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A afirmação, amiúde repetida, de que Krzysztof Penderecki foi o mais famoso compositor polaco dos séculos XX/XXI não dá ideia da sua dimensão: ele foi, na verdade, um dos maiores compositores do nosso tempo. Destacou-se na década de 1960 pela sua música audaciosa, angustiante e dilacerada, que foi aclamada pela crítica e pelo público mais vanguardistas, mas em meados da década seguinte iniciou um progressivo regresso à tradição, que levou a que a mesma crítica e público vissem na sua nova linguagem, com laivos neo-românticos, uma cedência ao gosto conservador e até uma traição, uma impressão que terá sido reforçada por Penderecki se ter tornado num compositor “do sistema”, recebendo encomendas de importantes instituições e sendo agraciado com títulos, prémios e doutoramentos honoris causa um pouco por todo o mundo (incluindo o Prémio Príncipe das Astúrias em 2001), em contraste com a obscuridade a que são votados, em geral, os compositores nossos contemporâneos desde meados do século XX.

Contudo, a adopção de um registo mais “conservador” e o reconhecimento institucional não significam que Penderecki enveredou pelo fabrico de música retrógrada, amável e decorativa ou das insípidas tisanas hoje comercializadas sob os rótulos “new classical” ou “post-classical”. A sua música nunca deixou de ser tensa e inquieta e os temas que o inspiraram e os libretos que musicou têm, frequentemente, raízes nos momentos mais negros da história da humanidade. Uma vez que atravessamos hoje um deles, a panorâmica que se segue da prolífica produção de Penderecki (que inclui oito sinfonias, uma dúzia de concertos, quatro óperas e grande número de peças orquestrais, corais e coral-sinfónicas) dá relevo às obras com esse pendor.

Primeiros passos

Tendo nascido na Polónia em 1933, Krzysztof Penderecki (pronuncia-se “kchichtof pendérétski”) dificilmente poderia ter tido uma juventude idílica: ainda não tinha feito seis anos quando as tropas nazis invadiram o seu país e a família de classe média-alta, com raízes arménias (pelo lado paterno) e germânicas (pelo lado materno) e tradições artísticas (música e pintura), foi forçada a deixar a sua casa, tendo-lhe sido designada outra que pertencera a uma família judaica.

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Os estudos musicais de Penderecki foram realizados entre 1955 e 1958 na Escola Superior Estatal de Música (hoje Academia de Música) de Cracóvia (Kraków), instituição a que ficaria ligado durante boa parte da vida, como professor, como conferencista e, entre 1972 e 1987, como reitor.

Academia de Música) de Cracóvia

Fazendo a Polónia parte do Bloco Soviético, os seus artistas e criadores estavam obrigados a seguir os ditames do realismo socialista, mas como o país tinha vínculos culturais mais fortes com a Europa Ocidental do que a URSS, na segunda metade da década de 1950, após a denúncia do stalinismo e a criação, em Varsóvia, em 1956, do Festival Internacional de Outono de Música Contemporânea, começou a ganhar forma um grupo de jovens compositores polacos fascinados pelas inovações vanguardistas vindas do Ocidente.

Penderecki aderiu a esta tendência e os quatro Psalmy Dawida (Salmos de David), a sua primeira obra de relevo, composta em 1958, foi distinguida no ano seguinte com três prémios da União dos Compositores Polacos.

[Salmo XXX (“Bede cie wielbil panie”) dos Psalmy Dawida, pelo Coro Filarmónico de Varsóvia, com direcção do compositor:]

Seguiram-se, em 1959, Emanacje (Emanações), para duas orquestras de cordas (com afinações diferentes), e Strophen (Estrofes), para soprano, narrador e 10 instrumentos, que chamaram a atenção do musicólogo alemão Heinrich Strobel, paladino da “nova música” e mentor do prestigiado festival de música contemporânea de Donaueschingen, que encomendou a Penderecki uma nova obra. Assim surgiu, Anaklasis (1959), para 42 instrumentos de cordas e grupos de percussão, cuja apresentação, no ano seguinte, em Donaueschingen, conferiu a Penderecki projecção internacional, que seria reforçada no ano seguinte com Tren ofiarom Hiroszimy (Treno para as vítimas de Hiroshima).

