Na véspera de partir de Berlim para Leipzig, o autor e produtor musical Kalaf Epalanga, de 41 anos, tem quase tudo a postos. Foi fazer o teste de Covid-19 (“por precaução”) e apanhar o correio a casa do vizinho (“é o sistema aqui, quando não nos apanham em casa”). Nas ruas já não são permitidas máscaras sociais, mas o ambiente está “bem tranquilo”.
A viver nesta cidade alemã desde o apogeu de Buraka Som Sistema – primeiro com a mulher, agora também com dois filhos, de dois e quatro anos – o luso-angolano é o curador da terceira edição do African Book Festival, um evento que reúne “a nata da literatura africana contemporânea”, mas que nunca tinha contado com autores de expressão portuguesa. “Fui à primeira edição, há quatro anos, e fiquei chocado. Não só quase não conheciam, como não estavam interessados em explorar”, conta, via Zoom, numa toada suave e calorosa. “Comecei a provocar os organizadores: ‘olhem que África não é só literatura anglófona e francófona.’” No segundo ano, a mesma coisa. “No meio daquelas provocações todas, acho que me ouviram.”
Cancelada a edição de 2020 por causa da pandemia e com muitas incógnitas a ameaçar a de 2021, decorre entre esta quinta e sexta-feira, a partir das oito da noite, uma pré-edição digital, com as presenças, entre outros, de José Eduardo Agualusa, Ondjaki, Telma Tvon e Yara Monteiro. Pretexto para falar de um racismo “quase perfeito”, que ele próprio não sabe como desmontar, dos heróis nacionais que têm sangue nas mãos, mas também do regresso de Buraka e de escritores que não têm vergonha de dançar.
O que vai acontecer por estes dias em Leipzig e Munique?
O tema do festival são os livros escritos a partir de canções. Nesta edição online vamos ter uma versão compacta – dois eventos de uma hora e meia – com aquilo que estava programado para três dias de festival. Sempre tive uma certa aversão a festivais literários clássicos. Os escritores ficam a pregar para a congregação. E quando pregamos para a congregação, normalmente tornamo-nos mais arrogantes. Fica pomposo. E não é divertido para quem está a ver. Além de que existe pouco diálogo entre as artes. Então quis criar um evento com uma componente cinematográfica e, depois, claro, a música, com as “after-parties”. Um escritor também dança, um escritor também gosta de se divertir.
Foi esse o critério de escolha para o festival?
Exatamente. Escritores que não tenham vergonha de dançar em público: “então, como é, se estiveres numa pista de dança ficas com o copo na mão ou vais lá para o meio mostrar o teu talento?” Claro que não foi só isso. E há ainda algumas boas ideias das edições anteriores que [se a edição presencial se concretizar] quis aproveitar, incluindo uma espécie de “speed dates” dos autores com o público.
Dos autores lusófonos menos conhecidos, destaca algum?
Acho incrível e sou muito fã da Telma Tvon, uma rapper romancista, e da Yara Monteiro, um nome pouco presente no circuito da literatura. E, claro, já não é novidade, a Djaimila Pereira de Almeida.
Porquê?
Primeiro, porque precisamos de mais mulheres na literatura em geral e ainda mais na literatura vinda das Áfricas. Depois, porque elas são as escritoras pop do momento. Sinto um “agora” urgente na literatura delas. E é bom lermo-nos no agora. Questões sobre género, sobre etnicidade, equidade salarial. Ao ler o Luanda, Lisboa, Paraíso (de Djaimilia Pereira de Almeida), aquela história é a minha história também.
Já disse que queria que 30 ou mais por cento dos escritores do festival fossem de expressão portuguesa. Uma provocação: vamos do oito ao 80? Não tem medo de ser acusado de nepotismo?
Não, e sabe porquê? Eu acredito em quotas. E muitas das vezes essas quotas prejudicam-me. Posso contar um episódio. Eu, como qualquer escritor, tento ser publicado noutras línguas. E sou muito ativo a abordar pessoas. Uma vez em Londres, estava eu a fazer o “pitch” [proposta] a uma editora e ela diz-me, “olha, o teu livro é maravilhoso, adoro o ‘setting’, a premissa. És africano e isso já é um ‘plus’. Mas se fosses mulher, a gente assinava agora, e se fosses mulher e gay a gente assinava este ano.” Se eu fosse ressabiado, podia revoltar-me. Mas acho que o mundo precisa de publicar mulheres negras e gay. Tenho mais a perder num mundo que não publique mulheres negras e gay do que a ganhar num mundo que publique o meu livro. Levo o mesmo princípio para a lusofonia. É estranho e discutível? Claro que sim. Mas no final do dia acho que ficamos melhor assim.
