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Luciano Gonçalves. Era rijo, via vermelhos e hoje comanda os árbitros

Luciano Gonçalves foi jogador, treinador e diretor antes de tropeçar por acaso na arbitragem. Uma doença grave retirou-o dos relvados mas esta terça-feira lidera a reunião da APAF na Batalha.

A Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF) vai em breve mudar de instalações mas ainda é lá, nas atuais, que nos encontramos com Luciano Gonçalves, o seu presidente. Chegamos à hora do jogo sem adversário, mas o antigo árbitro, como avisou antes, não leva falta de comparência. Aproveitamos aqueles minutos para colocar a leitura mais em dia na sala principal deste 1.º andar da Avenida Almirante Reis. O edifício, como a larga maioria dos edifícios naquela zona de Lisboa, não é novo, longe disso. Mas por dentro percebe-se que a história é valorizada até ao ínfimo metro quadrado. E mais parede houvesse, mais seria.

Joaquim Campos, o “Mestre”, é tema de conversa. Fez no passado sábado um ano que morreu a primeira grande referência da arbitragem nacional. Esteve presente nos Mundiais de 1958 e de 1966 e ficou conhecido por ter dirigido o primeiro encontro com desempate por grandes penalidades da história (Barcelona-Saragoça) e por ter dado ordem de expulsão a Pelé nos quatro meses em que dirigiu partidas do campeonato brasileiro. “Teve uma influência grande na altura em que decidi avançar para a liderança da APAF. Também foi o meu mestre. O Artur [Soares Dias] já tinha falado comigo, mas quando estivemos juntos expliquei-lhe que ainda não tinha decidido porque não sabia se teria mãos para comandar esta máquina. Garantiu-me que sim. E avancei mesmo”, diz Luciano Gonçalves com um brilhozinho especial nos olhos.

Na mesma sala principal onde conversamos, ainda existe uma daquelas aparelhagens quadradas com duas entradas de cassetes (sim, das de fita). As paredes tão depressa têm quadros com as imagens dos antigos líderes, algumas com aquelas fotografias tipo passe, como mostram inúmeros galhardetes. Há ainda muitas placas alusivas a homenagens, um quadro com alguns prints de artigos que foram saindo ou regulamentações novas dos equipamentos e um televisor. Mas admitimos: aquela aparelhagem com entrada para cassetes ficou-nos no goto. Luciano Gonçalves chega. Cumprimenta as pessoas presentes e senta-se à nossa frente. Está bem disposto e “pronto para mais uma longa semana”. Começamos a entrevista. Que é tudo menos “cassete”. Como poderá ser ouvido esta terça-feira, na Batalha, numa reunião promovida pela APAF “para discutir o aumento exponencial e alarmante das agressões a agentes da arbitragem”, entre outros temas.

Por coincidência geográfica, é por aqui que esta nossa viagem começa.

Como é que aparece o desporto e o futebol na sua vida?
Sou da Batalha, de uma aldeia chamada Alcanadas. Mais tarde fui presidente do Núcleo de Árbitros de Porto de Mós. Era atleta, comecei a jogar à bola nos juvenis de um clube de Alqueidão da Serra, depois subi aos seniores, na 3.ª Divisão na altura, depois a meio da época fui para outro clube, o Pataias. Fiz dois anos de seniores, depois comecei a namorar uma rapariga lá de uma aldeia perto e por ali fiquei. Nessa altura, fui para uma coletividade pequena como diretor e começámos com uma equipa de futsal feminino. Passados dois anos, voltei outra vez para Alcanadas e começámos com o futsal de formação. Era diretor e vice-presidente, formámos um clube e a arbitragem surge mais ou menos nesta fase. Aí já jogava nos seniores, mas no futsal.

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"Porque deixei de jogar tão novo? Porque não tinha se calhar capacidade para estar àquele nível… Como posso explicar? Não tinha assim grande margem [risos] Sempre estive ligado e gostei do dirigismo, surgiu aquela hipótese de ser diretor de um clube."

Porque é que deixou o futebol?
Porque não tinha se calhar capacidade para estar àquele nível… Como posso explicar? Não tinha assim grande margem [risos] Sempre estive ligado e gostei do dirigismo, surgiu aquela hipótese de ser diretor de um clube. Era o Ferraria, Associação Desportiva da Ferraria, ali em Pataias. Na altura em que saí para jogar no Pataias fui ganhar dinheiro, ainda era dessa altura em que se recebia nos Distritais… Como formámos depois o clube de futsal, ainda continuei como jogador.

