No coração da capital francesa, mesmo à beira do rio Sena, acumulam-se quase todos os dias qualquer coisa como 30 mil pessoas em filas intermináveis com um único objetivo: entrar no Museu do Louvre e admirar com os próprios olhos a obra-prima de Leonardo da Vinci. Falamos, claro, de “La Gioconda”, ou “Mona Lisa”, misteriosa pintura a óleo dos primeiros anos do século XVI, que é hoje a tela mais famosa do mundo nos seus supostamente escassos 77 centímetros de altura e 53 de largura.
Por estes dias, no também mais famoso museu do mundo – neste tema é quase tudo “blockbuster” –, Leonardo da Vinci mantém-se como lenda viva e ganha novos e extraordinários motivos de atração: na quinta-feira, abriu ao público uma muito aguardada exposição com 162 obras do mestre italiano, incluindo pinturas, esculturas, desenhos e cartas.
No entanto, a “Mona Lisa” não faz parte da exposição. A popularidade de uma e de outra tornariam impossível a circulação de pessoas, justificou o museu. Por isso, o célebre quadro permanecerá no desassossego da Salle des États – depois de obras de remodelação concluídas há poucos dias, o que obrigou à transferência temporária da “Mona Lisa” para a Galerie Médicis. E por sua vez a exposição agora inaugurada poderá ser vista no mais pequeno Hall Napoléon, sob a famosa pirâmide de vidro do Louvre.
Seja como for, trata-se da maior exposição de sempre do mestre renascentista e assinala os 500 anos da sua morte. Outras iniciativas têm tido lugar ao longo dos últimos meses, mas nenhuma com esta dimensão. Demorou uma década a ser preparada e acendeu paixões e conflitos, até ao nível diplomático.
O título é simplesmente “Leonardo Da Vinci”, tão sóbrio quanto o de outras mostras do Louvre dedicadas a grandes nomes da pintura, o que parece fazer prova de que num caso como este o marketing acontece sozinho e para atrair visitantes e atenções não é preciso mais do que o nome de um autor. De resto, as páginas do Louvre no Facebook, no Instagram e no Twitter poucas referências fizeram nos últimos dias à grande exposição.
[reportagem da France 24 na véspera da abertura da exposição:]
Acima de tudo, pintor
Leonardo di ser Piero da Vinci, conhecido como Leonardo da Vinci (1452-1519), é considerado um génio da pintura e estendeu o seu trabalho a diversas áreas do saber. Foi escultor, arquiteto e inventor, estudou anatomia, matemática, mecânica e biologia, tornou-se o modelo quase perfeito do homem do Renascimento, com uma curiosidade infinita pelo mundo que o rodeava. A exposição abrange todas essa áreas, mas centra-se essencialmente no artista plástico.
Os curadores escolheram obras do próprio e de pintores contemporâneos que o tiveram como referência. Querem demonstrar que o percurso de Da Vinci pela pintura não foi errático, mas consistente, mesmo que a produção tenha sido relativamente escassa.
“A ambição principal da exposição, contrariando o que se costuma dizer, é demonstrar que a pintura era verdadeiramente essencial para Leonardo da Vinci, que a pintura é, na realidade, a atividade que unifica a sua vida”, explicou recentemente ao jornal Público um dos curadores da mostra, Vincent Delieuvin, que trabalhou juntamente com Louis Frank. “É também o facto de Leonardo ter multiplicado os seus interesses que tem sustentado esta ideia de que, para ele, a pintura não era assim tão importante, mas, se lermos os seus escritos como quem tenta compreender a sua demanda enquanto pintor, percebemos que, pelo contrário, tudo está interligado, que todo o seu trabalho tem a pintura como destino”, acrescentou.
Existem no mundo apenas 15 a 20 pinturas conhecidas que os especialistas atribuem a Da Vinci e cinco delas fazem parte do acervo do museu parisiense. Nenhum outro museu do mundo tem tantas telas deste criador. A essas cinco – “A Virgem dos Rochedos”, “A Virgem e o Menino com Santa Ana”, “São João Batista” e “La Belle Ferronnièree”, além da Mona Lisa – juntam-se mais seis na exposição.
O espaço está dividido por quatro núcleos: “Luz, Sombra e Relevo”, “Liberdade”, “Ciência” e “Vida”. Num deles é destacada ligação de Da Vinci à engenharia e tecnologia, o que ganha forma, por exemplo, através de um sistema de realidade virtual intitulado “Mona Lisa: Beyond the Glass”, que permite aos visitantes viajar numa das máquinas voadoras desenhadas pelo génio italiano, descreveu o Art Newspaper.
Quanto a desenhos, são 22, e através deles consegue-se ter uma noção mais vasta de todas as áreas do saber tocadas por Da Vinci. É uma exposição “blockbuster”, sim, mas feita com inteligência, classificou o Guardian.
