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No filme de Laís Bodanzky, Cauã Reymond é D. Pedro I do Brasil, D. Pedro IV de Portugal, no caminho de volta, para lutar contra os próprios demónios e contra o absolutismo do irmão, D. Miguel
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No filme de Laís Bodanzky, Cauã Reymond é D. Pedro I do Brasil, D. Pedro IV de Portugal, no caminho de volta, para lutar contra os próprios demónios e contra o absolutismo do irmão, D. Miguel

No filme de Laís Bodanzky, Cauã Reymond é D. Pedro I do Brasil, D. Pedro IV de Portugal, no caminho de volta, para lutar contra os próprios demónios e contra o absolutismo do irmão, D. Miguel

Laís Bodanzky, realizadora de "A Viagem de Pedro": "Será que o Brasil mudou mesmo, assim tanto, ou continuamos a mesma coisa?"

Laís Bodanzky quis filmar 1831 com um olhar contemporâneo. Nesta história, o barco que traz D. Pedro de volta a Portugal é um Brasil com destino, mas à deriva. Entrevistámos a realizadora brasileira.

Em 1831, D. Pedro I abdica do trono brasileiro e deixa o filho, Pedro II, no lugar. Embarca numa viagem de regresso a Portugal para libertar o país onde nasceu do obscurantismo que encontra nas ambições absolutistas do seu irmão, D. Miguel. “A Viagem de Pedro”, filme de Laís Bodanzky (“Chega de Saudade”, de 2008, ou “Como Nossos Pais”, de 2017), que se estreia esta semana em Portugal, usa essa viagem para contar a história de D. Pedro I do Brasil, D. Pedro IV de Portugal e do homem num microcosmos. Enquanto o faz, a realizadora fala também do Brasil “que era independente há dez anos” e de como algumas coisas, até hoje, ainda não mudaram.

D. Pedro é interpretado por Cauã Reymond, também produtor do filme, num elenco que conta com Welket Bungué, Victoria Guerra, Isac Graça, Luísa Cruz, João Lagarto, Sérgio Laurentino e Francis Magee, um esforço conjunto entre Brasil e Portugal. “A Viagem de Pedro” debruça-se também sobre a vida sexual e sentimental do Imperador, ou melhor, de como perdeu o impulso sexual e dele lhe resta apenas a memória, de como o passado o persegue a caminho de um futuro incerto, do qual tem medo.

É esse o D. Pedro que o espectador encontra. Em viagem num barco – embora não seja apresentado assim –, com uma mulher lindíssima, Amélia (Victoria Guerra), que não consegue satisfazer e com um destino incerto, com receio do que poderá encontrar e de qual será o seu fim. Aproveitámos a visita da realizadora a Portugal para a entrevistar no sítio mais apropriado, com D. Pedro IV a olhar-nos de cima: no Rossio, em Lisboa.

[o trailer de “A Viagem de Pedro”:]

O filme está enquadrado na celebração dos 200 anos da independência do Brasil. Porquê contar uma história que aconteceu dez anos depois da independência, quando D. Pedro está a abandonar o Brasil?
Quando o projeto começou não foi pensado para se estrear no bicentenário da independência. Aconteceu: levantar a produção, filmar, finalizar… e ter tudo interrompido pela pandemia. Cá estamos agora. Acho interessante que se comemore o bicentenário, porque o filme não é uma comemoração, ele não fala sobre a independência, mas sobre esta personagem que fez a independência do Brasil vindo de Portugal. A pergunta fica: deve-se comemorar? E que independência é esta que o Brasil fez? É uma independência em que toda a opressão no país permaneceu para as classes populares. Toda a opressão de uma época, sociedade, em que hoje com o olhar contemporâneo, podemos encontrar uma operação de género, de raça, um país onde ainda hoje a maior parte da população é preta e metade da sociedade é homem, metade é mulher, e a mulher nunca teve o espaço e o respeito, sendo que ela sempre participou nos bastidores da vida política. A própria independência do Brasil, se você pegar nos documentos, a assinatura, é da Leopoldina, não é do D. Pedro. Uma mulher que sofreu muito nas mãos do D. Pedro… O filme é um pergunta, como foi feita esta independência, por quem, para quem e se ela realmente aconteceu. Na minha opinião, não aconteceu. Continuamos um colonialismo, seguiu na mesma. Mesmo quando terminámos a escravidão no Brasil, ela não acabou, permaneceu. Porque não teve um projeto de país, isso não foi feito.

