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Karen Armstrong: “Não estamos a levar os avisos da natureza a sério”

"Natureza Sagrada” é o livro que trata da relação de diferentes civilizações com o mundo natural. Entrevistámos a autora, Karen Armstrong, que nos diz que o problema é simples: esquecemo-nos de tudo.

No início de Natureza Sagrada, a escritora Karen Armstrong fala de uma experiência que teve quando tinha acabado de entrar num convento de freiras. Se já leu algum artigo sobre este livro, é possível que tenha ouvido falar desta história, porque tem algo de inacreditável e de transformador. Durante a crise dos misseis de Cuba, Karen foi alertada do que estava a acontecer, mas esqueceram-se de avisar que a crise tinha terminado. Por isso, passaram algumas semanas, fechadas num convento, a pensar que o mundo poderia acabar a qualquer momento. Há uma sensação de terror que se instala aí, mas também se ganha músculo para relativizar tudo o que vem depois.

Este detalhe importa porque Karen Armstrong não relativiza as alterações climáticas, o nosso papel e a forma como nos relacionamos com o mundo natural. Natureza Sagrada é um livro espantoso porque fala da natureza sem um olhar científico, fala da relação religiosa e espiritual de diferentes culturas, ao longo dos tempos, com a natureza sem características de conversão. Ou seja, Karen Armstrong não nos está a vender um modo de vida.

Viveu a ameaça da guerra nuclear, o medo desse tempo. E reconhece que o perigo agora é maior, mas não vê as pessoas preocupadas ou assustadas. Natureza Sagrada é, portanto, um alerta para o facto de estarmos a atingir um ponto sem retorno e, para a grande maioria da população, isso continuar a não ser preocupação. Aliás: em muitos casos nem sequer é considerado um facto. Parte da razão tem a ver com a forma como nos desligámos do mundo natural, defende a autora. Por isso, ao longo do livro, Karen Armstrong dá sugestões de como criar essa ligação com pequenos passos. Fá-lo com uma certa frieza, a de quem tem a noção de que se calhar já é tarde de mais. Mas, tal como a própria diz, se todos fizermos pequenas coisas, talvez tudo mude.

A capa da edição portuguesa de "Natureza Sagrada", de Karen Armstrong

Muitos livros sobre natureza ou alterações climáticas têm uma visão muito científica. O seu, até pela sua experiência vivida, tem uma visão muito pessoal. Sente que este lado sagrado da natureza é subvalorizado ou até esquecido?
Sim, no mundo ocidental moderno desenvolvemos uma visão completamente científica em relação à natureza, que contrasta com a visão mais natural na maior parte das culturas do mundo. Tradicionalmente, era visto como algo sagrado – na Índia, na China, em África e nas Américas – porque as pessoas percebiam que as suas vidas e o bem-estar do mundo dependiam do bem-estar da natureza. As pessoas cultivavam um sentimento de admiração e reverência pelo mundo natural, celebravam-no, quer ritualmente ou em contemplações privadas, como algo divino. Muitas dessas práticas são descritas no meu livro. No mundo ocidental moderno, olhamos para a natureza apenas como um recurso. O resultado tem sido desastroso. Contudo, discordo que seja uma visão muito “pessoal”. A visão tradicional de celebrar e respeitar a natureza que descrevo, não é pessoal ou individualista. Era algo que era cultivado publicamente ou em rituais, em cerimónias, em festivais que inspiravam as pessoas a participar e em desenvolver hábitos de respeito e gratidão para com a natureza. Porque estavam conscientes de que o bem-estar na natureza influenciava o seu próprio bem-estar. Hoje não pensamos sobre isso. A natureza é um pano de fundo nas nossas vidas, algo que usamos para a nossa conveniência.

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Ainda vamos a tempo de nos voltarmos a relacionar com a natureza?
Ainda há tempo, mas só conseguimos salvar o mundo se trabalharmos para a mudança, não só na forma como nos comportamos, mas também como pensamos.

