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O especialista diz que a segunda curva deste coronavírus pode ser maior que a primeira, como aconteceu na Gripe de 1918
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O especialista diz que a segunda curva deste coronavírus pode ser maior que a primeira, como aconteceu na Gripe de 1918

Getty Images

O especialista diz que a segunda curva deste coronavírus pode ser maior que a primeira, como aconteceu na Gripe de 1918

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Joshua Loomis, virologista: “A segunda vaga da Gripe de 1918, em setembro, é que foi a mais mortífera e matou 40 milhões de pessoas”

Joshua Loomis escreveu um livro sobre epidemias que mudaram a História. Um capítulo é dedicado às que Portugal espalhou pelo mundo. Mas diz que este coronavírus não provocará "mudanças drásticas".

Do outro lado do Atlântico, através de videochamada, o professor norte-americano Joshua S. Loomis reconhece ao Observador que se enganou quando ouviu falar do novo coronavírus pela primeira vez: pensava tratar-se de uma ameaça ligeira mas ela, afinal, tornou-se uma pandemia. Já sobre os efeitos a curto e médio prazo, com as cautelas que o desconhecido exige, arrisca agora uma previsão: o vírus da Covid-19 não provocará saltos científicos ou mudanças profundas na política e no comportamento social.

Aos 42 anos, este professor universitário de genética, virologia e microbiologia tem visto crescer o interesse por um livro discreto que publicou em janeiro de 2018, Epidemics: The Impact of Germs and Their Power over Humanity. “A editora disse-me que estamos a vender mais exemplares desde que a pandemia apareceu”, conta. O livro combina história, sociologia, religião e ciências naturais, com o propósito de “observar a história das sociedade através da lente das doenças epidémicas e assim explicar a forma como estas moldaram a nossa identidade, alteraram o curso da história e mudaram a forma como interagimos uns com os outros”, diz a introdução. Aborda doenças como a malária, a cólera, a peste negra, a tuberculose ou a sida. Um dos capítulos é dedicado a Portugal e à forma como “os portugueses introduziram várias doenças mortais em África” durante o período dos Descobrimentos. Põe até a hipótese de infeções como a varíola terem sido usadas pelos colonizadores “para mais facilmente controlar as populações nativas africanas”.

No entanto, diz que agora tudo é diferente. A ciência já está muito avançada. E a globalização já é uma realidade.

Doutorado em microbiologia e imunologia, Loomis começou a dar aulas em 2015 na Universidade de East Stroudsburg, na Pensilvânia, depois de também ter sido professor na Universidade Nova Southeastern, na Florida. Fechado em casa com a família desde há várias semanas, diz que ainda hoje os cientistas desconhecem a origem dos vírus, defende o confinamento como a melhor forma de prevenção e comenta a polémica afirmação do virologista Luc Montagnier, Nobel da Medicina em 2008, de que o novo coronavírus foi criado em laboratório e contém partes do genoma do vírus da sida. Diz que teorias conspirativas há muitas, também as houve com o HIV, mas nada leva a crer que este seja o caso.

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Joshua S. Loomis é autor de ‘Epidemics: The Impact of Germs and Their Power over Humanity’

Que pensou em Janeiro quando ouviu falar de um novo coronavírus que estava a matar pessoas na China?
Começo por reconhecer que estava enganado. Lembro-me de dizer aos alunos que estávamos perante uma mutação de um coronavírus que iria infetar pessoas na China, mas daí a uns meses já nem ouviríamos falar dele. O coronavírus que provocou um surto de SARS [síndrome respiratória aguda grave, em 2003], desapareceu ao fim de um ano. Infetou uns milhares de pessoas, matou menos de mil e desapareceu. Com base nas semelhanças genéticas entre o novo coronavírus e o coronavírus da SARS, eu e muitos epidemiologistas pensámos que nunca haveria uma pandemia, que não seria muito contagioso. Se olharmos para os outros coronavírus existentes, e são sete os que têm capacidade de infetar humanos, concluímos que quatro deles dão sintomas semelhantes aos da gripe e estão espalhados por todo o planeta. Logo, não seria de admirar que o novo se comportasse mais ou menos da mesma forma. Acontece que o novo coronavírus é muito mais contagioso do que o da SARS.