Ainda se lembra desse primeiro ordenado?
Lembro, lembro, claro. Ganhava na altura 100 contos. Foi em 1999, já era qualquer coisa. O futebol distrital pagava-se bem nessa altura…

E jogava em que posição?
A lateral esquerdo.

Mas é canhoto?
Não, mas fazia ali a adaptação. Mas pronto, era uma pessoa com muita garra, era essa a minha principal característica [risos] Tinha alguma velocidade e muita garra no Pataiense. No futsal foi mesmo por carolice e porque era vice do clube, queria que funcionasse.

E a arbitragem?
Em 2002, havia muita falta de árbitros como ainda existe hoje. Os clubes recebiam um subsídio e umas bolas da Associação de Futebol de Leiria, que enviou uma nota informativa a dizer que cada clube tinha de indicar duas pessoas para irem tirar o curso de árbitro, caso contrário não recebiam nem subsídio nem bolas. Nós tínhamos ali uma ou duas equipas de formação mais a equipa de seniores, onde era atleta, mas deixámos andar aquilo. Deixámos andar, deixámos andar, não ligámos nenhuma até que precisamos de bolas. Ligámos para a Associação a pedir bolas, porque nunca mais vinham, e responderam que não tinham enviado porque ainda não tínhamos indicado esses tais dois nomes para irem tirar o curso de árbitro. Disseram que só tínhamos de dar nomes e depois seríamos informados…

"Os clubes recebiam um subsídio e umas bolas da AF Leiria, que enviou uma nota informativa a dizer que cada clube tinha de indicar duas pessoas para irem tirar o curso de árbitro ou caso contrário não recebiam nem subsídio nem bolas (...) Para não chatear mais ninguém, pus lá o meu nome e enviei.Longe de mim pensar em ser árbitro nessa altura."

Deu o seu.
Dei, para não chatear mais ninguém. Pus lá o meu nome e enviei. Só pelas bolas e para garantir o subsídio a que tínhamos direito. Longe de mim pensar ser árbitro nessa altura. Até porque não tinha um passado assim muito interessante a nível de comportamento…

Já tinha visto muitos vermelhos…
Alguns vermelhos, sim [risos] Não tinha um temperamento muito fácil.

Mas por bocas?
Não, por ser rijo. Alguns por acumulação, alguns vermelhos diretos. Era um bocadinho rijo, tenho de admitir isso. E foi assim: passada uma fase somos chamados, tinha 22 ou 23 anos, preenchi a ficha e andei dois ou três dias à noite a tirar o curso para picar o ponto e para perceber porque razão os árbitros erravam. Começou aí a morder o bichinho. Depois há um fim-de-semana em que sou expulso no futsal quando já andava a tirar o curso e comecei a ficar ainda mais motivado, de pensar porque razão tinha sido expulso…

Teve pessoas a puxarem por si?
Também. Houve um dia em que fizemos um daqueles torneios de aldeia de 24 horas para ganhar algum dinheiro e pedimos um orçamento ao Núcleo de Árbitros de Porto de Mós, mal sabia que um dia iria ser presidente. O que enviaram, na altura, era muito dinheiro, era uma coisa exorbitante, porque nós queríamos era ganhar algum dinheiro para o clube. Então, arranjámos ali uma forma de um apitava uns jogos, outro também, e pedimos só para nos enviarem um ou dois árbitros, para ficar mais em conta. Tive a sorte de virem duas pessoas, o senhor Domingos Lavinha e o Rodolfo Deyllot, que foram uma ajuda fantástica nesta minha mudança de visão e de paradigma em relação à arbitragem. Foi com eles que dei os meus primeiros passos e estiveram sempre ao meu lado nesta fase. Depois desse torneio comecei a experimentar, porque achei que afinal não era assim tão mau. Acabei o curso e foi correndo bem, no futebol.

"Vi alguns vermelhos, sim [risos] Não tinha um temperamento muito fácil. Por bocas? Não, por ser rijo. Alguns por acumulação, alguns vermelhos diretos. Era um bocadinho rijo, tenho de admitir isso."