[Anaklasis, pela Orquestra Sinfónica de Londres, com direcção do compositor, gravação de 1973 nos estúdios da EMI em Abbey Road:]

Banda sonora do holocausto atómico

Treno para as vítimas de Hiroshima destina-se a 52 instrumentos de cordas, com os violinos divididos em quatro grupos (as violas em dois, os violoncelos em dois e os contrabaixos em dois), que, em certos trechos se subdividem em grupos menores (por vezes com linhas individuais para cada instrumento) e urdem uma tapeçaria sonora de extraordinária complexidade e riqueza tímbrica inaudita, pois Penderecki estipulou o emprego de técnicas não ortodoxas (o que na gíria musical anglo-saxónica se designa por “extended techniques”) e recorre maciçamente a glissandi. A isto soma-se a introdução de uma componente aleatória (controlada), que, nalguns trechos, concede margem de manobra aos músicos.

Embora “treno” signifique “lamentação” (do grego “threnos”), a obra não corresponde ao tom que, ao longo da história da música, nos habituámos a associar com essa palavra: é dilacerante, abrasiva e tensa e os períodos de calma ominosa alternam com gritos excruciantes e turbilhões ferozes. O seu aparente caos é rigorosamente planeado e cronometrado, de forma que a execução deve durar 8’37. Para exprimir esta abordagem radicalmente inovadora à escrita orquestral, Penderecki desenvolveu uma “partitura gráfica”, onde a notação musical convencional dá lugar a um conjunto de símbolos e códigos criado expressamente para esta obra.

[Tren ofiarom Hiroszimy (Treno para as vítimas de Hiroshima), pela Orquestra Sinfónica da Rádio Nacional Polaca, com direcção de Antoni Witt (Naxos):]

Tren ofiarom Hiroszimy foi distinguida em 1961 com o prémio da Tribuna Internacional dos Compositores da UNESCO e tornou-se numa das obras mais célebres de Penderecki. (ainda que seja citada mais vezes do que é ouvida).

[Outra versão de Treno para as vítimas de Hiroshima, que permite seguir a música através da partitura gráfica concebida por Penderecki:]

“Ao pó da morte me conduziste”

Em 1962, Penderecki compôs um Stabat Mater para três coros a cappella, que raramente é ouvido isoladamente, já que o compositor o integrou na sua Paixão segundo São Lucas (Passio et mors Domini nostri Jesu Christi secundum Lucam), cuja composição foi iniciada em 1963 e estreou em 1966. A Paixão foi encomendada pela estação de rádio alemã WDR (Westdeutscher Rundfunk) para assinalar o 700.º aniversário da catedral de Münster, na Alemanha (e não a comemoração dos 1000 anos da Igreja Católica Polaca, como por vezes é referido), mas o facto de se destinar a um evento “institucional” não impediu o compositor de criar uma obra audaciosa, atonal e, por vezes, brutal. Todavia, ao mesmo tempo, a obra insere-se na tradição das Paixões de Bach, compositor que é, aliás, citado por Penderecki, ao recorrer a uma sequência de notas que, na notação musical germânica, equivale a B-A-C-H. O texto da Paixão intercala o Evangelho segundo São Lucas com salmos, hinos e outros textos litúrgicos (sempre em latim e favorecendo atmosferas lúgubres) e requer um narrador (Evangelista), três solistas vocais, três coros mistos, um coro de crianças, órgão e uma vasta orquestra com secção de percussão muito dilatada.

[Início da Parte I da Paixão segundo São Lucas: secção n.º 1 “O crux ave”. Pelo Coro & Orquestra Sinfónica da Rádio Nacional Polaca, com direcção de Antoni Witt (Naxos):]

O texto da abertura, “O crux ave”, transmite uma mensagem de exaltação:

“Salve, ó cruz, única esperança
Neste tempo de Paixão
Aumenta a graça dos pios
Concede perdão aos pecadores

A ti, Trindade, fonte de salvação
Todos rendem homenagem”

Mas a música é agreste e instila angústia, não confiança na salvação da alma, um sentimento que se mantém, de forma geral, ao longo da obra.

Ao contrário de outros compositores seus contemporâneos, em que o recurso a técnicas de composição vanguardistas se traduz em música abstracta e fria, Penderecki mostrou na Paixão segundo São Lucas ser capaz de combinar radicalismo na linguagem com poderoso impacto emocional.

