A partir do momento em que falamos de Chateaubriand e em vez de um livro nos trazem um bife, já nos devia – esteja o dito bife muito ou pouco queimado – cheirar a esturro: há uma associação entre culinária e literatura que não beneficia nenhuma das duas. No lado culto já se sabe que se está em tempo de vacas magras, pouco propício a prodigalidades com a pouca carne que lhe resta; o outro lado, já de si tão cheio, também não ganha com a interferência erudita. No entanto, deseja-o com todo o fervor (ou fervura).
Não é preciso ir mais longe: o guia Michelin, o guia com todas as finezas e ademanes de uma subtilíssima roda cavernícola; o guia que tem como símbolo um rol de pneus empilhados, como que a mostrar que por muito protuberante que seja o que amortece a barriga de um bom chefe de família, há sempre por onde engordar; o guia da marca que concorre com a Pirelli, uma com calendários de mulheres e outra com guias de comida, ambas concordes na satisfação do prazer da carne; o guia do maná das oficinas, do fiel amigo dos fatos-de-macaco, do óleo e da derrapagem, esse que devia ser o guia das mais prosaicas tabernas, refinou a ponto de dar duas estrelas a restaurantes como o Belcanto, com um menu “desassossego” em honra do Fernando Pessoa. Não só aumenta o nível da sua literatura, com o guia da comida faz de crítico literário: desassossego, duas estrelas.
Uma análise mais romba alocaria a origem do fenómeno no século XIX. Esse século ufano, esse século que, já com o rei na barriga, ainda lhe quis dar a companhia de duques (caso do bife Wellington), esse século de megalomania napoleónica é que teria começado a homenagear os literatos com postas de peixe de escabeche ou enchidos estapafúrdios. Em Portugal, teríamos entornado o caldo no dia em que Bulhão Pato despejou um com o seu nome sobre as ameijoas, dando livre-passe a todos os arroubos literário-gastronómicos. Cansados de ruminar as suas “Flores agrestes” e todo a sua poesia mais adocicada, teríamos acolhido com prazer o seu modo de cozinhar os bivalves.
Esta tese até podia resistir a alguns abalos académicos: afinal, quadra que nem ginjas com o século da burguesia o espírito materialista e o anseio pelas honrarias civis. Para os conselheiros Acácios, haveria com certeza mais glória em ter o nome num prato de lampreia do que em ser armado cavaleiro por D. Afonso Henriques após mais uma conquista aos mouros. Atermo-nos ao século XIX como origem deste fenómeno, porém, seria desleixar demasiado o labor de genealogista.
Provas de bom e mau gosto
Em primeiro lugar, porque há um famoso livro que, embora possa confirmar a ideia, desmente a idade; depois, porque há, desde tempos imemoriais, uma certa relação entre a comida e a literatura, com provas de bom e mau gosto de parte a parte. Já no século XVIII, Ménon escreve em França o famoso La Cuisinière Bourgeoise com receitas e informação culinária acessível não só às lautas refeições da Nobreza, mas a qualquer burguês guloso. Ora, basta ir aos alimentos para ver como o espírito do livro já pende para a grandeza. Só entre os vários tipos de frutas, Menon cobre toda a galeria dos grandes do reino: há a ameixa imperatriz, a pera-rainha, a pera real de Verão, a pera Delfina, Marquesa, a franco-real, maçãs reinettes e “reinettes d’Angleterre”, e isto sem entrar nas glórias celestes, que aí também teríamos peras Saint-German. Que se chame a uma pera rainha, como que a indicar que é a melhor entre todas, ainda percebemos: é uma manobra com o requinte de um “Rei dos Frangos” ou “Rei do Leitão”, mas passa. Agora, este sistema de classificação baralha até o mais maduro chefe do protocolo diplomático: quem tem a precedência, imperatriz ou rainha? E entre as rainhas, ganha a de Inglaterra ou a, também existente, da Bretanha? Uma pera marquesa significará que é melhor do que o bife do Visconde Chateaubriand mas pior do que o bife do Duque de Wellington?
A tentativa de associar a grandeza das personalidades à grandeza das personagens pode provocar alguns dissabores; no entanto, a má-relação entre a culinária e a sua nomenclatura não é exclusivo das classes mais ufanas. Só no bacalhau, no popular bacalhau, vemos como mesmo os mais anónimos cozinheiros são destemperados no baptismo. Em que estariam a pensar enquanto ungiam o seu peixe com as pias águas de bacalhau?
Desde um quase anónimo Gomes de Sá à tentativa mística do bacalhau espiritual, do bacalhau à salsicheiro que, no mais das vezes, não leva salsichas, ao popularucho Zé do Pipo, todas as opções são incompreensíveis. Será que o inventor do bacalhau espiritual passou uma série de anos junto de um guru indiano a resolver os mantras piscícolas, ou era um simples devoto que cumpria a abstinência da sexta-feira com um bacalhau, sabendo estar com isso em ascese espiritual? E o génio do bacalhau à salsicheiro? Um esteta discípulo de Magritte para inverter o tema do cachimbo chamando salsicha aquilo que não o é, ou simplesmente um bruto que não sabe distinguir uma salsicha de um presunto ou de um chouriço? Quer estejamos a marinar num lamentável equívoco que afinal se devia chamar bacalhau à chouriceira, quer saboreemos uma mescla de sensações modernistas, o caso é esquisito. Para não falar de uma avó universal, inventora de um famoso rolo. Parece que, nos tempos edénicos, a maçã de Eva foi apenas sobremesa do seu famoso bacalhau em rolo.