No futebol. Porque é que voltou outra vez a trocar do futsal para o futebol?
Fui árbitro de futsal e de futebol de 11 durante quatro anos, fazia as duas vertentes até chegar ao Nacional. Depois era candidato ao Nacional nas duas vertentes, tinha de optar e essas duas pessoas que estiveram sempre ao meu lado também me ajudaram a ir para o futebol, sobretudo o senhor Domingos Lavinha que chegou a ser assistente da 1.ª Divisão, inclinou-me para aí. Subi nesse primeiro ano. Mas enquanto conciliava, já era diretor do Núcleo de Árbitros de Porto de Mós e do Núcleo de Árbitros da Marinha Grande para o futsal. Comecei a dedicar-me imenso à arbitragem. Há eleições e depois passo a presidente do Núcleo de Porto de Mós.

A arbitragem era a sua única atividade nessa altura?
Sempre tive outras profissões. Desde que saí da escola, aos 16 anos, que trabalhava nas obras públicas. Mantive-me nessa área até vir para a APAF. Mas fui sempre fazendo outras coisas e também foi por isso que acabei por sair da arbitragem, devido a um problema de saúde. Mas olhe, ainda fui diretor desportivo de uma equipazinha de futebol de formação da Batalha.

Ainda se lembra de quando ganhou no primeiro jogo de futsal que apitou?
Não é difícil, existe pouca diferença em relação ao que se ganha agora. Na altura foi cinco euros, agora deve ser seis ou sete euros por jogo. Nos seniores talvez oito euros, agora deve ser dez ou 12 euros. Infelizmente, não há muita diferença.

É também nesse início que vê um outro árbitro ser agredido. Pensou em deixar mas ficou. Não se arrependeu, tendo em conta o pouco que recebia para dirigir jogos?
A pessoa em causa foi a mesma pessoa que esteve comigo desde início na arbitragem, o senhor Domingos. Como é óbvio, pus em causa continuar, apesar de nunca ter passado por isso pessoalmente, mas ver os meus companheiros de equipa sofrerem aquilo fez-me pensar. Não é a questão financeira que entra nos pratos da balança, é a paixão e o gosto que temos. Tinha 24 ou 25 anos, era novo mas já tinha vivido alguma coisa. Vim de famílias pobres e a forma como olhamos para as coisas e as valorizamos é completamente diferente. Sabia a dificuldade que tinha sentido até aí e se as pessoas que admirava já lá estavam há 30 anos sem desistir, tinham passado por problemas mais vezes. A paixão ganhou mas foi a situação mais difícil que tive.

Mas também teve um jogo complicado em Oliveira do Douro, onde quem perdesse descia de divisão e a equipa da casa acabou por perder depois de ter um jogador expulso por si…
Quando me lembro desse jogo… É futebol, aquela paixão do futebol à antiga. Faz parte. Se bem se mal, leva-nos para outro campo. A outra situação foi diferente, foi uma agressão premeditada porque ficaram à espera, e isso já ultrapassa a paixão do futebol. Em Oliveira do Douro não, é sentir que a equipa desceu, era preciso encontrar um culpado e esse é sempre o árbitro.

Se calhar pelo seu passado até compreendia melhor essa paixão, não?
Claramente, ajudou muito. Todos os árbitros, se passarem um bocado pela parte do jogador, pelo lado de lá, sentem isso de forma diferente, é uma mais-valia. Senti sempre isso como uma vantagem, senti na pele a dificuldade de vendermos rifas para ganhar algum dinheiro, para pagar taxas de policiamento, lavar balneários a seguir ao jogo. Fiz isso e sei que ajuda e abre a visão. A dificuldade do dia a dia de um clube, de lidar com os insucessos, senti tudo isso.

"Senti na pela a dificuldade de vendermos rifas para ganhar algum dinheiro para pagar taxas de policiamento, lavar balneários a seguir ao jogo. Fiz isso e sei que ajuda e abre a visão. A dificuldade do dia a dia de um clube, de lidar com os insucessos, senti tudo isso."

Até onde acha que conseguiria ir sem esse problema físico?
Não sou uma pessoa de olhar para o passado e ficar a pensar. Não vivo agarrado ao passado. Teria feito uma carreira na arbitragem enquanto árbitro como estou a fazer agora como dirigente, com paixão e a defender a minha classe. Até onde chegaria não sei, é relativo porque temos tão bons árbitros e tanta qualidade na arbitragem que não posso dizer onde teria chegado.