Porquê?
Tem a capacidade de permanecer nas gotículas da respiração, o que o faz andar de pessoa para pessoa. Espalha-se muito depressa em pouco tempo, como se fosse um incêndio florestal. Há três ou quatro meses tínhamos umas centenas de casos e hoje temos mais de 200 mil mortos em todo o mundo.

Ou seja, mesmo para os especialistas o alcance do novo coronavírus foi uma surpresa.
Ao fim de algumas semanas, conforme se ia alastrando na China, percebeu-se que era diferente. Mas a minha primeira impressão ia no sentido de que desapareceria depressa. A MERS [Síndrome Respiratória do Médio Oriente, identificada pela primeira vez em 2012 na Arábia Saudita] não se espalhou à escala global. Tínhamos experiência com dois coronavírus anteriores, o da SARS e o da MERS, portanto, supusemos que se comportaria de maneira parecida.

Se até os especialistas se enganaram ao início, considera normal que os políticos não tenham tomado medidas mais cedo, como se critica em muitos países?
Decidir fechar os países teria sido encarado como uma loucura em janeiro. As pessoas teriam achado que se tratava de uma reação exagerada. No entanto, a partir de fevereiro, essa hipótese ganhou força. Portanto, se nos EUA continuámos a ter espaços a funcionar até meados de março, houve certamente um atraso na resposta. Sei que em Portugal as coisas estão a correr muito melhor do que em Espanha ou Itália, o que provavelmente se deve a terem fechado tudo antes que a situação piorasse. Portugal parece ter-se antecipado, partindo da experiência já vivida por outros países. Era bom que mais governos tivessem decidido no mesmo sentido.

Fechar a economia e impor confinamento e quarentenas são as medidas mais eficazes?
Não há unanimidade entre os epidemiologistas. A Suécia seguiu outro modelo: deixar quase tudo aberto, aplicar quarentenas aos que estão doentes ou têm problemas de imunidade e esperar que os restantes desenvolvam imunidade de grupo.

"Isolámos não só os infetados como aqueles que não estavam doentes. Aconteceu com a Gripe de 1918, mas nas outras epidemias ao longo da história só os que estavam doentes é que ficavam de quarentena" 

Que pensa do caso sueco?
Não concordo. Note-se que na maior parte do mundo se abriu um precedente: isolámos não só os infetados como aqueles que não estavam doentes. Aconteceu o mesmo  na Gripe de 1918, mas nas outras epidemias ao longo da história só os que estavam doentes é que ficavam de quarentena, enquanto os saudáveis continuavam a fazer a sua vida. O problema é que quando se deixa a maioria fazer a sua vida estamos a arriscar uma sobrecarga dos sistemas de saúde. Foi o que aconteceu agora em Nova Iorque, por exemplo. O distanciamento social e a quarentena, tal como estão a ser aplicados numa maioria de países, permitem-nos pelo menos adiar a explosão de casos, para que os sistemas de saúde não colapsem. Este vírus não vai desaparecer tão depressa. O coronavírus da SARS foi o único que praticamente desapareceu, os outros andam por aí. Se os usarmos como modelos, o novo coronavírus não vai desaparecer, é provável que permaneça para sempre ou pelos menos por muitos anos.

Sendo assim, o confinamento não foi uma medida puramente científica, mas sobretudo uma medida administrativa, para evitar o colapso dos hospitais?
Sem dúvida, há razões técnicas e administrativas por detrás do confinamento. Se tivéssemos recursos ilimitados… Não há unidades de cuidados intensivos e ventiladores para todos. Sei que há diferentes opiniões, a minha é no sentido de preservar a vida a todo o custo. O confinamento salva vidas no imediato. A Gripe de 1918 é talvez o melhor modelo que temos de uma doença deste género. Como escrevi no livro, houve cidades como Filadélfia, em 1918, em que um hospital com capacidade para 400 pessoas teve a pressão de 25 mil ao mesmo tempo. Ou seja, morreu muita gente. Perante isto, congratulo-me por os epidemiologistas terem tirado lições da história e estarem hoje empenhados em não assoberbar os sistemas de saúde.

