o nosso consentimento, temos de ter consciência de que existem fronteiras europeias. E as fronteiras europeias podem estar ameaçadas por uma guerra. É disso que as pessoas não têm consciência.

“A Europa e os Estados Unidos cometeram erros gravíssimos com a Rússia”

Olhando historicamente para a relação que a Rússia foi tendo com a Europa, há uma linha de continuidade? No livro cita Dostóievski, que diz que a Europa é uma espécie de “Egipto espiritual” para os russos, do qual é preciso fazer o êxodo. Tenho a sensação de que sempre houve um sentimento de pertença e ao mesmo tempo o oposto…
Amor-ódio. É por isso que há pessoas que afirmam que os russos não são europeus. Não estou de acordo, basta ir a Vladivostok, que fica do outro lado do mundo, falar com um russo e vê que está perante um europeu. Falou do Dostóievski. Não se vai dizer que o Dostóievski não é um escritor europeu… Tanto mais que a base e até a forma como ele escreve vai beber à literatura europeia. O mesmo se passa com Tólstoi. O que aqui há é sempre a dificuldade em chegar a uma forma de convivência entre a Europa Ocidental e a Rússia, também devido às dimensões que ambas têm. Por exemplo, nesta altura voltou-se a dizer: “Putin, a determinada altura, queria que a Rússia entrasse na NATO”. Muito bem: a Rússia entrava na NATO e a NATO acabava no dia seguinte. Porque, com o direito de veto, transformava-se a NATO naquilo em que está o Conselho de Segurança da ONU, não funciona. Não podemos meter um elefante dentro de uma garrafa, nem que seja de Barca Velha, não entra, não dá. Além disso, aqui há uma componente muito importante e muito forte que se está a sentir agora outra vez e que às vezes nós, os europeus mais afastados da Rússia, não compreendemos. É a questão dos vizinhos da Rússia, que efetivamente vivem num autêntico pesadelo. Neste momento, a situação mostra que Putin está a dar um tiro no pé — se não for noutro lado qualquer ainda mais sensível — ao levar países como a Finlândia e a Suécia a porem a hipótese de entrarem na NATO. Entendo que a Polónia possa ser isto ou aquilo, devido à História e às guerras. Entendo os países do Báltico e os conflitos com a Rússia. Agora, a Finlândia? Que era um exemplo de convivência durante a Guerra Fria?

  • Entrevista com José Milhazes, a propósito do seu novo livro “A mais breve história da Rússia” Oeiras, 10 de Fevereiro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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  • Entrevista com José Milhazes, a propósito do seu novo livro “A mais breve história da Rússia” Oeiras, 10 de Fevereiro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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Por alguma razão se usa a palavra “Finlandização”.
Sim. E isto devia fazer pensar Putin. Não quero dizer que os russos sejam os culpados de tudo, não. Há coisas em que a Europa e os Estados Unidos cometeram erros gravíssimos na sua política com a Rússia.

Sobretudo no final da Guerra Fria? Ou mais recentemente?
Primeiro, na aposta do Ocidente em Iéltsin em detrimento de Gorbachev. Foi um erro, se nós olharmos do ponto de vista racional e não do ponto de vista dos políticos de então. Porque o que eles queriam não era salvar a União Soviética de Gorbachev, era rebentar a União Soviética de Gorbachev através de Iéltsin e da criação da Rússia. Depois, temos todos os anos 90 em que a Rússia é desprezada e é sujeita a experiências económicas internas, muitas vezes dirigidas abertamente por americanos e pessoas de outras países, que foram terríveis.

Que têm um impacto ainda hoje na forma como os russos recordam esse período. Vêem os anos 90 como um horror.
Exato. Mas o Ocidente não abriu a boca, porque estava lá o Iéltsin. Alegadamente bebia uns copos, mas era um gajo porreiro. E pronto. Nessa altura, falava com comentadores da nossa praça e eles diziam “Pá, a Rússia está arrumada”. E eu dizia “Cuidado, que isto vai dar… [silêncio] e da grossa”. E foi o que aconteceu. Há uma sucessão de violações, mas não é só de uma parte. Por exemplo, uma das últimas do senhor Putin foi quando uma jornalista lhe perguntou sobre a possibilidade da adesão da Ucrânia à NATO e ele lhe respondeu mais ou menos assim: “Então você imagina que agora a Ucrânia faz parte da NATO, depois invade a Crimeia e a NATO vem apoiar militarmente a Ucrânia?” Se eu fosse a jornalista e me dessem outra vez a palavra — o que pelos vistos não aconteceu — dizia-lhe: “Penso. Mas você pensou nisso em 2014 quando ocupou a Crimeia?”.