Numa entrevista ao blogue literário Brittle Paper, quando lhe pediram para comentar o que tinha representado esta última década para a literatura africana lusófona, falou em crises políticas e financeiras que tinham levado à exposição de “enormes deficiências”. O que quis dizer com isto?
O facto de em África não termos agentes locais nem circuitos de consumo de literatura (livrarias, encontros, festivais e tudo aquilo que representa um ecossistema literário saudável) faz com que escritores vejam a Europa como única porta de saída para a sua literatura. Na Nigéria, por exemplo, o ecossistema existe, é saudável, os escritores não precisam de ir para Inglaterra para se lançarem e quando saltam para o mercado internacional já estão completamente definidos. O facto de editarmos primeiramente em Portugal faz com que os nossos livros tenham de obedecer a certos parâmetros. E o meu editor [Zeferino Coelho, da Caminho] é muito generoso. Eu até lhe peço que intervenha mais.
O que está a dizer é que o facto de não haver um mercado editorial saudável nos países africanos de expressão portuguesa condiciona as vozes literárias desses países?
Condiciona tudo. Condiciona as histórias. E nem é a questão do mercado; é o ecossistema. O vender livros já lá vamos. Para publicar lá, tem de se fazer das tripas coração. E esta pandemia veio agravar isso. Fez com que as pessoas deixassem de circular. Antes as pessoas ainda conseguiam vir a Lisboa e procurar saídas.
É impossível para um escritor africano de expressão portuguesa ter uma carreira literária se não vier bater à porta a Portugal ou, se quiser, ao Brasil?
É muito difícil. Por causa da falta desse ecossistema.
Com esta curadoria pretende fazer essa ponte, entre o mercado internacional e os países africanos de expressão portuguesa?
Não tenho ilusões. Esta curadoria está a acontecer em Berlim e essencialmente vai beneficiar os agentes e editores desse circuito. Se algum dos lusófonos conseguir um contrato à beira do festival vou ficar super feliz, mas não acredito que vão beneficiar agentes ou editoras africanas. O melhor que eu posso fazer é falar sobre estas coisas publicamente e incentivar editores, agentes, produtores de festivais a começar a chegar-se à frente a partir daqueles locais: Moçambique, Cabo Verde, Guiné… As pessoas dizem, ‘era bom termos o próximo Luandino Vieira, o próximo Pepetela.’ Acho que tão importante como isso é ter o próximo Zeferino Coelho.
Na mesma entrevista ao Brittle Paper, diz que a forma como em Portugal se debate a questão da raça se relaciona com a forma como os portugueses entendem o seu lugar na história: “O Vasco da Gama é considerado um herói e Os Lusíadas de Camões são um tesouro nacional. Um país que considera estes aspetos como os mais preciosos e definidores da sua identidade nacional vai sem dúvida resistir a aceitar que os seus heróis têm sangue nas mãos.” Os portugueses têm uma versão benévola e racista da sua história?
Durante muito tempo, a única coisa que Portugal tinha era a sua história. Na viragem para a democracia, importou-se um modelo do Estado Novo sem se pensar bem nas consequências. É legítimo perguntar-me “porque é que eu devo diminuir os meus heróis, se toda a minha construção social e até intelectual tem esses pilares?”. Eu digo “sim, é maravilhoso, tem todo o direito de a ter, mas tenha atenção que os feitos dessas figuras têm um revés. Nessa construção imperialista, expansionista, universalista, há também os que ficaram sem identidade, os que foram desprovidos da sua língua e da sua religião, das suas riquezas inclusive. Então, por uma questão de justiça – e se queremos construir um estado justo e generoso e que abrace toda a gente – é nossa responsabilidade atacar a discussão também por esse lado. Não estou a dizer, “vamos destruir a estátua do Vasco da Gama”. Mas convém pôr ali uma nota de rodapé: milhões de mortos, milhões de escravizados. Depois, quem estiver a ler poderá fazer o seu próprio juízo. O discurso existente só tem um prisma. E é um prisma que nos desumaniza.