Com isso quer dizer que, atualmente, pensamos e agimos de uma forma completamente diferente?
Não estamos a levar os avisos a sério. Durante a pandemia, estávamos impossibilitados de voar pelo mundo. Assim que as restrições foram levantadas, as pessoas encheram os aeroportos, mesmo que tenhamos sido avisadas, vezes e vezes sem conta, que isso era mau para o planeta. Recentemente, fomos avisados que atingimos um limite, contudo, as emissões continuam a aumentar. Será tarde de mais. Reforço, continuamos a esconder esta possível catástrofe no fundo da gaveta.

"As primeiras civilizações celebravam a natureza nos templos, festivais, na poesia e nos cânticos. Desenvolveram um respeito pela natureza porque sabiam que a sua vida dependia disso. O que chamamos de 'Deus' não era um ser distante confinado nos céus; as pessoas sabiam que cada corrente, brisa, flor ou pássaro estavam imbuídos com o divino."

O que podemos fazer, então?
Temos de ouvir o que os cientistas nos dizem. Temos de parar de voar para todo o lado sem impunidade; de usar os nossos carros para todo o lado quando poderíamos estar a usar transportes públicos; temos de ensinar às nossas crianças a importarem-se e a cuidar da natureza. Não podemos continuar a destruir as nossas praias deixando para trás toneladas e toneladas de lixo. Cresci no anos 1950 e 1960 com a iminência de uma guerra nuclear. Era muito assustador. As alterações climáticas são igualmente assustadoras. E não estamos suficientemente assustados.

No final dos capítulos sugere algumas boas práticas.
Sim, são sugestões para os leitores introduzirem nas suas vidas, para que a natureza deixe de ser uma realidade distante. Uma delas é o que os chineses chamam de “Sentado Quieto”. Podes sentar-te, calmamente, no teu jardim, ou no parque, desligar o telefone e abrires-te para a natureza: olhares as árvores, os pássaros, os insetos, ou a forma como a luz vai mudando a cada momento. Dez minutos, todos os dias e, depois, quando fizeres disto um hábito, passa para quinze, vinte minutos. Também há uma oração, que é atribuída ao Buda, que é muito pequena, clara e simples, sem qualquer menção a Deus: apenas te pede para te esqueceres de ti mesmo enquanto te focas nas pessoas e nas coisas à tua volta. Feita uma vez por dia – pode ser no autocarro, enquanto visitas lojas ou mesmo quando estás a regressar a casa – irá tornar-te mais consciente da importância do mundo que existe à tua volta.

Ao ler o livro, fiquei com a impressão de que uma das conclusões a que chega é que diferentes religiões e culturas chegaram às mesmas conclusões em relação à Natureza. Estou a pensar bem ou a ser simplista?
Sim, as pessoas chegaram às mesmas conclusões nos maiores países do mundo, porque perceberam o que era exigido. Perceberam que se não cultivassem a terra corretamente, as culturas não iriam crescer e não iria sobreviver. Se poluíssem a água, iriam morrer. Isto é um facto. As primeiras civilizações celebravam a natureza nos templos, festivais, na poesia e nos cânticos. Desenvolveram um respeito pela natureza porque sabiam que a sua vida dependia disso. O que chamamos de “Deus” não era um ser distante confinado nos céus; as pessoas sabiam que cada corrente, brisa, flor ou pássaro estavam imbuídos com o divino. Compunham poemas, textos sagrados, de admiração ao mundo natural, celebrando o facto de que as estações do ano aconteciam na ordem natural, honrando cada árvore, flor ou passado. As populações da Índia, China e África chegaram às mesmas conclusões porque perceberam que o mundo natural era essencial para as suas vidas. Sem ele, os humanos não sobreviveriam. Temos de sentir, pensar, fazer o mesmo.