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Tinha a intenção de, de alguma forma, mostrar tudo isso quando começou este projeto?
O filme não tem a intenção de se debruçar sobre questões políticas e factos históricos, mas atravessa esta personagem conhecida no Brasil e em Portugal. É uma forma de fazer uma viagem no tempo e respirar aqueles ares, de como era o quotidiano de um homem que, por acaso, era o Imperador. E como ele se comportava com tanto poder. Então a gente vê essa operação de género, de raça, nas pequenas coisas do dia, o barco representa um microcosmos do que era o Brasil naquela época, com os seus andares, com toda a sociedade e todas estas divisões de poder. O filme é muito mais para falar de como era o Brasil daquela época, com um olhar contemporâneo. Queria provocar no espectador uma dúvida: será que o Brasil mudou mesmo, assim tanto, ou continuamos a mesma coisa? Na minha opinião, continuamos a mesma coisa.

"Quando D. Pedro faz a independência para a elite brasileira, era tudo o que precisavam naquele momento. Dali para a frente, o projeto de país que foi desenhado já não interessava mais. E D. Pedro não interessava mais, ficou sem poder político, isolado. Ele sai do Brasil sem nenhum apoio: ele era agredido na rua, foi feita uma campanha para desmoralizar o imperador."

Quando é que o Brasil se tornou independente? Qual a sua opinião?
Ainda não se tornou. É interessante, a gente vê… eu moro na cidade de São Paulo, a calçada é igual à que está nesta praça [Rossio]. Temos lembranças do momento em que o Brasil era colónia, a nossa língua, cultura. Muitas influências. Mas hoje no Brasil notamos que no nosso vocabulário estão cada vez mais palavras americanas. Vemos a presença da cultura americana, do vocabulário, e estamos ao serviço mais de uma economia de fora do que do interesse interno. Como brasileira, sinto-me sugada. E acho que uma colónia se sente assim. Por isso, esse sentimento permanece.

Portanto, entende esse sentimento como partilhado, não como coisa sua…
Nas classes populares é geral. Na classe com poder económico, não. Por isso é que essa independência não ocorre, não há interesse de uma elite económica que isso mude. É exatamente como era na época de D. Pedro. Quando D. Pedro faz a independência para a elite brasileira, era tudo o que precisavam naquele momento. Dali para a frente, o projeto de país que foi desenhado já não interessava mais. E D. Pedro não interessava mais, ficou sem poder político, isolado. Ele sai do Brasil sem nenhum apoio: ele era agredido na rua, foi feita uma campanha para desmoralizar o imperador.

No filme, quando D. Pedro entra no barco, ouvem-se as classes populares a querer expulsá-lo.
No Brasil, dois dias antes dele embarcar, aconteceu a Noite das Garrafadas, como ficou conhecida. As pessoas saíram para a rua, batendo as garrafas, dizendo que ele não era bem-vindo, que se fosse embora. Ele sai na calada da noite: ele fugiu, não foi uma saída oficial.

Fiquei com a sensação de que no filme o mostra como alguém que ama o Brasil.
Ele amava o Brasil de verdade, ele se sentia um brasileiro e era um brasileiro. Ele tinha aquilo que a gente identifica como o espírito de um brasileiro.

"Foi uma viagem no tempo, imaginar o Brasil naquela época. Era como esta embarcação, multicultural, as pessoas falavam o seu idioma, tinham a sua religião e conviviam. O Brasil ainda é assim hoje"

Como o pai [D. João VI].
Muito parecido, por motivos diferentes, mas ele repetiu a história do pai. Engraçado, não é?