Quem é o “nós” nessa frase? Desumaniza quem?
Todas as pessoas não-brancas. Todas as minorias que sofreram com esse projeto. Um projeto que ainda não terminou. Peço-lhe desde já desculpa, por ser mulher, mas tenho muitas vezes a audácia de traçar um paralelismo entre a luta anti-racista e luta feminista: o direito ao voto, o direito ao trabalho, o direito à saúde. Para nós que vivemos na nossa bolha, em que somos todos muito inteligentes e virados para a frente, parece que é uma conquista com séculos. Mas basta encostar o ouvido na parede do apartamento ao lado para ouvir uma mulher a ser violentamente espancada. E muitas das vezes acaba em tragédia. Esses indivíduos vão a tribunal e são absolvidos. Porquê? Porque existe uma tradição absurda: “houve provocação?”, “não houve?” A maneira como o caso de violência doméstica no casal Manuel Maria Carrilho e Bárbara Guimarães foi tratada pelos média foi asquerosa. Ao ponto de eu ter vergonha de me considerar concidadão das pessoas que destrataram aquela pobre mulher, independentemente de gostarem ou não dela.
Como se relaciona com o racismo?
O racismo que existe neste momento é uma construção quase perfeita porque continua a oprimir sem precisarmos sequer de pôr o homem branco naquele território. Ainda estou a tentar perceber como desmontar essa construção. Da mesma forma que não sei como desmontar o machismo. Porque, querendo ou não, eu beneficio dele, mesmo sendo um homem negro. A partir do momento em que conquisto um lugar junto dos homens hetero brancos, não tenho mais nada com que me preocupar, porque fui aceite no clube. Já uma mulher tem de estar sempre a provar que tem direito àquele lugar. É assim que eu vejo o racismo.
É por isso que diz que precisamos de uma terapia profunda enquanto nação?
Temos de deixar de depositar todo o nosso valor cultural nesses indivíduos. Já não nos servem. Não vamos apagar a história, mas vamos construir uma coisa que seja um reflexo do que queremos ser. No tempo dos Descobrimentos o dinheiro que existia ia todo para uma elite. Mesmo antes do 25 de Abril, o número de analfabetos em Portugal era uma coisa de terceiro mundo. Hoje estamos muito melhor. E não precisámos que o D. Sebastião viesse salvar-nos. Fomos nós que fizemos isso.
É diferente ser africano em Lisboa e em Berlim?
Eu tenho a vantagem, que é uma desvantagem, de não falar a língua. A comunidade africana aqui é muito pequena. E existe um nível educacional muito elevado. Não estou a falar de cursos superiores; estou a falar de PhDs, ou seja, “doutores”. Quando se discute questões africanas aqui, como negritude, etnicidade, interseccionalidade, o discurso já está mais depurado. Aqui os principais desafios já são questões que desafiam mais a máquina opressiva. Sem se cair na ideia de que se está a desafiar a identidade alemã ou…
Serão comunidades comparáveis? Nas suas palavras, a comunidade em Berlim, é muito mais pequena e diferenciada.
Se a gente olhar para o nível da produção cultural em Portugal com origem africana – já há também um nível de produção intelectual muito substancial – vemos que há pouco investimento. A cultura em Portugal não segrega, mas no plano das políticas públicas para grupos específicos a coisa já pia diferente. Estas últimas eleições também nos ajudaram a refletir sobre isso. Entre o meu círculo de amigos, houve conversas interessantes sobre o papel do voto dentro dessas comunidades. Para a comunidade africana as políticas autárquicas são muito mais importantes do que todas as outras.
Votou nas presidenciais?
Desde que me tornei português, há seis anos, que voto sempre. Votei no consulado. E acho que devíamos ter a possibilidade de votar por correspondência.
Surpreenderam-no os resultados, nomeadamente do Chega?
De todo. Para mim está tudo ligado. Quando a gente perde demasiado tempo a olhar para as glórias do passado, vai dar sempre espaço a que apareçam “Venturas”. Quando a gente fica a requentar o mesmo discurso, dizer que Portugal só existe enquanto fruto da grandiosidade que se teve, descartando o sangue que se derramou para que essa grandiosidade se fixasse, hão-de surgir sempre “Chegas”.
