João de Almeida Dias, em Budapeste
Torpikai está confusa. No intervalo de cada garfada de arroz branco com açafrão vermelho que dá ao seu filho de 3 anos, esta mulher afegã com menos de 30 anos olha em volta. Enquanto o filho mastiga, fixa o olhar nas colunas da estação ferroviária de Keleti, em Budapeste. São altas, como um prédio de três andares, e por cima delas ainda há uma abóbada. A cada pilar, uma bandeira da Hungria.
Torpikai já está a andar há três meses. Em junho saiu do Afeganistão com o marido e com filho pelos braços por ter a certeza que a vida já não era segura. Tanto que Torpikai não é o seu nome verdadeiro, mas sim um que nos pede que usemos. “Quem está pior é o meu marido”, explica, apontado para ele, sentado num banco da estação. “Esteve perto de morrer muitas vezes. Havia explosões na rua, atentados, tudo. Chegou a apanhar com estilhaços”, conta a a mulher do seu marido, que não fala inglês. “Chegou a uma altura em que tomámos a decisão de fugir do país porque não era seguro. Não queríamos criar o nosso filho correndo o risco de o perdermos a qualquer momento.”
Em três meses, entre viagens a pé, de autocarro e de comboio, fizeram cerca de 6 mil quilómetros. Do Afeganistão passaram para o Irão, depois foram para a Turquia, onde ficaram mais tempo. Seguiu-se a Bulgária, que atravessaram pela floresta, à revelia da guarda que vigia aquela entrada para a Europa. “Estivemos quatro dias escondidos numa floresta na Bulgária para ninguém nos ver. Foi horrível, terrível. Durante o dia fazia muito calor e as noites eram frias. O nosso filho chorava a toda a hora. Durante a noite eu e o meu marido tapávamo-lo com uma manta e ficávamos nós ao frio.”
Da Bulgária, a bordo de um comboio, chegaram à Sérvia. Chegados à fronteira com a Hungria, depararam-se com a vedação de arame farpado mandada erguer pelo governo de Viktor Orbán. Pegaram na manta que aqueceu o rapaz de três anos naquela floresta búlgara e puseram-na por cima do metal cortante. Passou primeiro o marido, que, do lado húngaro, estendeu as mãos para apanhar o filho dos braços de Torpikai. E, depois, passou ela. Estavam, enfim, no espaço Schengen e mais perto do destino desejado: a Alemanha.
Torpikai está confusa porque, pouco tempo depois de ter chegado a Budapeste num comboio, uma mulher húngara foi ter com ela a falar-lhe num inglês rápido, com picos altos de sotaque britânico alternados com outros de pronúncia húngara. Era Ildiko Czeczon, uma secretária de 46 anos.
— Vocês querem ir para onde?, perguntou-lhes.
— Para a Alemanha!, respondeu Torpikai, a única da família que fala inglês.
— Então não é aqui que vocês têm de estar, esses comboios são noutra estação! É na Keleti! Vamos para lá, eu ajudo-vos.
Assim, Ildiko pegou nesta família de três, levou-os até ao seu carro e conduziu-os até à estação certa. Keleti. Este, em português.
Ildiko começou a ajudar os refugiados que chegam à capital húngara a meio do mês passado. “Eu gostava de te poder dizer que tive um grande momento de catarse, daqueles quase inexplicáveis, para ter começado a ajudar esta gente que chega aqui. Mas não foi assim. Simplesmente achei que tinha de ajudar. E cá estou.”
As conversas de escritório
Os dias começam cedo para Ildiko. Entra às 07h00 no escritório e sai de lá às 14h00. Depois do trabalho, repete o mesmo gesto que fez com Torpikai e a sua família — encaminha-os como pode para “o sítio certo”. “Quando digo sítio certo não quero dizer que é a Keleti. Como as coisas são cá na Hungria, o sítio certo é mesmo fora deste país.”
Não é que ela ache que isso representa algo de bom. Mas é “a coisa certa a fazer”. “Os húngaros são um povo muito fechado, a maior parte das pessoas está pouco habituada à ideia de partilhar um espaço, uma cidade, um autocarro, seja o que for, com um estrangeiro”, conta-nos. “Eu sou diferente, porque tive a oportunidade de viver fora e de trabalhar com estrangeiros”, explica. Foi babysitter em Londres e trabalhou numa empresa de importações e exportações que lidava com empresas da Tailândia e da Malásia. “Nem toda a gente teve as mesmas experiências que eu tive. E, muitas delas, aliadas com tantas outras coisas que agora levaria um montão de tempo a explicar, levam a que elas sejam… xenófobas, sim, é essa a palavra.”