Além do confinamento, que outros fatores podem explicar os poucos casos de Covid-19 reportados em Portugal, em comparação com Espanha ou Itália? Genética? Poluição atmosférica? Hábitos alimentares?
Pode haver fatores genéticos, sim, embora não conheça investigações nesse sentido relativas ao coronavírus. Há precedentes, sem dúvida. Sabemos que algumas populações aguentaram melhor a peste negra, a cólera ou a malária, porque tinham certas mutações genéticas que lhes deram resistência natural. Há um exemplo clássico: quem tem anemia falciforme, uma mutação genética natural, resiste mais facilmente à malária. Não sei se os portugueses têm hoje alguma mutação que os torne mais resistentes ao novo coronavírus. À partida diria que os números são relativamente baixos porque a resposta das autoridades foi rápida e a densidade populacional é baixa. Claro que cidades como Lisboa têm muitas pessoas, mas, quanto menor a densidade populacional num território, menor a probabilidade de contágios.

"Pelo que li, houve um consenso político mais ou menos alargado em Portugal, que permitiu uma reposta unânime, muito ao contrário do que tem acontecido aqui nos EUA", afirma o virologista americano

JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Na imprensa internacional houve quem falasse em “milagre português”.
Não me parece que se possa falar em milagre. Haverá por certo muitos fatores explicativos. Pelo que li, houve um consenso político mais ou menos alargado em Portugal, que permitiu uma reposta unânime, muito ao contrário do que tem acontecido aqui nos EUA, em que democratas e republicanos andam em disputas sobre o caminho a seguir. A história ensina-nos que noutras pandemias os países que adotaram medidas mais restritas de confinamento tiveram menos infeções do que aqueles que preferiram deixar os países em funcionamento. Não são só as medidas de confinamento, é também a fiscalização desse comportamento e a maneira de restabelecer as coisas. Em 1918, muitas cidades que voltaram à vida normal depois de estarem paradas tiveram um aumento enorme do número de novos casos.

Pensa que a Covid-19 pode regressar em força no outono ou inverno?
Se tivesse de fazer uma aposta, diria que sim, vai regressar em setembro e outubro. É o que acontece com os outros coronavírus. Referi há pouco que há quatro deles que provocam sintomas de gripe e ressurgem sempre que começa a época das gripes. É quando as pessoas estão mais tempo juntas em lugares fechados, a humidade do ar permite às gotículas atingirem mais pessoas. Receio que regresse. A Gripe de 1918 teve três ondas: a primeira, matou alguns milhões, é certo, mas a segunda onda foi ainda mais mortífera e chegou por volta de setembro, outubro, foi essa segunda vaga que matou cerca de 40 milhões. A terceira onda foi em janeiro, fevereiro de 1919. É possível que a curva que estamos a ver agora seja apenas uma parte de uma curva maior que virá a desenhar-se nos próximos quatro ou cinco meses. Há académicos que dizem ser recomendável manter uma vida online até ao outono. Há preocupações sobre novas vagas.