Polémicas e cancelamentos
Algumas obras foram emprestadas pela rainha Isabel II e pelo casal Bill Gates e Melinda Gates, outras ainda pelo Museu Hermitage de São Petersburgo e pelos Museus do Vaticano. Uma em especial, com origem em Veneza, foi cedida à força pelas autoridades italianas: é o conhecido “Homem de Vitrúvio”, desenho que Da Vinci criou por volta de 1490 com a representação das medidas ideais do corpo humano. Chegou ao Louvre há poucos dias e ali ficará por apenas algumas semanas, ao passo que a exposição se prolonga até 24 de fevereiro do próximo ano.
Para que o “Homem de Vitrúvio” pudesse estar, teve de ser assinado um acordo entre os governos de França e de Itália em setembro último, depois de um período de tensão em que a então secretária de Estado italiana da Cultura, Lucia Borgonzoni (do partido Liga, de Matteo Salvini) chegou a afirmar que os franceses tratavam Itália como um supermercado de objetos culturais e pretendiam exercer “apropriação cultural”, o que foi interpretado como uma reação populista.
Após o entendimento, o Louvre comprometeu-se a ceder em troca obras de Rafael para uma grande exposição que terá lugar em Roma no próximo ano. Ainda assim, o grupo conservador Italia Nostra recorreu à justiça para tentar impedir o empréstimo do desenho ao Louvre, alegando a fragilidade da peça, mas à última hora, a 16 de outubro, um tribunal administrativo de Veneto ordenou que o “Homem do Vitrúvio” poderia mesmo viajar até Paris, devido à “extraordinária relevância global” da exposição.
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O Louvre é hoje o museu mais visitado do mundo, com um recorde de 10,2 milhões de pessoas no ano passado, acima do número histórico de 2012, que tinha sido de 9,7 milhões, com os turistas norte-americanos e chineses a comporem a grande fatia.
Estas credenciais não terão sido suficientes para convencer outras instituições a emprestar obras para a exposição – que, note-se, tem o patrocínio principal do Bank of America. O museu tinha a ambição de exibir mais pinturas do que aquelas que conseguiu. Desde logo, ficou de lado “Salvator Mundi”, uma representação de Cristo atribuída a Da Vinci e leiloada pela Christie’s em 2017 pelo valor astronómico de 400 milhões de euros.
A venda foi então considerada um triunfo absoluto do marketing, ao mesmo tempo que alguns especialistas a interpretaram como positiva para o setor da arte antiga, preterida nos últimos anos no “star system” dos leilões em favor da arte contemporânea. Terá sido um príncipe saudita a comprar o “Salvator Mundi”, mas atribuição não é consensual e o paradeiro dela também não.
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É seguro que “Salvator Mundi” esteve para ser incluída na exposição de abertura do Louvre de Abu Dhabi, em novembro de 2017, o que acabou por não acontecer. E é seguro que o Louvre de Paris pediu a obra emprestada a Abu Dhabi. Até há poucos dias, os curadores Vincent Delieuvin e Louis Frank ainda não tinham a certeza de que o quadro não integrasse a exposição. Foram mesmo preparados dois catálogos diferentes e num deles estava incluída a pintura de 400 milhões.
Outros casos se registaram. Uma investigação da revista alemã Der Spiegel concluiu ter havido “numerosos cancelamentos de pedidos de empréstimo”. Por exemplo, a Galleria degli Uffizi, de Florença, cedeu alguns desenhos e cópias, mas impediu a saída das três pinturas de Da Vinci que tem na respetiva coleção (“Annunciazione”, “Adorazione dei Magi” e “Battesimo di Cristo”), por alegadas preocupações com a conservação e integridade das peças. A Pinacoteca de Munique e o Museu Nacional de Cracóvia também recusaram emprestar.
De acordo com a edição online da Deutshe Welle, a competição entre museus internacionais é uma das explicações para os obstáculos colocados aos empréstimos. As instituições receiam perder visitantes caso alguma das obras habituais seja cedida a terceiros, mesmo que por um curto período. “Apenas um sinal dos tempos”, assinalou o Washington Post, destacando que os museus são hoje vistos como símbolos de prestígio numa era de ressurgimento dos nacionalismos.
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No dia da inauguração, mais de 260 mil bilhetes já tinham sido reservados pela internet – é a única forma de marcar vez para visitar a exposição. Desde então, o sistema de reservas online do museu tem estado interrompido, devido à afluência de utilizadores. Assim continuava neste fim de semana.
Na sexta-feira de manhã, a fila para Da Vinci era pequena e o tempo de espera não ultrapassava os 10 minutos, relatou a imprensa francesa. O horário é das nove da manhã às seis da tarde, de quarta a segunda-feira, e os bilhetes custam 17 euros.