Aí o Ocidente falhou, ao não ter reagido?
O Ocidente falhou ainda antes. Quando o levantamento popular começa em 2013/2014, chega-se a um acordo entre Viktor Yanukovich e os revoltosos, patrocinado por países europeus — Polónia, França e Alemanha, se não me engano. Aí chegaram a acordo para realizar eleições presidenciais e por aí fora. Ao outro dia, esse acordo é pura e simplesmente atirado ao caixote do lixo e o Presidente ucraniano tem de fugir para não lhe acontecer o mesmo que aconteceu a Kadhafi. Quer dizer, a União Europeia (UE) não se pode meter a mediar coisas e depois a não corresponder! É claro que a Rússia disse que o golpe era anti-constitucional, e é, mas isso já passou. Já estamos numa fase em que o atual poder foi sujeito ao voto popular, por várias vezes, e hoje a Ucrânia é uma democracia. Boa ou má, mas é. Mas vamos ver o acordo de Budapeste de 1994 sobre a desnuclearização da Ucrânia, Bielorrússia e Cazaquistão: está lá a garantia da Ucrânia como país não-nuclear, com integridade territorial. Claro que a Rússia agora vem dizer: “Ah, mas as coisas não são bem assim, leiam”. E nós andamos agora com uns a ir à Ata de Helsínquia de 1975, que é a base legal prática da coexistência da Europa, e a partir daí cada um arranja os seus argumentos. Por exemplo, Putin diz: “Mas Kiev não fala com os separatistas ucranianos”. Muito bem. Mas ele falou com os separatistas chechenos? Não. Mandou tropas para a Chechénia e acabou com aquilo num mar de sangue, morreram centenas de milhares de pessoas.

"A Ucrânia é igual a França e Alemanha juntas, em termos de território. Imagine a quantidade de tropas que é preciso manter naquele país para o controlar. Não estamos a falar na Chechénia, que é metade do Alentejo. Às vezes é este olhar que nos falta para compreender as medidas em que se está a operar."

E, no entanto, essa foi das ações que tornaram Putin mais popular, logo no início do seu mandato.
Claro, porque ele venceu. Aí está outra questão interessante, a da vitória. Muitas das vezes, devido à situação interna — e isto na Rússia é useiro e costumeiro, como se diz na minha terra —, quando começa a apertar cá dentro, tenta-se jogar a carta lá fora. Putin em 2014 teve uma vitória de bandeja.

A invasão da Crimeia nem provocou mortes.
Claro. Hoje, no caso da Ucrânia, as coisas são diferentes.

Acha que isso está a pesar para que a Rússia não avance?
Tem de pesar. Se não pesar, em grave estado estão os dirigentes russos. Não acredito numa invasão e ocupação da Ucrânia. É aí que às vezes se vêem as tais falhas básicas na geografia e na História: a Ucrânia é igual a França e Alemanha juntas, em termos de território. Imagine a quantidade de tropas que é preciso manter naquele país para o controlar. Não estamos a falar na Chechénia, que é metade do Alentejo. Às vezes é este olhar que nos falta para compreender as medidas em que se está a operar.

Mas uma incursão mais específica, talvez semelhante ao que aconteceu na Geórgia em 2008, é mais plausível?
Isso já aconteceu em 2015. A Rússia diz que não tem nada a ver com o que se passa no leste da Ucrânia, mas todos sabemos que isso é mentira. E pode vir a acontecer de outra forma, nomeadamente se forem levados a cabo os Acordos de Minsk. Porque esses Acordos foram assinados numa situação muito específica, em que a Ucrânia tinha saído de uma série de derrotas militares e assinou aquilo quase com uma pistola encostada à cabeça. E a França e a Alemanha fizeram exatamente a mesma coisa que fizeram a UE e [Nicolas] Sarkozy na Geórgia: foram para lá tentar resolver tudo muito depressa e depois saíram 100 documentos que, para a Geórgia, foram uma desgraça. Nomeadamente na questão dos observadores, porque assinou-se, mas quando a UE quis meter os seus observadores lá, a Rússia disse; “Não, são os nossos observadores que ficam aqui, não há observadores ocidentais na Ossétia do Sul”. No Acordo de Minsk, é a mesma coisa. A federalização da Ucrânia até pode ser uma coisa bonita, mas é perigosa, porque isso pode permitir às forças pró-russas alargarem a sua zona de influência na Ucrânia e os ucranianos têm receios. Só que às vezes, para os nossos diplomatas, o que interessa é que seja rápido. “A gente tenta resolver isto com um acordozinho e depois logo se vê o que acontece”. Só que o que acontece depois é que o acordo pode não ter validade ou complicar ainda mais a situação. Por exemplo, a questão do controlo da fronteira entre as regiões separatistas e a Rússia também está no Acordo de Minsk, vem quase em último lugar. Então, a Rússia diz; “Nós temos que seguir a sequência: primeiro dão o estatuto especial à região, depois vão falar com os separatistas e só depois lá para o fim vem que o controlo da fronteira passa a estar nas mãos das autoridades de Kiev”.

E essa é parte do problema. A Ucrânia diz “Primeiro, retirem as tropas” e a Rússia diz “Não, primeiro façam eleições”.
Exatamente.