Defende no seu livro que bactérias e vírus têm alterado as sociedades, alterado até a genética dos seres humanos. Consegue prever como vai o novo coronavírus mudar mundo ou pelo menos o Ocidente?
É uma pergunta complexa. Para já, temos efeitos de curto-prazo: economia, confinamentos, quarentenas. São efeitos semelhantes aos de outras epidemias. No passado houve depressões económicas globais, desde logo com a peste negra na Europa, porque morreu um quarto da população do continente. Devastou a economia, destruiu o sistema feudal. O HIV foi devastador em África, com reduções de 3 a 4% no Produto Interno Bruto de vários países. Portanto, quando se diz que a atual crise não tem precedentes, não é verdade. Quanto a efeitos de longo prazo, o melhor modelo, mais uma vez, é o da Gripe de 1918. A maior parte das epidemias e pandemias não foram realmente de escala mundial; a peste negra foi sobretudo europeia, por exemplo, os europeus ainda não tinham sequer chegado às Américas. Outras doenças, como a varíola, tornaram-se endémicas. Como é difícil comparar doenças do século XIV com doenças do século XXI, a Gripe de 1918 apresenta-se como modelo ideal, porque já tínhamos a medicina moderna e conhecimentos sobre vírus. Além disso, a gripe é uma doença respiratória, tal como a Covid. Portanto, se pegarmos na Gripe de 1918 como modelo para estimar efeitos de longo prazo temos uma surpresa: a Gripe de 19918 não teve assim tantos efeitos permanentes na população. Pode-se dizer que o facto de ter aparecido logo a seguir à I Guerra Mundial, quando as pessoas estavam cansados de lidar com a morte e a destruição, as fez querer esquecer a Grande Gripe. Mas tente-se fazer uma lista dos impactos de longo prazo e não será fácil. Não mudou a medicina assim tanto, não mudou o curso de guerras ou batalhas, não alterou a interação social entre pessoas. Poderíamos pensar que a relação entre cidadãos mudou depois da Grande Gripe, por ter morrido muita gente, mas não mudou.

O novo coronavírus não vai provocar mudanças drásticas na sociedade, como aconteceu com a tuberculose, a malária, a febre-amarela ou até com o HIV e a poliomielite. As epidemias de outros tempos abriram caminho à medicina moderna, mudaram a foram como as cidades eram pensadas. O saneamento básico não existia antes de a cólera e a tifo terem atacado, no século XIX. Haverá a tendência de nos tornarmos um pouco fóbicos dos germes, mas o novo coronavírus não irá durar muito até termos uma vacina".

A Covid será rapidamente esquecida?
A minha previsão seria essa. O novo coronavírus não vai provocar mudanças drásticas na sociedade, como aconteceu com a tuberculose, a malária, a febre-amarela ou até com o HIV e a poliomielite. Penso que não teremos mudanças drásticas pelo simples facto de que se trata de uma doença do foro respiratório, sem efeitos nefastos previsíveis ao longo de muitos anos. A Gripe de 1918 desapareceu ao fim de um ano. Mesmo que o novo coronavírus se mantenha por vários anos, não se pode comparar à peste negra, que durou um século e atacou especialmente durante quatro anos. As epidemias de outros tempos deixaram marcas muito fortes, conseguiram provocar mutações permanentes no genoma humano, abriram caminho à medicina moderna, mudaram a foram como as cidades eram pensadas. O saneamento básico não existia antes de a cólera e a tifo terem atacado, no século XIX. Sem essas inovações, a população teria sucumbido às epidemias. Não me choca que as pessoas passem usar máscaras faciais quando vão ao centro comercial, haverá a tendência de nos tornarmos um pouco fóbicos dos germes, mas o novo coronavírus não irá durar muito até termos uma vacina. Se a vacina funcionar, daqui a dois anos a maior parte da população estará inoculada e a doença irá tornar-se, assim espero, uma memória distante. Se a vacina for eficaz, sublinho. Comecei por dizer que me enganei quando ouvi falar do novo coronavírus pela primeira vez, todos nos enganamos, mas à partida, com base nos meus conhecimentos e na pesquisa que fiz para este livro, não vejo que o mundo mude. A situação é grave, mas não vai abalar a humanidade.

Pecados e castigos divinos. Em 1569, a Peste Negra esvaziou as ruas de Lisboa

Os humanos podem adquirir imunidade natural face à Covid-19?
Tanto quanto sabemos dos outros coronavírus, há uma boa resposta imunitária. Não quer dizer que o mesmo aconteça com este, mas talvez aconteça e isso significa que poderemos desenvolver uma vacina.