Agora, no trabalho que tem em part-time enquanto secretária numa empresa de Budapeste, faz para não falar da crise dos refugiados como quem evita passar por um campo de minas. De todos os colegas, apenas um sabe que Ildiko dedica o seu horário pós-laboral a ajudar refugiados. “O resto é melhor que não o saibam.” Já foram várias as vezes que ouviu comentários negativos aos refugiados que entram na Hungria, tão depressa quanto querem sair dela. “As conversas são sempre a mesma coisa”, diz, falando dos almoços em que cada um come os restos requentados do jantar do dia anterior num tupperware.
“Ora dizem que eles são muçulmanos e que por isso não respeitam as mulheres, ora chamam-nos de porcos, porque cheiram mal… A maior parte acha que eles são terroristas. E se não forem terroristas, gostam de terroristas, e isso vai dar ao mesmo. E até há um tipo que tem a teoria de que eles são pagos pelos americanos. Diz que assim é uma maneira de eles darem cabo da economia da Europa e assim os Estados Unidos saem a ganhar disto tudo.”
Por isso, prefere guardar segredo de que é voluntária da Migration Aid.
“Isto pode parecer estranho, mas o que eu começo a sentir que há na Hungria é o mesmo comportamento que havia noutros tempos, na altura do comunismo”, explica, fazendo uma longa espera para pensar. “Naquela altura, quem tivesse uma opinião diferente das linhas do poder, ficava calado. A maneira mais prudente de viver era pensar antes de falar. E eu agora dou por mim a fazer o mesmo no tema dos refugiados, a pensar que é melhor estar calada à hora de almoço, por exemplo. Mas, depois, venho cá ajudar como posso. É a minha redenção.”
Enquanto Ildiko fala, o filho de Torpikai pára de comer. Sobrou ainda algum arroz na caixa, que a mãe guarda cuidadosamente dentro de um saco de plástico. São 16h55, falta uma hora certa para esta família afegã partir de Budapeste. O comboio para o qual compraram bilhete vai até à Viena — mas as ordens que têm são para sair em Győr, no lado húngaro da fronteira, a partir de onde terão de fazer o resto do caminho de outra forma. Como? “Não sabemos ainda”, admite.
Torpikai precisa de dormir e Ildiko tem de se ir embora. Por iniciativa da húngara, despedem-se com um abraço apertado. “Espero que te tratem bem na Áustria, na Alemanha, ou noutra parte qualquer da Europa! Boa sorte!”
Torpikai agradece-lhe, tímida, enquanto ajusta o véu azul que Ildiko desmanchou na despedida.
“Um amor de verão”
Não é a única despedida na Keleti. Afinal de contas, estamos numa estação de comboios. Um pouco mais à frente, está Edit, uma rapariga de 20 e poucos anos, romena, que vive em Budapeste. Sozinha, tem o corpo encostado às grades que separam a zona central do cais de embarque dos comboios. Tem o olhar fixo na parte de trás do comboio das 17h05 que também vai para Győr. E é de lá, a partir de uma porta de ferro com uma janela de vidro, que o seu olhar é devolvido por um rapaz sírio, que lhe sopra beijos de forma teatral. O flirt prolonga-se durante minutos, com ele totalmente encostado ao vidro. Faz-se entender por gestos. A sua vontade era descer ao cais de embarque. Edit responde-lhe com as mãos que, se falassem, teriam dito “Então anda!”.
Assim que o rapaz desce, encosta-se ao outro lado da grade e lança as mãos em torno do pescoço de Edit, beijando-o ao mesmo tempo que ela lhe amacia o cabelo. Apesar de não se beijaram na boa, as carícias que trocam são intensas e prolongadas. De vez em quando param para falar, a um volume condizente com a intimidade que partilham.
Até que o comboio começa a andar. O rapaz descola-se-lhe do pescoço de forma rápida, mas também a custo, e corre em direção à carruagem. O maquinista, que deve ter reparado que alguém tentava subir a bordo já fora de tempo, travou o veículo a fundo, fazendo os freios chiar. Por momentos, os polícias que estão junto da grade sobressaltam-se e correm em direção ao rapaz. “No, no, no, no! Okay, okay, no problem!“, diz-lhes o sírio, pedindo-lhes calma. Os homens de uniforme, alguns com mais de 1,90m, cedem.
Por fim, o rapaz entra. E, em vez de se sentar, vai imediatamente para as traseiras do comboio acenar a Edit, que lhe responde de igual forma.
“Conhecemos-nos aqui na estação”, conta-nos depois da despedida. “Ele chegou cá há algumas semanas e os nossos caminhos cruzaram-se.”
Perguntamos-lhe como é que uma romena emigrada em Budapeste calha em enamorar-se de um refugiado sírio que está em trânsito para um país onde acreditará que está a salvo da guerra. Edit, um pouco envergonhada, prefere não adiantar muito. “As coisas são como são. Conhecemo-nos e gostámos um do outro. Foi um amor de verão.”