“Agora temos Putin e a sua cambada a tentar reabilitar figuras como Ivan, o Terrível

Tem pouca fé em Emmanuel Macron para resolver este impasse?
Quer dizer, o Macron arriscou e arriscou muito. Penso que ainda vão surgir os Acordos de Minsk III, ou seja, encontrar-se uma fórmula nova que corresponda aos desejos de um lado e outro. Vai ser difícil. E não pode ser rápido como a Rússia quer, estas coisas não se resolvem assim. No meu livro também tentei mostrar parte disso. Por exemplo, dizem que a primeira capital da Rússia foi Kiev. Não é verdade. Kiev era a capital de um Estado que tem a ver com Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. Há um problema muito complicado na Rússia, onde sistematicamente aparece um dirigente novo que começa a solidificar o poder e depois começa a rever a História, à maneira dele. Como estudei História na União Soviética, sei bem o que isso é. É uma tortura, porque a primeira coisa que se tem de fazer é ver o ano em que o livro foi editado. E se na segunda edição o nome do editor já aparece com um quadradinho à volta, significa que morreu ou foi exilado. Por isso é que os russos dizem: “A Rússia tem um passado imprevisível”. Agora temos Putin e a sua entourage — ou a cambada, como eu lhes chamo — a tentar reabilitar figuras como Ivan, o Terrível. Cada um tem os seus gostos, mas a História não pode ser tratada como um meio de propaganda.

Há uma tentativa de valorizar figuras fortes?
Sim, também já começam com o Estaline. Mas isso não significa que o seguinte não vá fazer o contrário e começar a meter estátuas de um lado e tirar de outro. Por isso é que em Moscovo fizeram bem, que as estátuas que retiraram puseram-nas todas num lugar e não as destruíram, porque depois de amanhã podem voltar a ser úteis. O fundador da KGB, que estava lá em frente à sede, foi retirado, mas não foi destruído, foi para o jardim. Já houve várias tentativas de o voltar a por naquele lugar, se calhar até vai acontecer. Se destruíssem essa estátua era uma chatice, porque depois tinham de gastar dinheiro a fazer uma nova… Isto ainda confunde todo este mecanismo de compreensão da História e da mentalidade russa. E há outra coisa que torna o nosso trabalho ainda mais difícil, que é a questão dos arquivos. Nunca entendemos o que está aberto e o que não está e qual a razão. Hoje ainda há milhões de documentos secretos sobre a II Guerra Mundial na Rússia. Que segredos poderão existir em relação à II Guerra Mundial? Os protagonistas já estão todos mortos e enterrados. Sistemas de espionagem? Não sei se haverá alguma coisa secreta, pode haver… Mas estamos perante esta dificuldade: o poder só deixa publicar aquilo que lhe convém e nunca sabemos se estamos a tratar de um acontecimento no seu todo ou só parcialmente.

Há sempre uma tentativa de controlar a História?
Sim, como por exemplo na questão da reabilitação do Pacto Molotov-Ribbentrop. Até Gorbachev, os soviéticos diziam que não existia “parte secreta” do acordo. Gorbachev veio e teve de acabar por reconhecer: “Está aqui”. Agora vêm dizer: “A União Soviética não tinha saída”. Ou seja, nós andamos aqui numa confusão que se transmite também às pessoas. E dá para campanhas de propaganda, principalmente na televisão, em que olhamos e ficamos aterrorizados. Às vezes até oiço frases semelhantes na parte ocidental, mas são raras e são normalmente coisas ditas por pessoas que são pouco adequadas. Coisas do tipo: “Podemos reduzir os Estados Unidos a pó nuclear”. Isto diz um comentador russo na televisão do Estado! Comentador e não só, diretor da maior agência de informação, a RIA Novosti, e da Sputnik. E temos, no caso de Vladimir Putin, um exemplo muito curioso, a utilização do calão e de determinadas frases supostamente populares.

"Em Direito Internacional não há santos e pecadores, há interesses. Não há amigos, continuam a ser os interesses a ditar. E como diz o Putin, noutra frase famosa dele, 'quem paga é que dança com a rapariga'."

Como a que ele usou ainda agora na conferência com Macron, do “minha linda”…
“Gostes ou não gostes, aguenta, beldade.” Quer dizer, isto é linguagem de bordel e usada entre bandidos!

Qual acha que é o objetivo de Putin ao usar essa linguagem?
Primeiro, é um orgulho para grande parte da população. Ter um Presidente que “fala como nós”. E, em segundo, põe o Ocidente de boca aberta. Ainda hoje estava a falar com uma pessoa que me dizia: “Agora, toda a gente vai a Moscovo”. E eu disse: “Sim, aquilo agora é um centro de peregrinações”. Era o que o Putin queria, nunca teve tanta atenção como a que tem agora. Mesmo em termos de diplomacia, qual é o país que discute temas tão complicados em público e nos órgãos de comunicação? Nos últimos tempos só me lembro de um: a Rússia. As exigências que Putin apresentou foram feitas publicamente. Ah, há mais um caso: depois da Revolução Comunista de 1917, o Lev Trotski, que era chefe da diplomacia soviética, decidiu publicar todos os arquivos do ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia. “Publique-se tudo”. Secreto, não-secreto, agentes, não-agentes, tudo. É claro que pararam rapidamente, porque viram que aquilo não funcionava e era perigoso.