A Madonna quando esteve a viver em Portugal trabalhou com o Dino d’Santiago [Kalaf é um dos produtores dos discos de Santiago] e aquilo que a parece ter seduzido mais em Lisboa foram as sonoridades africanas. Parece-lhe que esse pode ser um exemplo da tal riqueza cultural?
Essa riqueza é óbvia para todos os que chegam a Lisboa. [levanta-se e vai buscar à estante o livro Lisboa, na Cidade Negra]. Este é um livro do Jean Yves Laude, um francês que no início dos anos 2000 ia para Cabo Verde e fez escala em Lisboa. E ficou impressionado com o que viu. Eu quando estava em Angola, ouvia falar do Zé da Guiné. E não havia Internet. A dada altura, todos os artistas africanos iam publicar discos na Vidisco. Salvou a carreira de muitos, inclusive do Bonga, que todos concordam que é o epíteto máximo da expressão cultural angolana. Isso é Lisboa. Para mim, a Madonna vir e pegar é completamente irrelevante. Ela não fez nada que não soubéssemos que já existia.
Referi-a como um exemplo de reconhecimento, porque referiu que a cultura africana em Portugal não era muito acarinhada pelo “establishment”, pelas instituições.
Porque as pessoas acham que existem vários “Portugais”. O comum português acha que é diferente dos portugueses que vivem na Damaia. Como se só fossemos Portugal plural quando a seleção entra em campo e nos faz felizes. A Mariza é de origem moçambicana e a Ana Moura é filha de angolanos, alguém tem dúvidas de que são as duas fado, a alma portuguesa? A minha grande surpresa quando cheguei a Portugal foi ver que os afrodescendentes eram tão empurrados para margem que de facto sentiam que eram de outro lugar. Nos EUA houve uma reorganização social muito grande no momento em que os afroamericanos disseram que eram americanos. A definição de portugalidade é muito mais abrangente e complexa do que a que vem livros. A tendência do Portugal que vem nos livros é a de formar extremos.
Neste momento o Kalaf sente-se o quê: português, angolano, um pouco berlinense…?
Cada vez mais angolano. Já estou nos meus 40, sou pai, nómada inveterado e há uma coisa que começa a surgir e que é horrível, que é pensar em legado. E aquilo que quero transmitir é a minha ideia de Angola. O meu namoro com Portugal culminou no adquirir da nacionalidade portuguesa. E sinto que posso contribuir para a formação do Portugal do futuro, que foi o Portugal que eu vi quando me juntei ao Branko, ao Riot, ao Andro, à Blaya, à Pongolove e a todas as pessoas que fizeram Buraka [Som Sistema].
Buraka representou um Portugal do futuro?
Ali por volta de 2010, nos concertos em Nova Iorque, Londres, Paris, via bandeiras portuguesas e Bilhetes de Identidade no ar. Eram os portugueses que saíram de Portugal em 2008: “Eu sou aquilo que está naquele palco.” Deve ser a mesma coisa que ter visto o Éder a marcar o golo no Europeu. E esses momentos acontecem a toda a hora. Ao fazer da informação um circo, esquecemo-nos que somos melhores quando estamos juntos. Eu sei que as divisões vendem. Também sou ficcionista. Dá jeito um antagonista. Mas saindo da ressaca das eleições nos EUA e caindo na ressaca das presidenciais em Portugal, tudo o que vi naquelas semanas foi noticiários. Não precisei de Netflix. Porque os telejornais são feitos para entreter. Depois tem uma consequência, como estamos a ver na Holanda, que é os extremos chegarem a um ponto de rutura.
E falando de Buraka, é mesmo um hiato? Podemos esperar um regresso?
É um hiato. É difícil estar no nível em que estávamos e haver espaço para outras coisas nas nossas vidas. Não dá para ambicionar uma vida paralela e querer dominação mundial. Buraka aconteceu num momento em que todos tínhamos projetos paralelos que tivemos de congelar. Depois, chegou um momento de pegar nessas pontas soltas. Não sei de que forma, mas haverá um regresso com certeza.
Tem saudades?
Nesse momento, não. Tenho livros para escrever. Estou a fazer uma coleção de contos, muito lentamente, também porque a pandemia me deixa na neura, sem saber bem para onde me virar. Talvez vá publicar crónicas no Brasil, o país da crónica. E não quero perder este tempo com os meus filhos. Estes são os momentos da paternidade que acho que valem a pena. Acho que nos ensinam eles mais a nós, do que nós a eles.