Lesionou-se no trabalho, num jogo ou num treino?
Não foi bem uma lesão, tive uma meningite quando estava na 2.ª Divisão. Apanhei nas férias, tive três meses sem contacto com ninguém, fiz várias punções lombares… Foi complicado, a nível de saúde causou grandes transtornos. Quando voltei estava completamente fragilizado como é óbvio. Como era, como sou ambicioso, e gosto de tentar fazer o melhor, fiz o que não devia ter feito. Devia ter percebido que com as doenças não se brinca, mas tentei forçar as coisas à minha maneira. Sem explicação nem autorização de ninguém, ainda de baixa, fui fazer as provas físicas da Federação. Disse que estava tudo ok, porque sabia que sem aquilo iria descer, mas já não deu. E pior: agravei a situação, deixou-me algumas sequelas que agora estão ultrapassadas. Mas para o contexto desportivo, sei que não consigo atingir níveis físicos de árbitro de alta competição.

Quando estava no Núcleo de Árbitros de Porto de Mós, alguma vez imaginou ou aspirou a ser presidente da APAF, ser o líder de toda a classe só com 37 anos?
Sem demagogia, numa fase inicial não. Em Porto de Mós queria apenas deixar o meu cunho na arbitragem regional. Desde cedo que sempre considerei que somos um bocadinho fechados e tentei abrir um bocado mais ao público e às pessoas ligadas ao público. Por isso é que, no primeiro ano, quis fazer um torneio de futebol infantil organizado por nós para os clubes, ao contrário do que costuma ser normal. Foi de tal forma que ainda hoje envolve cerca de 1.000 miúdos e 74 equipas. O objetivo foi sempre desmistificar um pouco isto, mas nunca a pensar na APAF. Mais tarde, ao perceber que as minhas ideias podiam fazer sentido, não pensei em ser presidente da APAF mas acreditei que poderia ajudar com as minhas ideias.

"Tive uma meningite quando estava na 2.ª Divisão. Apanhei nas férias, tive três meses sem contacto com ninguém, fiz várias punções lombares… Devia ter percebido que com as doenças não se brinca e tentei forçar. Vou fazer as provas físicas da Federação, mas já não deu. E pior: agravei a situação, deixou-me algumas sequelas que agora estão ultrapassadas."

Esse trabalho de abertura já tinha começado ou está agora a começar?
Já começou antes, até porque fiz parte da direção anterior do José Fontelas Gomes e trabalhámos bem juntos. Tínhamos ideias muito parecidas e ficou um trabalho de equipa muito mais simples. Ele próprio começou esse trabalho na arbitragem para o mundo exterior.

É eleito em maio de 2016 e apanha com uma “batata quente” chamada “vouchers”. O que é que pensou ao entrar e deparar-se com aquele caso?
Não foi a forma mais fácil de entrar na APAF. Quando se apanha com um assunto tão macro, onde tudo o que fazemos tem um impacto gigante, tem tudo de ser pensado para não ser distorcido. Foi complicado. Ajudou a crescer, mas foi chato, digamos assim.

Ainda hoje considera que é um não assunto?
O importante é que todos percebamos que é um não assunto, não porque queira desvalorizar mas porque não havia segundas intenções. Não é a entrega de uma camisola, de uma garrafa de vinho ou de qualquer coisa. O que está mal é se qualquer dessas coisas for entregue com segundas intenções. Essa é a complexidade do assunto, mas isso pode ser com uma camisola ou com uma caneta. Pode ser uma sandes, bolos… Uma coisa é o bem receber, outra é quando existem segundas intenções. Se houver, temos de eliminar. Mas não nos cabe a nós, deve estar definido e regulamentado para quem de direito decidir.

E o próprio Luciano enquanto árbitro, sofreu isso?
Costumo dizer que por vezes existem é palavras e afirmações que nos dizem que, essas sim, são intencionais, maldosas, calculistas, frias. Por vezes há conversas que, essas sim, são perigosas e destroem o desporto. Sim, senti isso. Da minha parte era indiferente, mas sinto que vivemos numa sociedade onde somos demasiado possessivos. Esse é um problema no futebol, a especulação e o falso poder. Isso existe, mas nunca liguei. E deve acabar.