O bacalhau, no entanto, não é o único responsável pelas confusões. As subtis diferenças de nacionalidade baralhariam até o mais rigoroso escolástico. Nós, portugueses, mesmo os alfacinhas, chegados à Roménia somos laranjas: na nação eslava chamam Portugalia ao famoso citrino. Não somos todavia, as únicas vítimas de confusões identitárias: afinal, os tártaros são bifes, os bifes são ingleses, mas os ingleses não são tártaros. Quando muito, são molhos. E com o molho facilmente escorregamos para uma série de metáforas gastronómico-bélicas também elas complicadas: além do molho, também a pêra, a castanha e a batatada podem significar pancadaria, tareia e guerra à tripa forra.
Vá lá que, neste caso, há uma certa reciprocidade: além da batatada, temos a batata a murro, que não casca em ninguém mas se come com casca. Mas mesmo neste caso, são as relações absurdas. Que, perante o esvaimento de sangue, se falasse de uma cabidela danada, percebia-se; agora uma pêra? Que relação entre o monumental embate de uma punhada nos ossos e essa fruta débil que (a menos que seja pêra rocha) se esfarela facilmente entre os dedos? Que um bando de raparigas tenha andado à estalada com nem pipocas estalam, tudo bem. Agora batatada quando nenhuma adolescente moderna toca sequer numa batata com medo de lhe absorver os hidratos?
Nacos de prosa suculentos
A gastronomia, passe a redundância, está há muito nas bocas do mundo; pena que normalmente se fale dela à boca cheia: sem saber, com rudeza e pouca arte.
Há, decerto, bons exemplos: Jesus votou-a à glória teológica quando chamou a si próprio sal da terra, Eça de Queirós consagrou-a literariamente nos jantares da Capital, dos Maias ou da Cidade e as Serras – como também Karen Blixen o fez na Festa de Babette – e até Figo conduziu a flora alimentícia ao Olimpo futebolístico. Note-se porém que mesmo os melhores exemplos, se afinarmos a exigência, não se safam sem uma ou outra nódoa. No Cozinheiro Completo, livro de receitas do século XIX escrito com tal perícia que salivamos de apetite mas também de volúpia estilística, não deixamos de ter os galicismos mitrados pelo texto fora. O homem capaz de escrever nacos de prosa suculentos não esburga as “crémas” e os “Chambors” da sua cozinha. Pior, nem ele escapa a nomes tão esquisitos como “eiró de fricandó” ou “chicória portuguesa”. Só o nome já tira o apetite.
A caldeirada alimentar atesta um fenómeno conhecido de todos os linguistas: as pessoas falam através daquilo que está mais presente no seu quotidiano. É sabido que, perante aquilo que está mais presente, o grau de aperfeiçoamento linguístico e a riqueza de sinónimos tende a aumentar; é por isso que os chineses têm várias palavras para arroz e os bosquímanos outras tantas para dizer areia. No entanto, o contrário também se passa: apesar de não estar familiarizado com a linguagem popular chinesa, aposto várias fichas na hipótese de haver muitos provérbios relacionados com a cultura do arroz. A existência, no nosso falar chão, de tantas expressões relacionadas com a comida mostra a quantidade de vezes que temos o estômago no lugar do cérebro.
Podia ser que esta troca de lugares nos provesse de grande alimento espiritual; mas infelizmente parece que tal profusão de alimentos entulha de tal forma a nossa máquina racional, que já parece sensato que nos Estados Unidos falem do seu país como uma grande sopa ou imensa salada. Nem o exemplo de antanho dos europeus em guerra com os servos de Mafoma, que se desforravam das derrotas em campo com ferozes dentadas em crescente (ou croissants, no original), serviu de exemplo à Nação Americana. Já não é só a cultura que chega à comida, nem a comida que chega ao falar do povo: a linguagem gastronómica, alimentada a grandes doses de fermento, já alcançou a alta cultura. Já não é só o linguajar saloio que tem caras feitas num bolo e espinhas na garganta; a sociologia tem as suas sopas de nações, a política as suas panelinhas e a cozinha, em vez de panelas, tem o Salazar.
Tudo tem nome de comida, só a comida tenta ter nome de outra coisa. Terá sido, concedemos, a moda romântica, responsável pelos petit-pois à la Cohen dos Maias, a querer fazer dos cozinheiros artistas e dos artistas grandes apreciadores da cozinha refinada. Para mostrar como a arte é feudo, não dos espíritos, mas dos sentidos, dotou-se o cozinheiro de pergaminhos artísticos. Coisa irresponsável, pois embora mestre nas sensações alimentares, o cozinheiro revelou-se um desastre com o pergaminho nas mãos. A escrita gastronómica é de dar a volta ao estômago: que significam as pretensiosas reduções de chocolate ou os flambés de morango, seguidos de descrições vagas e espumosas que mais parecem tiradas de um panfleto de agência de viagens do que de um restaurante? Roteiro pelas sensações aventurosas subsarianas através de um preto em camisa e de um confitado de baba de camelo. Que é isto? Tudo bem que os cozinheiros sejam artistas, mas que o sejam por cozinharem e não por esculpirem um filete ou fazerem poesia parnasiana com o cardápio.
Até porque, num tempo em que tanta arte é uma autêntica pastilha, pelo menos esta podia-se engolir.
Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.