[Início da Parte II da Paixão segundo São Lucas: secção n.º 14 “In pulverem mortis”: “Ao pó da morte/ Me conduziste”. Pelo Coro de Câmara Tapiola, com direcção de Juha Kuivanen (Finlandia):]

A Paixão segundo São Lucas consolidou definitivamente a reputação internacional de Penderecki e teria uma espécie de “sequela” nas duas partes de Utrenja, compostas em 1970 (Parte I: O sepultamento de Cristo) e 1971 (Parte II: A ressurreição de Cristo), também elas encomendadas pela Westdeutscher Rundfunk. Utrenja (também grafada como “Jutrznia”) reincide na temática pascal, mas vai buscar inspiração à liturgia ortodoxa para o Sábado Santo e para o Domingo de Páscoa e recorre a uma selecção de textos em antigo eslavo eclesiástico. Tal como a Paixão segundo São Lucas, é uma obra monumental, de emoções fortes e contrastes abruptos, em que tanto se ouvem coros diáfanos como violentas irrupções de metais e percussão.

[Início da Parte II de Utrenja: secção n.º 6 “Ewangelia”:]

Na desolação de Auschwitz

Entretanto, em 1967, Penderecki compusera Dies irae, uma encomenda destinada à inauguração do Monumento Internacional às Vítimas do Fascismo, no antigo campo nazi de Auschwitz-Birkenau. O texto não recorre, todavia, à conhecida sequência latina Dies irae, como seria de esperar do título, sendo antes uma colagem de textos de variadas origens: poemas de Władisław Broniewski e Tadeusz Różewicz, um excerto do poema “Auschwitz”, de Louis Aragon (na parte I, “Lamentatio”); excertos do Salmo 116, do Livro do Apocalipse e de As euménides, de Ésquilo (na parte II, “Apocalypsis”); e excertos do Livro do Apocalipse, da Epístola de São Paulo aos coríntios e do poema Le cimetière marin, de Paul Valéry. Os textos em polaco e francês são vertidos para latim e os fragmentos de Ésquilo cantados no original grego e a obra termina com uma linha do poema de Valéry: “É preciso tentar viver!”.

[“Lamentatio” do Dies Irae, por Anna Lubańska (mezzo-soprano), Coro & Orquestra Sinfónica da Rádio Nacional Polaca, com direcção de Antoni Witt (Naxos):]

O Dies irae requer três solistas vocais (mezzo-soprano, tenor e baixo), coro e orquestra (sem violinos nem violas, de forma a produzir uma tonalidade mais grave e escura) e foi classificado pelo próprio compositor como “oratória” ainda que não existam personagens ou uma narrativa. O título original dado por Penderecki foi Oratorium ob memoriam in perniciei castris in Oświęcim necatorum inexstinguibilem reddendam, ou seja, Oratória destinada a perpetuar para todo o sempre a memória das vítimas do campo de extermínio de Oświęcim (Oświęcim é o nome polaco de Auschwitz) e a música é adequadamente tenebrosa e adstringente.

[“Apocalypsis” do Dies Irae, por Jarosłàw Bręk (baixo-barítono), Coro & Orquestra Sinfónica da Rádio Nacional Polaca, com direcção de Antoni Witt (Naxos):]

O regresso à tradição

A partir de meados da década de 1970, Penderecki começou a abandonar progressivamente as práticas mais radicais – atonalidade, técnicas de composição seriais, aplicação de “extended techniques” aos instrumentos convencionais e dilatação da panóplia instrumental com sirenes, máquinas de escrever e peças metálicas – e deixou que as suas obras fossem permeadas por elementos da linguagem musical do tardo-romantismo. O compositor explicou assim esta mudança de rumo: “A vanguarda deu-nos uma ilusão de universalismo. O mundo musical de Stockhausen, Nono, Boulez e Cage era para nós, os jovens [compositores polacos], coarctados pelos ditames estéticos do realismo socialista, então o cânone oficial no nosso país, uma libertação […] Mas eu compreendi rapidamente que esta novidade, esta experimentação, esta busca formal, era mais destrutiva do que construtiva […] Fui salvo da armadilha vanguardista do formalismo por um regresso à tradição”.