Fala no livro de como, por exemplo, a propaganda durante a Guerra Civil foi muito bem usada pelos Vermelhos contra os Brancos. Há aqui modos de funcionar da Rússia de Putin que vêm de lições aprendidas com o que se passou antes?
Há, sem dúvida. Em termos de propaganda, por exemplo, embora claro que com os meios modernos. Agora, pode não funcionar sempre. Mas pelo que vejo e oiço, até parece que funciona. A Russia Today e a Sputnik até convencem muita gente. Nesse sentido, é uma das grandes armas — faz parte da chamada “guerra híbrida” — que a Rússia tem utilizado e por vezes muito bem, tenho que reconhecer. Aprendem muito rapidamente e, muitas das vezes, aprendem com o Ocidente. “Vocês já fizeram isto, por isso nós vamos fazer”, que é outro argumento importante. Mesmo que seja asneira. Ou seja, se eu me atiro do 9º andar abaixo, o senhor ao lado também se atira? Quer dizer, não. Ele pensa se está correto ou não. E como acha que não, não comete os mesmos erros que os outros cometem.

Mas é o que acontece quando a Rússia cita o exemplo do Kosovo para justificar a situação na Geórgia ou na Crimeia?
Esse é um caso rapidamente desmontável, é muito simples. O Kosovo é internacionalmente considerado um Estado independente. A Crimeia foi ocupada, mas não se tornou independente. Como é que pode servir uma coisa para explicar a outra?

Mas é como se o Kremlin criasse a narrativa e… está feito?
Claro, porque as pessoas muitas vezes não pensam e não olham para a diferença que há aqui. Nós dizemos e os russos também que “o diabo está nos detalhes”. Nós às vezes não prestamos muita atenção a esses pormenores. O mesmo em relação a outra política qualquer… Porque em Direito Internacional não há santos e pecadores, há interesses. Não há amigos, continuam a ser os interesses a ditar. E como diz o Putin, noutra frase famosa dele, “quem paga é que dança com a rapariga”.

“Os russos só não aproveitam o que se passa na UE se forem burros. E Putin não pertence propriamente a essa categoria”

A propósito dessa questão dos interesses e da realpolitik. A Rússia de Putin fala muito nesta ideia de que há grandes ligações históricas entre Rússia e Ucrânia e de que o país faz parte da sua esfera de influência. De um ponto de vista pragmático, não acaba por ser de facto assim? Não há ali uma influência russa que o Ocidente não pode ignorar?
Efetivamente, esses povos estiveram ligados à Rússia, mas nem sempre da mesma forma. A Ucrânia, durante largos períodos da sua História, estava dividida entre vários impérios ou países: Polónia, Império Austro-Húngaro, Império Russo… Havia uma guerra e passava uma parte para um lado e outra parte para o outro. [Como se houvesse uma linha que separa] a Ucrânia Oriental da Ucrânia Ocidental, que são muito diferentes. Você vai a Lviv e até a arquitetura mostra que era uma cidade do Império Austro-Húngaro, de Ortodoxo pouco tem. O problema aqui está em que a Ucrânia foi durante muito poucos anos um país independente. E, normalmente, quando os países se tornam independentes tentam reafirmar essa independência. E às vezes cometem erros. Por exemplo, acho que é um erro a questão da política em relação às línguas na Ucrânia [o ensino é obrigatoriamente todo em ucraniano e não em russo]. Os dirigentes ucranianos podem não achar, mas eu acho. A Rússia acha um erro. Mas isso não é motivo para mandar tropas para qualquer lugar que seja, isso não devia passar pela cabeça de ninguém.

"A Rússia não tem direitos especiais em relação aos vizinhos. Que direitos? São Estados soberanos, são membros da ONU. É sempre o mesmo problema, se vamos fazer exceções à regra, depois criamos precedentes. O Kosovo foi um precedente perigoso, sem dúvida. Mas, se alguém quiser repetir o Kosovo, que repita da mesma maneira, com os mesmos objetivos, e não aproveite só a parte que lhe convém."