Que pensa da imunidade de grupo no atual contexto?
A imunidade de grupo requer uma resposta imunitária forte: se eu for infetado e o meu sistema imunitário ignorar a infeção, não fico protegido da infeção e ela pode atacar outra vez. A questão está em saber se desenvolveremos uma boa imunidade perante o coronavírus, se milhões de pessoas expostas ao vírus terão uma resposta imunitária forte. Se a resposta for sim, não há dúvida de que conquistaremos imunidade de grupo. Se tivermos 100 pessoas dentro de uma sala e 98 delas estiverem imunes, a probabilidade de que um portador do vírus o transmitir aos outros baixa. É esta a lógica da imunidade de grupo. Não sou a favor de uma imunidade de grupo forçada, porque significaria deixar as pessoas em interação e dizer “vai morrer muita gente, mas depois temos a imunidade de grupo”. É importante acrescentar que não temos imunidade de grupo para todas as doenças. A varíola ou a tuberculose não nos permitiram ganhar imunidade de grupo. Não é uma coisa automática, nem todos os patogénicos nos deixam desenvolver imunidade e só param se tivermos antibióticos ou vacinas.

"A politização das doenças ajuda a fomentar o estigma. O presidente Trump tentou fazer isso, ao dizer que o coronavírus era o 'vírus chinês'"

ROMAN PILIPEY/EPA

Como comenta as comparações entre as mortes por gripe sazonal e as mortes por Covid-19? Em Portugal, podem ter morrido cerca de 3.700 pessoas com gripe em 2017/18 e no entanto, para a gripe, há vacina. Há quem diga que isso prova que não era preciso ter fechado o país agora.
Esse argumento tem sido utilizado em vários países. A gripe sazonal não produz tantos casos em tão curto espaço de tempo, costuma durar cinco a seis meses, logo, não temos centenas de milhares de pessoas a acorrer aos hospitais em simultâneo. Ponho o argumento ao contrário: se houve três mil e tal mortes por gripe e se para a gripe há vacinas e medicamentos, que tragédia não seria perante uma doença, a Covid-19, para a qual não temos vacina ou medicamentos? Se não fechássemos os países, perante um vírus para o qual não temos proteção, seria muito pior. A comparação com a gripe apareceu quando tínhamos 300 casos de Covid-19, mas o epidemiologistas sabiam que se nada tivesse sido feito a seguir apareceriam 30 mil. Os epidemiologistas foram muito inteligentes ao recomendarem a paragem geral, antes da explosão.

Surpreende-o que a estigmatização dos doentes com Covid-19 seja muito reduzida se comparada com a dos doentes com HIV. Aparentemente, as pessoas não fazem por esconder que têm Covid-19. Deve-se ao facto de a via sexual ser um dos modos de transmissão do HIV?
De facto, é estranho, mas o estigma não acontece apenas com infeções sexuais. No caso do HIV, começou por atacar a população homossexual, os consumidores de drogas, pessoas que a sociedade, à época, dizia terem o vírus por culpa própria. O mesmo se dizia da lepra, tinha lepra aquele que estava sujo, que era pecador. Nos anos 50, quando uma criança tinha poliomielite a família era estigmatizada. Em doenças do foro respiratório, como a tuberculose, a gripe ou o sarampo, não vemos estigma, mas não sei explicar qual o mecanismo psicológico que nos leva a estigmatizar uma situações e outras não. Quando uma doença se generaliza e há a noção de que qualquer um a pode contrair, o estigma não existe. A politização das doenças ajuda a fomentar o estigma. O presidente Trump tentou fazer isso, ao dizer que o coronavírus era o “vírus chinês”, o que foi uma forma de tentar aliviar a própria responsabilidade.