E aliciamento com bens materiais?
Aliciamento, como diz, nunca sofri.

Existe muito a ideia de que esta é uma nova geração de árbitros que se tenta descolar do caso dos “quinhentinhos”, das viagens para o Brasil da Cosmos ou das escutas divulgadas no âmbito da Operação Apito Dourado, mas em paralelo sofre agora de males que não existiam como as redes sociais. Concorda?
É exatamente isso. Mas com algumas nuances, fruto de situações que aconteceram no passado. Estamos a atravessar uma nova vaga a nível de arbitragem, em que precisamos de estabilidade e de tranquilidade para ganhar estatuto.

O que é que falhou no passado?
Não quero que ninguém veja isto como uma crítica ao passado, primeiro ponto. Mas a verdade é que não foi feito um bom trabalho de seguimento e agora estamos a tentar acelerar o processo. É um pouco como nos clubes de formação: devemos ter os infantis, os iniciados, os juvenis, às vezes até equipas A e B, para que todas as gerações estejam sempre salvaguardadas e atacar qualquer défice que seja registado. Assim, chegámos ao ponto de fazer um regulamento demasiado opressivo para os mais velhos. Existe de facto essa vontade de uma nova vaga se demarcar de algumas situações, mas isso já tinha começado com a geração de Pedro Proença, Olegário Benquerença, Duarte Gomes, Marco Ferreira, Pedro Henriques. Eles foram o início de uma nova geração e já tinham estaleca…

E a própria sociedade e o futebol eram um pouco diferentes…
Precisamente. Houve uma mudança completa a nível do que se fala. Há meia dúzia de anos, alguns árbitros nem tinham pensado em chegar à 1.ª Divisão, e o Facebook era uma novidade. Para todos. Agora temos uma sociedade dominada pelas redes sociais e que consome cada vez mais os media. Por isso, quem tem estruturas pesadas e movimenta massas, sabe que chega a elas através da comunicação. E isso acontece, com pivôs na TV, nos sites e nos blogues. Os comentadores têm agendas próprias, sabemos disso. Lutar contra isto com uma máquina que durante muitos anos foi muito fechada e pouco protegida como a nossa classe é uma tarefa complicada.

"Hoje é impensável que um dos módulos do curso não esteja ligado a redes sociais e exposição pública. A nossa primeira marca quando chegávamos aos quadros nacionais era dar o exemplo do Olegário Benquerença, que foi imitar o Quim Barreiros. Isso foi depois recuperado pelos 'Tesourinhos Deprimentes' e, mais tarde, pelo Barcelona, numa meia-final com o Inter."

Existe esse cuidado em termos internos com aquilo que se diz e escreve?
Hoje é impensável que um dos módulos do curso não esteja ligado a redes sociais e exposição pública. A nossa primeira marca quando chegávamos aos quadros nacionais era dar o exemplo do Olegário Benquerença, que foi imitar o Quim Barreiros. Isso foi depois recuperado pelos ‘Tesourinhos Deprimentes’ e, mais tarde, pelo Barcelona, numa meia-final com o Inter. O que fazemos hoje só se vai refletir daqui a uns anos. E os miúdos vêm cada vez mais novos para o futebol, tudo é diferente. É uma geração de computador e nós, árbitros, temos também de enquadrar-nos nessa mudança óbvia da sociedade.

Os árbitros procuram ter uma postura mais dialogante durante os jogos. É fruto disso?
As agressões que agora tanto se falam não se devem aos jogadores, salvo raras exceções. O problema é o que se passa cá fora: os atletas são instigados com o que se passa cá fora. Quando um filho ouve de um pai ‘dá-lhe um murro’, o que podemos dizer? Esta nova geração tem o hábito de falar mais com os jogadores, é um facto.

Uma provocação: divulgar publicamente os clubes dos árbitros mudava alguma coisa?
Defendo isso, só não defendo para já, no imediato. A nossa sociedade não está preparada para isso. Seria mais um não assunto para ser falado durante a semana. O futebol tem de perceber que a arbitragem faz parte da indústria, do negócio. E queremos que seja tudo limpo, transparente.