A história tão concentrada numa questão de género, na masculinidade do rei-imperador, no facto de ele ser muito viril, mas entretanto perder essa virilidade. Isso é verdade?
Sim, está registado nos livros oficiais de História. Ele escrevia cartas para a amante, para a Domitila, em que falava que… tinha um nome muito divertido, como ele chamava o aparelho reprodutor dele… Mas enfim, dizia que não funcionava mais. Ele escrevia, “não funciona, não funciona, não funcionava mais! Quando vai funcionar?” Para ele era uma questão… D. Pedro, desde muito criança, era muito físico, ele gostava de andar descalço, gostava de fazer as coisas com as mãos, era marceneiro, andava a cavalo, tocava vários instrumentos, tinha esse prazer do corpo. Claro, era um monarca, com muito poder, essa união do corpo com o poder deixou-o sem limites. E ficou tudo misturado. É muito comum, não é uma coisa só dele, a questão da virilidade está ligada com a potência e a dimensão do império. Quando perde o apoio político, fica sozinho, ele perde a sua potência. Claro que não é por perder o poder político que fica impotente. Não é. Mas também. Ele tinha muitas mulheres, tinha a amante oficial e as amantes da amante. Ele teve vários filhos fora do casamento e assumia todos. E dava o nome de brasileiro.

A que se deve a impotência?
Provavelmente ele pegou sífilis. Tinha todas as características de como ela se manifesta. Ele apresentou todos os sintomas, inclusive os delírios. Quando a Leopoldina morreu, e com a sua ausência, com muita culpa, ele via-a nos corredores do palácio. Teve alguns indícios de um pequeno delírio. E mais a impotência. Ele morreu aqui em Portugal porque contraiu uma tuberculose muito forte, provavelmente por causa da sífilis, ele estava com a imunidade baixa. Mas voltando à questão da potência sexual, não a ter era muito chocante. Ele perde a personalidade, deixa de acreditar nele próprio. No filme parece caricato, inventado, mas não, está documentado nos livros. A viagem não está, mas tudo o que acontece na viagem é a partir de vários indícios de factos antes e depois da viagem.

"A personagem do Welket Bungué, que faz de Contra Almirante, que está na sua cabine, senta na mesa de jantar, também é uma visão crítica no sentido de negar as suas raízes, a sua língua. Uma vez no poder, você é individualista e não pensa mais naqueles que são como você, os que estão sendo oprimidos."

Foi complicado trabalhar com tantas línguas ao mesmo tempo?
Difícil, mas muito prazeroso. Foi uma viagem no tempo, imaginar o Brasil naquela época. Era como esta embarcação, multicultural, as pessoas falavam o seu idioma, tinham a sua religião e conviviam. O Brasil ainda é assim hoje.

A língua também serve para fazer uma diferenciação entre os negros: os ingleses, que já não são escravos, e os brasileiros, que são. A língua serve de separação?
Sim, exatamente. A personagem do Welket Bungué, que faz de Contra Almirante, que está na sua cabine, senta na mesa de jantar, também é uma visão crítica no sentido de negar as suas raízes, a sua língua. Uma vez no poder, você é individualista e não pensa mais naqueles que são como você, os que estão sendo oprimidos. O Welket aceitou a personagem com rapidez, até perguntei porquê e ele disse: “esta personagem interessa-me fazer”. Porque traz um tema muito atual, eu ia medindo pelos próprios atores como eles iam lendo a história. O processo criativo foi muito interessante para mim.

Como é que esta história de D. Pedro surgiu na sua vida?
Nunca tinha pensado nisso até um dia o Cauã [Reymond] num almoço me mostrar um livro e falar: “não quer fazer este filme?”. Não sabia como, pedi para não ser através de um livro especifico, porque não me queria prender a um olhar só. E ele disse para ser como eu quiser, mas para trazer o meu olhar de mulher contemporânea.