A certa altura, no século XVI, há uma ideia de identidade ucraniana que se começa a desenhar. Essa identidade já existe há muito tempo e nós é que ficamos toldados pela ideia da influência russa?
Não era dominante, tinha alguns traços. Mas, como a Ucrânia estava separada, esses traços estavam diluídos. A Ucrânia vem-se afirmando, como muitos países europeus, no período do Romantismo. Que é há pouco tempo, século XIX… Se olharmos para Itália, por exemplo, pode-se pensar “Que país tão antigo!” — e não é. É no período Romântico que a cultura ucraniana se torna conhecida. A língua ucraniana, a poesia ucraniana, até a prosa. Um grande escritor, Gógol, toda a gente diz que é um escritor russo. Gógol é um escritor ucraniano que nasce russo. Porque se formos a muitas das obras dele, o que ele escreve é sobre a Ucrânia, o país natal dele. Agora, não escreve em ucraniano, escreve em russo. E tem por exemplo um poeta, o Taras Schevchenko, que é um dos pais da literatura ucraniana, já se afirma escrevendo em ucraniano. Esse movimento foi aumentando, mas a Ucrânia, como outros países daquela região, tiveram o azar de estar no lugar onde estão. Nós queixamo-nos de que estamos na periferia, mas estamos que é uma maravilha. Aqui, só se se atirarem ao mar depois [risos]. No caso dos países pequenos do Báltico — e conheço muito bem a Estónia, porque a minha mulher é de lá —, o milagre é como é que um povo muito pequeno consegue, através de séculos, aguentar a sua cultura e sobreviver e ainda pretender ser um país independente. É por isso que a Rússia não tem direitos especiais em relação aos vizinhos. Que direitos? São Estados soberanos, são membros da ONU. É sempre o mesmo problema, se vamos fazer exceções à regra, depois criamos precedentes. O Kosovo foi um precedente perigoso, sem dúvida. Mas, se alguém quiser repetir o Kosovo, que repita da mesma maneira, com os mesmos objetivos, e não aproveite só a parte que lhe convém.

As generalizações são perigosas, mas olhando para a História da Rússia — muito por causa da sua dimensão — não há uma pulsão imperialista? No livro fala de como a certa altura, quando se equacionou a possibilidade de a União Soviética entrar no Pacto Tripartido, Estaline exigiu uma série de territórios…
Ora, nem mais. Aqui há outro problema e aí é que está um dos paradoxos da Rússia. Se a Rússia se alarga em extensão, enfraquece interiormente. Esse é que é o grande problema da Rússia, em que os dirigentes russos não querem pensar, não lhes convém. Porque Putin teve o momento ideal, desde o início da sua presidência, para começar a fazer da Rússia um país económica, técnica e financeiramente avançado. E perdeu essa oportunidade.

E é interessante, porque no início da presidência dele parecia haver uma certa abertura à Europa.
No caso do [Dmitri] Medvedev [primeiro-ministro de 2012 a 2020] também.

O que mudou?
Uma das razões é porque a Europa deixou de prestar atenção à Rússia. Esse foi um dos problemas. E a Rússia começou a ver que “não prestam a bem, prestam a mal”. É o que está agora a acontecer. Por exemplo, na questão do gás: a UE tem pesadas contas no cartório. A senhora Angela Merkel, que eu admiro muito, um dos maiores erros que cometeu foi acabar com a energia atómica tão rapidamente.

Ao substituí-la pelo gás, tornou-se dependente da Rússia.
Claro. E há outra coisa. Ainda há pouco tempo o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, o senhor Augusto Santos Silva, dizia que tem de se diversificar as fontes [de energia] e construir um gasoduto entre todos os países da UE. Há uma coisa importante: Portugal, Espanha, Itália e França, parcialmente, recebem gás da Argélia. Não estamos dependentes do gás russo. Ou seja, uma das formas de neutralizar a pressão russa não é deixar de comprar gás à Rússia. É arranjar alternativas. E qual é uma? Acabar de construir uma coisa que já devia estar acabada há muito tempo, que é um gasoduto entre Espanha e França, e ligar ao sistema europeu. Isto já aconteceu na crise do gás em 2009, na Ucrânia. Ouvi exatamente o mesmo paleio de que “é preciso diversificar”, mas ninguém faz nada. Há que mexer não só a cabeça, mas também as mãos, e começar a fazer alguma coisa. Acho que neste ponto a UE errou em toda a linha, ao meter-se numa dependência tal. Isto não significa que não haja relações com a Rússia. Elas têm de existir, mas tem de haver pesos e contrapesos, e não ficarmos sujeitos a que a determinada altura Putin bata com a mão na mesa e a UE comece toda a tossir.

"A UE é um saco de gatos completo. Um grita para ali, o outro vai para acolá, a Hungria não quer tropas da NATO enquanto a Roménia e a Bulgária dizem “Venham”… Isto é tudo uma balbúrdia. Os russos sabem o que está a acontecer dentro da UE. E só não o utilizam se forem, como se costuma dizer, burros. E Putin não deve ser propriamente parte dessa categoria." 