[IV parte do Te Deum, por Jadwiga Gadulanka (soprano), Ewa Podleś (mezzo-soprano), Wiesław Ochman (tenor), Andrzej Hiolski (barítono) e Coro & Orquestra Sinfónica da Rádio Polaca de Cracóvia, com direcção do compositor (Dux):]

Entre as obras mais representativas desta nova fase estão a ópera Paradise lost (1975-78), a partir do poema homónimo de John Milton, o Concerto para violino n.º 1 (1976-77), o Te Deum (1979), a Sinfonia n.º 2 (1980) e o Concerto para violoncelo n.º 2 (1982).

[IV andamento (Allegretto) do Concerto para violoncelo n.º 2, por Astrig Siranossian (violoncelo) e Sinfonia Varsovia, com direcção de Adam Klocek (Claves):]

Heróis e mártires polacos

Em 1980, com a Polónia em ebulição social, o sindicato Solidarność encomendou a Penderecki uma peça destinada à inauguração de um monumento de homenagem às vítimas da repressão do levantamento dos operários dos estaleiros navais de Gdańsk em 1970. O resultado foi Lacrimosa, que foi dedicada a Lech Wałęsa, líder do Solidarność.

No ano seguinte compôs um Agnus Dei, em homenagem à memória do seu amigo Stefan Wyszyński (1901-1981), arcebispo de Varsóvia e Gniezno, próximo de Karol Wojtila (que se tornara papa em 1978, como João Paulo II) e que representou papel decisivo na oposição ao governo comunista – o que lhe valeu passar uma temporada na prisão, entre 1953 e 1956.

Em 1982 Penderecki compôs um Recordare para a cerimónia de beatificação de Maksymilian Kolbe (1894-1941), um padre franciscano polaco que, embora tivesse ascendência germânica, se recusou a assinar a Deutsche Volkliste, que lhe concederia direitos de cidadania similares às de um alemão, e ajudou largas centenas de judeus polacos a iludir a perseguição movida pelos nazis. Estes acabaram por descobrir as actividade de Kolbe, prenderam-no e enviaram-no para o campo de Auschwitz. Numa ocasião em que um prisioneiro conseguiu evadir-se, o director-adjunto do campo ordenou que dez prisioneiros fossem tirados à sorte para uma punição destinada a desencorajar novas fugas: seriam fechados num bunker sem alimento nem água, até perecerem. Kolbe ofereceu-se para tomar o lugar de um dos escolhidos e era o único que restava vivo após duas semanas de suplício; os alemães, acabaram por executá-lo com uma injecção letal.

[I parte do Recordare (Requiem Polaco), por Mariana Nicolesco (soprano), Jadwiga Rappé (contralto), Zachos Terzakis (tenor), Malcolm Smith (baixo), Coro da Filarmónica Nacional de Varsóvia e Sinfónica de Bamberg, com direcção do compositor, ao vivo na Igreja de Santa Catarina, Cracóvia, 1988:]

Em 1984, Penderecki compôs um Dies irae (sem relação com a oratória homónima de 1967), com o fito de assinalar o 40.º aniversário do levantamento de Varsóvia contra a ocupação nazi. No mesmo ano, compôs um Libera me, Domine, em memória das vítimas do Massacre de Katyn, um episódio sangrento que envolveu a execução de 22.000 oficiais, intelectuais e dirigentes polacos, aprisionados após a invasão da Polónia pela URSS, em 1939, e levada a cabo pela polícia secreta soviética em Abril-Maio de 1940; as primeiras valas comuns com vítimas deste massacre foram descobertas pelos alemães na floresta de Katyn, topónimo que acabou por dar nome a toda a sinistra operação, se bem que esta também tivesse tido lugar nas prisões de Kharkiv e Kalinin (hoje Tver).

[Libera me, Domine (Requiem Polaco), por Jadwiga Gadulanka (soprano), Jadwiga Rappé (contralto), Wiesław Ochman (tenor), Stafford Dean (baixo) e coro e orquestra da Ópera Real Dinamarquesa, com direcção do compositor:]

Penderecki acabou por integrar todas estas peças soltas numa obra mais vasta, a que deu o título de Requiem polaco (Polskie Requiem) e que estreou a 28 de Setembro de 1984 sob a direcção de Mstislav Rostropovich. Apesar dos andamentos adicionais então compostos por Penderecki, a obra continuou a não incluir uma das partes essenciais de uma “Missa de defuntos”, o Sanctus, pelo que o Requiem não ficou apto para uso litúrgico. A lacuna foi remediada em 1993, com a adição de um Sanctus, por ocasião de uma retrospectiva da obra de Penderecki em Estocolmo.