Welket Bungué, Cauã Reymond e Victoria Guerra fazem parte do elenco de "A Viagem de Pedro"

E ele aceitou bem, sendo ele o protagonista? Gostou da forma como o D. Pedro está representado?
Sim, porque o próprio Cauã é muito bonito, viril, é assim que ele é visto e desconstruiu a imagem dele para o público. Para ele também era bom, não queria ser de novo mais um homem bonito que vinha. Ele pode mostrar a potência enquanto ator, desconstruindo a imagem que passa há muito tempo para o público.

Ao longo do filme, não entendi aqueles momentos como alucinações. Mas mais como contexto.
Tem razão, é assim no filme. Há um pouco de lembrança, e depois de delírio. Há flashback e há o futuro, de que ele vai encontrar o irmão. Sonha com o passado e com o futuro, o medo do futuro.

Acha que ele estava com medo de voltar para Portugal?
Estava. Ele vinha para uma guerra como quem assume um desafio perante si próprio, todos diziam que ele ia perder, ele não tinha dinheiro, exército. O D. Miguel tinha, tinha apoio popular, dinheiro e exército. Era uma guerra condenada ao fracasso e ele veio.

Mas conseguiu um exército de mercenários.
Mas muito pequeno. Ele ganhou por estratégia militar. Não foi a força. Não tinha a mesma força do irmão.

"Para fazer uma correção histórica é muito violento. No Brasil isto é polémico, mas sou a favor de quotas, para fazer uma correção histórica com rapidez. O discurso é sempre o mesmo: 'Ah, não, deixa, os bons vão sempre se destacar.' Mas quantas gerações vamos esperar para isso acontecer? Não dá, a vida da pessoa é uma só."

Voltando ao Brasil, o que há do Brasil que o D. Pedro deixou?
Muita coisa. Como não houve projeto de país, houve um abandono. Mesmo depois, quando acabou a escravidão, ela nunca acabou de facto. Como não teve um projeto, você não teve um cuidado com a educação, com moradia, com saúde, as classes populares sem ganhar dinheiro… no fundo, vivendo um trabalho escravo sem se dizer escravo. Ainda hoje no Brasil você encontra trabalho escravo, volta e meio vejo uma pessoa fazendo trabalho de escravo. Ainda na semana passada saiu nos jornais, uma senhora que foi entrevistada, a jornalista pegou na mão dela, ela afastou-se: “Nunca uma pessoa branca encostou em mim”. Ela nunca tinha saído da casa onde trabalhou a vida inteira, nunca ganhou um salário. Ela nem sabia que podia. A pessoa para quem ela trabalhava dizia que ela era da família. Mas não era. Tem essa visão, eu dou um prato de comida, você faz tudo para mim. Essa visão ainda está no Brasil até hoje. É horrível. Produz em automático uma postura que não é uma questão de lei, mas de quotidiano. 54% da população no Brasil é preta, mas na universidade não tem essa proporção, nem nas empresas. Muito menos nas posições de chefia. Se vai aos presídios, tem 98% das pessoas pretas lá dentro. Estranho, tudo isso.

De certa forma, ainda se vê um pouco disso aqui. É daquelas más heranças portuguesas?
É verdade, para fazer uma correção histórica é muito violento. No Brasil isto é polémico, mas sou a favor de quotas, para fazer uma correção histórica com rapidez. O discurso é sempre o mesmo: “Ah, não, deixa, os bons vão sempre se destacar.” Mas quantas gerações vamos esperar para isso acontecer? Não dá, a vida da pessoa é uma só.

Há algum sinal de melhoria no Brasil?
Vejo uma coisa interessante: a consciência. É o mais importante. Pode ter a opressão de um governo de extrema-direita, mas tem uma classe popular que percebeu que ela tem direitos, que tem direitos a ter direitos. Uma vez que tem consciência, nunca mais vai deixar de ter. Isso me traz esperança.

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