E a Alemanha está numa posição complicada…
Está numa posição complicadíssima, está entre a espada e a parede. A indústria alemã irá sofrer uma forte crise se houver problemas com o gás russo. É difícil — mesmo que os Estados Unidos façam todos os esforços, como dizem que estão a fazer — substituir o que vem da Rússia por outras fontes. Isso não se faz em dias, nem em meses. Muitas das vezes, é a própria UE que comete erros. Outra coisa que acho absolutamente fantástica é que nunca vi dentro da UE tomarem-se posições unânimes em relação à Rússia. A UE é um saco de gatos completo. Um grita para ali, o outro vai para acolá, a Hungria não quer tropas da NATO enquanto a Roménia e a Bulgária dizem “Venham”… Isto é tudo uma balbúrdia. Os russos sabem o que está a acontecer dentro da UE. E só não o utilizam se forem, como se costuma dizer, burros. E Putin não deve ser propriamente parte dessa categoria. Tudo isto dificulta o contacto entre russos e europeus. Até 2014, as coisas pareciam estar a andar, mesmo com muitos problemas. Uma das ideias era acabar com os vistos para os russos que queiram fazer turismo na UE, que acho uma ideia brilhante e que devia ser apoiada. Quanto mais russos vierem à Europa, mais gostam da Europa. Posso dizer, pela prática que tenho de ter trabalhado com muitos russos que vieram a Portugal, como ficam surpreendidos como um país no fim do mundo tem autoestradas que a Rússia nem sequer sonha ter. Além do clima, dos mariscos e dessas coisas, mas isso é outra história [risos]

Russos querem democracia? É como o “caviar preto”. Se “nunca provou, não sabe se é bom ou não”

De volta ao seu livro, menciona muitas figuras que, mesmo entre quem conheça pouco a História da Rússia, certamente já ouviu falar. Ivan, o Terrível, Catarina, a Grande, etc. Há uma característica entre eles, que é fruto do tempo destes líderes, mas que nos faz pensar porque ainda permanece: o autoritarismo. Escreve que temos esta ideia de Catarina como sendo uma iluminada, mas que…
Não era nada uma iluminada, ela chamava velho tonto ao Voltaire! [risos] Ela era uma excelente utilizadora do soft power, porque toda a gente pensava nela como iluminada e não era, vemos pelas medidas que ela tomou, por exemplo, em relação aos camponeses, que de Iluminismo não tinham nada. Às vezes criam-se determinados estereótipos que ficam. Por exemplo, aquele poema do Bocage em relação às tendências sexuais da Catarina. Alguém que leia o Bocage pensa que a Catarina não fazia mais nada do que estar na cama com os amantes. Ela gostava muito de amantes, mas calma. São estereótipos que se criam e que têm de ser desmontados. Quanto ao autoritarismo: é verdade que a Rússia, em termos de democracia, tem apenas curtas experiências. Por isso, alguns pensadores, mesmo russos e ocidentais, dizem: “A Rússia só pode ser autoritária, um país com esta dimensão só pode ser dirigido autoritariamente”.

Concorda?
Não. Pergunto sempre às pessoas que afirmam isso: “Você gostar de caviar preto?”. A Cátia gosta?

Gosto.
Provou?

Sim.
[Vira-se para o Filipe, fotojornalista] E você, gosta?
[Responde] Nunca provei.
Então não sabe se é bom ou não. Nunca provou… A democracia é a mesma coisa. A Rússia teve dois momentos em que poderia ter um futuro democrático: março de 1917, com a Revolução dita burguesa que acabou no mesmo ano com os bolcheviques; e depois no período da perestroika, mais ou menos até meio dos mandatos de Putin. Quer dizer, isto é muito pouco. A Rússia é uma federação? Não, não é. Não é, porque todo o poder está concentrado em Moscovo. Isso não é uma federação.

Vemos por exemplo o caso da Chechénia. Quem está lá agora [Ramzan Kadyrov] é fiel a Moscovo…
Fiel a Moscovo, mas faz o que quer. Impõe a lei islâmica, a sharia, promete cortar a cabeça aos opositores e o Putin não pia. Aquilo é um bandido que lá está, mas é o nosso bandido. Havia um Presidente dos EUA [Franklin Roosevelt] que dizia isso em relação ao [Anastasio] Somoza, na Nicarágua: “É um filho da mãe, mas é o nosso filho da mãe”. Aqui é a mesma lógica. O principal é que esteja tudo calminho e caladinho. Se ele prender as pessoas, torturá-las, etc., o Kremlin não vê nada. Claro, não se nota nada quando não se quer.
Isto para dizer que, nesse sentido, a Rússia teve muito pouca experiência democrática, o que nunca permitiu a criação de uma sociedade civil sólida nem uma classe média sólida. A classe média na Rússia, mesmo atualmente, não é muito grande e é muito volátil. Porque, à mínima crise económica, uma parte da classe média desaparece. E temos os tais 3%, como tínhamos no tempo dos czares, que viviam à grande e à francesa, e o resto é paisagem. São as pessoas pobres, os remediados, etc.
E é isso que me leva sempre a dar o exemplo da Guerra da Crimeia, de 1854 a 1856. A guerra foi começada por Nicolau I. A Rússia apanhou forte e feio da parte dos ingleses, franceses e turcos, porque eles já utilizavam barcos a vapor e os russos ainda combatiam só com barcos à vela, por exemplo. E perdeu. O filho de Nicolau I, Alexandre II, olhou para aquilo e pôs fim à guerra. E decidiu, muito corretamente, concentrar-se na solução dos problemas internos do país, nomeadamente na reforma que punha fim à servidão da gleba. A servidão da gleba em Portugal desapareceu no século XII! Quando comparamos a servidão da gleba e a escravatura, são a mesma coisa, só têm uma diferença: a escravidão é maioritariamente com gente de outra raça, a servidão da gleba não. Os servos são russos, como são russos os senhores. Isto foi até 1861, ou seja, há pouco mais de 150 anos. E deixou uma marca terrível na sociedade. O presidente do Tribunal Constitucional da Rússia disse que aquilo até nem era mau… Por isso, estamos a ver.