O compositor voltaria a rever o Requiem polaco em 2005, adicionando-lhe uma Ciaconna in memoriam Giovanni Paolo II per archi, em homenagem ao papa polaco, falecido nesse ano.

[Finale do Requiem Polaco, por Mariana Nicolesco (soprano), Jadwiga Rappé (contralto), Zachos Terzakis (tenor), Malcolm Smith (baixo), Coro da Filarmónica Nacional de Varsóvia e Sinfónica de Bamberg, com direcção do compositor, ao vivo na Igreja de Santa Catarina, Cracóvia, 1988:]

Quando a peste alastra

Penderecki compôs para variados géneros e formações vocais e instrumentais, um espectro que inclui Todesbrigade (1963), composição electrónica para uma peça radiofónica, e Actions (1971), para orquestra de free jazz. Uma das facetas menos conhecidas da sua produção é a ópera, representada por Die Teufel von Loudun (Os demónios de Loudun), estreada em 1969, com libreto em alemão a partir de The devils of Loudun, de Aldous Huxley, que trata de um caso verídico de “possessão demoníaca” ocorrido na França seiscentista; a já mencionada Paradise lost, estreada em 1978; Die schwarze Maske (A máscara negra), estreada em 1986; e Ubu Rex, estreada em 1991, a partir da peça Ubu Roi (1896), de Alfred Jarry.

[“Exorcizo te”, de Die Teufel von Loudun, com Tatiana Troyanos (Jeanne), Andrzej Hiolsky (padre Grandier), Bernard Ladysz (padre Barré), Hans Sotin (padre Rangier), Horst Wilhelm (padre Mignon), Coro da Ópera Estatal de Hamburgo e Orquestra Filarmónica Estatal de Hamburgo, com direcção de Marek Janowski (Philips). Este registo foi realizado pouco depois da estreia da ópera em Hamburgo, no mesmo local e com o mesmo elenco:]

O contexto actual justifica que se dê destaque a Die schwarze Maske, com libreto de Harry Kupfer e de Penderecki a partir da peça homónima de 1928 por Gerhart Hauptmann, cuja acção decorre na cidade alemã de Bolkenhain, na Silésia (hoje Bolków, na Polónia), em 1662.

Embora tenham passado 14 anos sobre o término desse devastador conflito com motivações religiosas que foi a Guerra dos Trinta Anos, a cidade ainda não recuperou da destruição sofrida às mãos dos exércitos e encontra-se agora ameaçada pela peste. O burgomestre Silvanus Schuller convoca para um banquete vários notáveis e figuras locais, que representam diferentes convicções religiosas, mas o tom crescentemente acrimonioso da conversa torna evidente que as feridas da Guerra dos Trinta Anos ainda não cicatrizaram.

[Excerto da ópera Die schwarze Maske, por Katarzyna Hołysz (Benigna), Robert Gierlach (Löwel Perl), Ryszard Minkiwiecz (Jedidja Potter), Joanna Wesołowka (contralto) e coro e orquestra da Ópera Bałtycka Gdańsk, com direcção de Szymon Morus e encenação de Marek Weiss:]

O ambiente torna-se ainda mais tenso quando Benigna, a esposa de Schuller começa a revelar parcialmente a história da sua vida: antes de desposar o burgomestre, fora casada com um mercador de escravos de Amesterdão, que fora assassinado em circunstâncias misteriosas. Benigna admite perante todos que se recusa a partilhar o leito nupcial com o burgomestre, colocando no seu lugar uma das suas criadas, Daga; a outra criada, uma mulata chamada Arabella, é, na verdade fruto da união de Benigna com Johnson, um dos escravos do seu primeiro marido. Johnson, que foi o assassino do primeiro marido de Benigna, irrompe subitamente na festa, com o rosto oculto por uma máscara negra. O papel de Johnson é praticamente mudo: limita-se a remover a máscara e os convivas vão tombando um após outro – só um, Löwel Perl, logra escapar com vida da sala de jantar do burgomestre.

A mortandade que varre esta reunião de gentes de diversas origens, estatutos sociais e credos (espelhada na variedade das citações musicais que Penderecki semeia na partitura) coloca em relevo a igualdade do ser humano perante a aniquilação – provenha ela da peste ou da guerra, vivamos nós em Bolkenhain, Wuhan, Londres ou Lisboa.