Mas a Gripe de 1918 ainda hoje é conhecida como Gripe Espanhola…
Mas na verdade não apareceu em Espanha, começou no Kansas, nos EUA. Como a imprensa espanhola deu muita atenção ao assunto, houve quem acreditasse que tinha tido origem em Espanha. Uma forma de atacar países é dar o nome desses países a doenças. Tornou-se comum ao longo a história. O ébola deve o nome ao rio perto do qual foi detetado pela primeira vez [na República Democrática do Congo]. Na Alemanha nazi, a propaganda antissemita incluía culpar os judeus pela tifo, uma doença de que os alemães tinham muito medo. Qualquer pessoa podia contagiar outra com tifo, mas ao associarem os judeus à doença os nazis quiseram criar a ideia entre os alemães de que estariam a proteger-se se permitissem que os judeus fossem enviados para guetos. Usaram o medo da doença contra um grupo específico da população.

"A China não criou este vírus através de engenharia genética, não há qualquer prova nesse sentido. Se a China quisesse criar uma arma biológica não o faria com um coronavírus. Há 20 outros vírus que funcionariam melhor para cumprir um tal objetivo de matar em massa."

Gostaria que comentasse o excerto de um artigo recente do Washigton Post que foi traduzido por um jornal português.  Os autores escreveram: “[Um vírus] é pouco mais do que um embrulho de material genético envolvido por uma casca de proteína, com um milésimo da largura de uma pestana, e tem uma existência semelhante à de um morto-vivo, pelo que dificilmente se  pode considerar um organismo vivo.” A descrição é rigorosa?
Totalmente. A maior parte dos virologistas considera que os vírus não são organismos vivos. São tão simples que não são seres vivos, a maior parte deles são uma concha de proteínas com material genético no interior, com o objetivo de irem de célula em célula e de organismo em organismo para assim se multiplicarem. As bactérias são seres vivos. O propósito de vida de um vírus é a reprodução. Têm algumas características vitais: podem evoluir, evoluem há milhões de anos. O vírus da varíola era muito inteligente a esconder-se do sistema imunitário do hospedeiro, o mesmo se pode dizer do vírus da herpes. O nosso corpo está exposto todos os dias a dezenas vírus, mas o sistema imunitário consegue destruí-los. Outros vírus descobriram maneiras de contornar a imunidade e é por isso que adoecemos. Aliás, tudo isto se relaciona com a razão que me levou, quando era miúdo, a ter interesse por virologia. São tão simples, são invisíveis para um microscópio comum, e no entanto podem matar milhões de seres humano ou uma baleia azul.

Qual é a origem dos vírus?
Boa pergunta. Não sabemos. Há especialistas em evolução dos vírus, não é o meu caso, e temos teorias segundo as quais os vírus são partes de células individuais e evoluíram até se tornarem vírus. O genoma de alguns vírus assemelha-se ao que vemos em algumas células, alguns têm peças do genoma humano e de outros seres vivos. Todos as espécies têm vírus que os podem infetar e os que afetam os humanos não terão sido os primeiros na história da evolução. Há quase uma década foi descoberto um conjunto de vírus que tinham infetado amibas e verificou-se que eram muito maiores do que qualquer outro vírus conhecido. São os pandoravírus e megavírus, visíveis através de um microscópio comum. A maior parte dos vírus tem 10, 15, 20 genes. Estes de que falo têm em alguns casos muito mais genes do que as próprias bactérias. Talvez estejam a meio caminho entre a célula de origem e os outros vírus que conhecemos, é uma hipótese.

Os coronavírus, que são estudados desde a década de 1970, já existiam desde quando?
Diria assim: talvez não tenham afetado os humanos durante 10 mil anos. A maior parte dos vírus chegou aos humanos através de outros animais. É o caso da varíola, do sarampo, da gripe. Evoluíram primeiro noutras espécies. Veja-se o HIV, o rei das teorias da conspiração. Há quem diga que foi criado por algum governo, que veio de outro planeta, etc.. São muitas as ideias tresloucadas. O que sabemos é que um cadáver da década de 1920, encontrado na década de 1980, tinha presente uma sequência genética semelhante à do HIV, mas mais próximo do HIV dos primatas, o SIV. É a prova de que o HIV não foi criado em laboratório. Não havia tecnologia suficiente nos anos 20 para criar um vírus artificialmente, só nos anos 80 isso se tornou possível. O HIV evoluiu naturalmente a partir do SIV.