E teve impactos até económicos. A Revolução Industrial quase não chegou à Rússia e o campesinato continuou maioritário.
Exato. O Alexandre II foi assassinado à 11ª ou 12ª tentativa e as reformas pararam ali com Alexandre III e com Nicolau II, o último czar, que foi uma desgraça. Eu digo no livro, foi o mais incompetente de todos os Romanov.

E foi essa incompetência, juntamente com os vários conflitos militares, que levou a que rebentasse a revolução de 1917?
Sim. Porque a Rússia podia ser um país altamente desenvolvido, se continuasse aquela linha. Por exemplo, com a construção dos caminhos-de-ferro, os grandes investimentos na metalurgia. Mas havia problemas que era preciso [resolver] e o principal era a questão da terra. E o czar não abria mão, estava numa de conservar os princípios da nação, da tradição, da família… O mesmo paleio que usa agora o Putin.

Entrevista com José Milhazes, a propósito do seu novo livro “A mais breve história da Rússia” Oeiras, 10 de Fevereiro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

A propósito de tradição e família, gostava de ouvi-lo sobre a questão da religião. O Grande Cisma deu-se há muito tempo, no século XI…
[Interrompe] O Grande Cisma não acaba porque o Grande Cisma é claramente político. E nem se vai resolver na época dos meus trinetos ou tataranetos. A Igreja Ortodoxa russa continua a cometer o mesmo erro: é uma parte do Estado, não há separação. D. Pedro I criou o Santo Sínodo, uma espécie de ministério, em que meteu lá em cima um laico que passou a dirigir a Igreja, o Patriarca só reapareceu em 1918. Alguns pensavam que, com o fim da União Soviética e das perseguições religiosas, a Igreja viesse a ter um papel mais próprio. Mas ela saiu tão enfraquecida que a única forma de enfrentar a concorrência era encostar-se ao Estado. E foi isso que aconteceu.

E passou a ser usada como instrumento pelo Estado?
Sim, é uma das formas de diplomacia utilizadas pela Rússia. Nomeadamente, a aproximação à Igreja Católica — sendo feita nos tais valores tradicionais, mas com determinadas condições. Quer dizer, a ida do Papa à Rússia ainda não está para breve, o Papa Francisco se viver até à ida à Rússia… [risos] Na Igreja russa não houve um Concílio Vaticano II. A Igreja russa é uma Igreja nacional e nacionalista, os católicos são universais. Com a tal reafirmação da Ucrânia como Estado independente, uma das vertentes foi a criação da Igreja Ortodoxa Ucraniana. Moscovo disse: “Nem pensar”. Quando o Patriarca de Constantinopla autorizou a criação da Igreja, a Rússia cortou relação com o Patriarca. E andam para aí ao barulho e até à pancada em alguns locais, por causa dos templos. Vemos que tem essa componente, a Igreja Ortodoxa funciona como uma correia de transmissão da diplomacia russa em termos de diplomacia internacional. Por exemplo, agora, com a tentativa de alargamento em África, em que estão a utilizar um método absolutamente fantástico. África dependia do Patriarca de Alexandria; hoje, a Igreja Ortodoxa Russa começa a criar paróquias e até dioceses e arquidioceses em África e vai buscar os padres da Igreja de Alexandria de um modo muito simples, paga-lhes quatro vezes mais. E, de repente, a Igreja Ortodoxa Russa começa a crescer em África. Esta é uma das formas de alargamento da influência russa.

“Receio que Putin esteja a cometer o mesmo erro que cometeram os soviéticos”

Termina o livro com um título que diz “A ameaça da viragem para o Oriente”. É essa a fase em que estamos, com uma Rússia virada até possivelmente para a China?
É verdade que neste momento há uma viragem, principalmente no que diz respeito à China. E que é cómoda e até útil para os dois lados. Por exemplo, na questão do fornecimento de gás para a Europa, se a Europa não quiser gás, a China vai comprá-lo.

Ainda assinaram um contrato na semana passada…
Sim, mas os preços não têm nada a ver com os preços de mercado, os chineses compram o gás russo muito mais barato. Isto é importante para a Rússia. Agora, aqui há uma questão: a Rússia e a China são dois países com um nível de desenvolvimento muito diferente. Temos uma superpotência militar com uma economia muito fraca e outra que tem uma economia enorme e um crescimento muito grande do poderio militar. Ou seja, isto é um casamento desigual.