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"Quando entras no teu carro, pergunta se não poderias apanhar o autocarro. E tem atenção aos falhanços, porque vais falhar, todos os dias"

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Porque é que, como civilização, nos estamos a afastar mais e mais dessas conclusões?
Para a maior parte de nós, que vive em ambientes urbanos, o mundo natural é muito distante. Vamos ao supermercado comprar a nossa comida e pensamos pouco em como é cultivada e produzida. Não damos à natureza, ou ao clima, tempo para pensamentos mais profundos, ou qualquer consideração. Nem olhamos como deve ser para a natureza. Deve ser mais comum ver pessoas a tirarem uma fotografia num sítio bonito, do que ver alguém a sentar-se, observar-se e maravilhar-se com o que vê e ouve. Preferem a realidade virtual à coisa em si. Por isso, temos de recuperar a nossa ligação com o mundo normal, se não o fizermos, estamos a deixar a próxima geração com um problema alarmante. Nada disto irá melhorar se não mudarmos a nossa forma de pensar e de viver. E é correto pensar que estamos a afastar-nos mais e mais do mundo natural. Porque é isso mesmo que estamos a fazer. E se isso nos faz sentir desconfortáveis, é bom, porque força-nos, dia após dia, a mudar a forma como pensamos e agimos em relação à natureza.

Acha que a tecnologia substitui o “Sentado Quieto”?
É verdade que nos estamos a afastar da forma como nos relacionamos com a natureza e que temos de fazer esforços diários para reconquistar essa relação. Tem de ser um passo de cada vez. Foi isso que tentei fazer no livro, como referi há pouco, com dicas no final de cada capítulo. Postas em prática, podem mudar a vida e podem ajudar a lidar com as alterações climáticas. Mas também sugiro que nos sintamos desconfortáveis de tempos a tempos, que o façamos deliberadamente. Quando entras no teu carro, pergunta se não poderias apanhar o autocarro. E tem atenção aos falhanços, porque vais falhar, todos os dias. Ao reparar neles, estarás mais consciente de como mudar.

"Estou consciente de que as cidades estão poluídas e que isso é muito desconfortável e perigoso. Mas sei que devo experienciar esse desconforto e encontrar maneiras de mudar a situação. Também sei que se vivesse numa aldeia bonita, no campo, podia fazer de conta que o problema ambiental não existe. Isso pode-me deixar mais confortável, mas seria errado."

Falo por mim, a cada dia que passa sinto-me mais ansioso com as alterações climáticas. Sei que não estou sozinho, conheço muita gente assim. Parte da ansiedade vem de não se ver qualquer mudança positiva, significativa. Há uma sensação de impotência. Vivo numa cidade. Acha que parte dessa ansiedade tem a ver com a forma como me relaciono com a natureza?
É bom sentir ansiedade, porque estamos com um grave problema. Se escondermos a ansiedade, estamos numa negação séria e provavelmente não faremos nada para reverter a crise. Mas não é verdade que não temos poder. Se mudarmos a forma como pensamos e agimos, podemos ainda mudar o mundo. Ainda há tempo. Cada um de nós só tem de fazer uma resolução e comportar-se de maneira diferente, tratar a natureza com o respeito que merece e tentar passar essa mensagem aos outros. Também vivo numa cidade – mesmo no centro de Londres. E estou consciente de que as cidades estão poluídas e que isso é muito desconfortável e perigoso. Mas sei que devo experienciar esse desconforto e encontrar maneiras de mudar a situação. Também sei que se vivesse numa aldeia bonita, no campo, podia fazer de conta que o problema ambiental não existe. Isso pode-me deixar mais confortável, mas seria errado.

Tem visto mudanças positivas nos últimos tempos?
Não. Inicialmente, estava radiante com a forma como os líderes mundiais se reuniram e prometeram baixar as emissões. E agora chegámos a esse nível, as reuniões sobre as alterações climáticas fizeram muitas promessas, mas não fizeram algo que se veja para as fazer acontecer.

Tenho de lhe perguntar: como foi viver aquele momento da Crise dos mísseis de Cuba?
Foi há muito tempo, eu tinha apenas 17 anos e pensei que o mundo iria implodir. Estava aterrorizada. Tinha acabado de entrar no convento, por isso, não sabíamos de nada do que se passava no mundo, aquilo não era exceção. Mas os nossos superiores esqueceram-se de dizer que a crise tinha acabado, por isso passámos três semanas a pensar que estávamos em perigo. Contudo, durante esse tempo, mesmo sem saber, o perigo parecia dissipar-se. Fazíamos as nossas tarefas diárias, em silêncio, com a sensação de que o mundo continuava a existir. De certa forma, o Armagedão perdeu algum do seu terror.

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