Nesse sentido, rejeita a ideia, hoje muito difundida nas redes sociais, de que o novo coronavírus pode ter sido criado em laboratório.
É uma ideia ridícula. É a mesma narrativa conspirativa sobre o HIV. A China não criou este vírus através de engenharia genética, não há qualquer prova nesse sentido. Os coronavírus têm mutações frequentes, são um vírus do tipo RNA. Há os que têm genoma ADN e os que têm genoma RNA. Os vírus RNA sofrem mutações, é perfeitamente normal. O vírus da gripe também é RNA e também sofre mutações. Se a China quisesse, como se diz, criar uma arma biológica não o faria com um coronavírus. Há 20 outros vírus que funcionariam melhor para cumprir um tal objetivo de matar em massa.

Mas o famoso virologista francês Luc Montagnier, que esteve envolvido na descoberta do vírus da sida no início dos anos 80, disse há dias que o novo coronavírus foi criado em laboratório na China e por acidente infetou a população. Como comenta?
Tudo é possível, mas não há provas. As teorias da conspiração assentam precisamente na falta de provas, são ideias que surgem sem as necessárias provas. Ora, assim fácil, porque qualquer coisa é possível. O vírus até pode ter vindo de outro planeta, mas se não há provas, essa hipótese não tem qualquer credibilidade. Luc Montagnier é um dos virologistas mais importantes no mundo, mas só porque foi ele a fazer a afirmação não quer dizer que seja verdade. Há a possibilidade técnica de criar um vírus em laboratório? Claro que sim, não é complicado, os meus alunos conseguem aprender isso em três semanas. Penso que há sempre motivos económicos e políticos por detrás das teorias da conspiração, que aliás nos fazem perder tempo e dinheiro, porque depois há quem passe horas e horas a tentar demonstrar com factos essas teorias sem sentido.

Nobel francês Luc Montagnier causa polémica ao dizer que vírus da Covid-19 veio de laboratório chinês

Luc Montagnier disse mais: que estudou o genoma do novo coronavírus e encontrou sequências genéticas do HIV. Tanto quanto se sabe, esse alegado estudo não foi publicado ou revisto por pares [peer review]. Será possível?
Não seria possível de forma natural. Diferentes vírus não capturam o genoma de outros. Com bactérias pode acontecer, mas nos vírus não é provável que aconteça. Se existir uma sequência verdadeira do HIV no genoma do novo coronavírus, alguma coisa estranha se passa e aí é possível levantar a hipótese de que houve engenharia genética. Mas é como diz: se esse estudo não for revisto por pares, é uma irresponsabilidade. Posso incluir quaisquer dados científicos em qualquer estudo, mas tenho de me sujeitar ao processo de revisão por pares, que garante que outros especialistas puderam avaliar o conteúdo.

"Não conseguimos ter vacinas para todos os vírus, alguns, como o HIV, são resistentes, porque se adaptaram muito bem ou simplesmente porque o nosso sistema imunitário ignora a vacina. Se tudo correr bem, daqui a um ano ou um ano e meio teremos uma vacina para o coronavírus. É uma esperança, não é uma certeza".

Uma vacina contra o coronavírus é desejável? Quando se prevê que apareça?
Sei que o laboratório Sanofi Pasteur é um dos mais avançados neste momento, na busca de uma vacina. Situa-se precisamente na zona onde vivo, na Pensilvânia. Muitos dos meus alunos estão a trabalhar nas equipas que investigam a vacina, mas não tenho pormenores que possa dar. Se não estou em erro, a GlaxoSmithKline está a colaborar com a Sanofi Pasteur. Note-se que não conseguimos ter vacinas para todos os vírus, alguns, como o HIV, são resistentes, porque se adaptaram muito bem ou simplesmente porque o nosso sistema imunitário ignora a vacina. Se tudo correr bem, daqui a um ano ou um ano e meio teremos uma vacina para o coronavírus. É uma esperança, não é uma certeza.

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