Em que a Rússia vai sair sempre a perder?
Pelo menos as previsões de muita gente são essas. Comparo sempre à Aliança Luso-Inglesa, que é a mais antiga do mundo, mas que só interessa aos ingleses, nós nunca ganhamos nada com aquilo, só perdemos [risos]. Isto para dizer o quê? Que mais tarde ou mais cedo isto vai levantar problemas à própria Rússia. Porque, em termos de influência, há zonas onde os interesses vão chocar. Por exemplo, na Ásia Central. No Cazaquistão, os russos responderam ao apelo e foram para lá militarmente, mas os investimentos são chineses e europeus. Holandeses, com a Shell, ingleses, com a BP…

Alguns até americanos.
Sim, a Chevron e a Exxon. E os investimentos russos na economia cazaque são residuais. Por isso é que se ouviu dizer que as tropas da Rússia e dos aliados estiveram tão pouco tempo no Cazaquistão, porque a China pediu à Rússia que voltasse para casa.

Mas há aqui uma estratégia da Rússia em que, como não se consegue afirmar economicamente, usa a via militar?
Seja na Bielorrússia, seja onde for. Porque não tem outras formas de afirmação. Tem o bailado e os pianistas… Aí tem poder de concorrência.

Na geopolítica não?
Exato. Ou se é um país forte… Há uma coisa muito importante. Dizem que a História se repete, só que de formas diferentes. Receio uma coisa: que Putin esteja a cometer o mesmo erro que cometeram os soviéticos. Uma política interna miserável, desproporcional, porque só se desenvolvia o setor militar. Ferros de engomar, televisões normais, nem pensar, era coisa que não interessava, o que interessava era ter foguetões. E em vez de se gastar na modernização da economia, o dinheiro gastou-se na corrida aos armamentos. A União Soviética chegou ao ponto de ter de começar a importar trigo do Canadá, por exemplo. Ao mesmo tempo que se desenvolve o complexo militar-industrial, há também um alargamento da política externa russa a várias regiões do mundo, como as ex-colónias portuguesas. Até escrevi um livro que se chama Angola, o Princípio do Fim da União Soviética (ed. Vega), em que me insultaram por causa do título, mas o título não é meu, foi uma citação de um alto dirigente soviético. Chegou a determinada altura, nos anos 70, com as crises entre Israel e os países árabes, em que o preço dos combustíveis estava muito alto, como está agora, e na União Soviética estava tudo bem. Só que estoiraram a massa toda na guerra.

"No interior da Rússia, enquanto a carcaça autoritária estiver forte, a bomba pode não explodir. Mas pode acontecer como na União Soviética, em que o poder central enfraquece um bocado — o que já aconteceu, com Iéltsin — e começa a vir a porcaria toda ao de cima."

Nos anos 80, os preços dos combustíveis desceram em flecha e a economia soviética caiu que nem um baralho de cartas, foi um sopro. E o país desintegrou-se. A Rússia tem de ter esse cuidado. No interior da Rússia, enquanto a carcaça autoritária estiver forte, a bomba pode não explodir. Mas pode acontecer como na União Soviética, em que o poder central enfraquece um bocado — o que já aconteceu, com Iéltsin — e começa a vir a porcaria toda ao de cima. “Este território é nosso”, “Esta casa está no meio da fronteira e tem de ser deitada abaixo”, aquelas coisas. E a Rússia passa a ter um monte de problemas internos que poderão provocar uma desintegração até muito complicada. Muito mais complicada do que a soviética.

O país é uma panela de pressão?
Exatamente. E essa pressão poderia ser aliviada com uma descentralização cuidadosa do poder e com o desenvolvimento das várias regiões. Por exemplo, a Chechénia vive dos subsídios que Moscovo paga para acalmar a coisa, mas há regiões russas que vivem em situações de extrema necessidade e não recebem dinheiro, porque não fazem barulho. E todos estes problemas podem levar a que a famosa transição de Putin… Mais tarde ou mais cedo vai ter de haver transição, a não ser que ele tenha descoberto o elixir da eternidade.

Esse é um momento que pode ser crítico?
Critiquíssimo. Não quero acreditar, mas o homem que vem a seguir a Putin pode ser pior do que ele. “Pior, mais ao fundo? Não, não vai bater”. Não vai bater uma porra! Na Rússia, tudo se resolve nos corredores do poder. É uma política extremamente bizantina. O Churchill dizia qualquer coisa como “A política na Rússia é como um combate de dois bulldogs debaixo de um tapete” e com toda a razão. As ditas massas populares não resolvem coisa nenhuma. Nem durante o golpe comunista de 1917 decidiram, não vamos ter ilusões sobre isso. A classe operária, os camponeses, é tudo muito bonito, mas não é a realidade. A realidade é que tudo se passa dentro do Kremlin. E aí, na luta — quando se estiver a aproximar ou a entrega voluntária do poder ou a saída física, porque todos nós somos mortais —, vamos ver quem é que, no meio daquela confusão toda, vai tomar o poder e o que vai fazer com ele. Mas, é claro, posso ser mais animador e citar o nosso jogador português, João Pinto: “Prognósticos só no fim do jogo”.

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