Considera que cada um ainda olha muito para a sua “quintinha”?
Muitas vezes sim. Repare: se um agente imobiliário quiser vender uma casa, todas as divisões são importantes. Se a arbitragem, que é um hall de entrada, não for tomada dessa forma, isso acaba por prejudicar tudo o resto. Tem de estar limpo, transparente, não pode estar com esta constante suspeição. Temos que valorizar tudo o que é nosso, não apenas os melhores jogadores e os melhores treinadores. Se os nossos dirigentes forem considerados bons gestores, serão reconhecidos lá fora. Se no topo acham que é tudo corrupto, os miúdos de cinco ou seis não vão achar o contrário.

E como é que se consegue acabar com essa visão?
Acredito que existe uma parte complicada de exterminar, que tem a ver com os blogues, as redes sociais e comentadores que, mesmo sendo de um clube, não têm ligação direta a ele. Mas volto a dizer: todos nós temos de querer. Se os dirigentes dos clubes disserem para as suas massas que são os primeiros a não quererem esse caminho, se não se utilizarem os comentadores televisivos, se não se subsidiarem blogues, se fizerem isso em termos públicos, pode ser diferente. Quando vemos o lançamento de tochas ou petardos, os dirigentes tentam acalmar no campo e com comunicados, não se escudando atrás disso. E aí as coisas acalmam. Aqui é a mesma coisa.

"Se os dirigentes dos clubes não utilizarem os comentadores televisivos, se não subsidiarem blogues, se fizerem isso em termos públicos, pode ser diferente. Quando vemos o lançamento de tochas ou petardos, os dirigentes tentam acalmar no campo e com comunicados, não se escudando atrás disso. E aí as coisas acalmam. Aqui é a mesma coisa."

A introdução das novas tecnologias pode também contribuir para essa viragem?
Essas novidades como o vídeo-árbitro ou a linha de golo são mais-valias e sou um defensor q.b. de tudo isso. Temos de começar a entender já que só reduzem 25% dos erros, por exemplo. Será uma ajuda tremenda mas temos que mudar a nossa mentalidade e não pegarmos no que corre menos bem para fazermos daquilo um novo caso.

Parece que voltamos sempre ao mesmo problema…
Nós, portugueses, somos top a pensar e tentar encontrar problemas mas, neste caso, isso não pode acontecer. Às vezes as pessoas não têm noção das vezes em que um árbitro, depois de analisar e rever um jogo, se sente mal depois de ver erros. Isso dói, um árbitro sofre. Eles preparam os jogos da melhor forma, mas a arbitragem luta contra 20 ou 30 câmaras, devagar ou depressa, é difícil. Não estou a desculpar nada, os erros acontecem. Nunca podemos dizer é que foi propositado, isso mata a indústria.

E se houver provas de que foi propositado?
Há casos desses? Sabem que foi um erro intencional? Então transmitam que nós resolvemos isso. Com especulação é que não, porque isso torna tudo mais complicado.

"O vídeo-árbitro ou a linha de golo são mais-valias e sou um defensor q.b. de tudo isso. Temos de começar a entender já que só reduzem 25% dos erros, por exemplo. Será uma ajuda tremenda mas temos que mudar a nossa mentalidade e não pegarmos no que corre menos bem para fazermos daquilo um novo caso."

Como avalia globalmente as arbitragens desta temporada, de novo marcada por muitas críticas?
Tendo em conta toda a pressão colocada nos árbitros desde o início da época, tem sido uma época muito, muito, muito positiva. Claro que queríamos que não existissem erros, mas o desempenho é muito positivo até porque o escrutínio é cada vez maior. Se um árbitro tomar dez decisões importantes bem, é o papel dele; se errar numa, só se fala disso. Podemos quantificar isso, existe uma forma de avaliação. Aliás, o escrutínio interno hoje é muito maior também para que possamos ter mais ferramentas para minimizar os erros.

E a publicação dos relatórios dos observadores como alguns clubes defendem, não ajudará também?
Primeiro a indústria do futebol tem de dar um sinal de que são as publicações dos relatórios que vão credibilizar, nunca pode ser o caminho inverso. Concordo com isso, mas mais uma vez quando estivermos preparados. E não estamos. Temos de mudar o chip. Se quisermos, conseguimos mudar. Mas temos de ser todos. E não vale a pena andar a dizer que se quer mudar se depois as ações não são tomadas nesse sentido.

Falemos agora da profissionalização dos árbitros. Concorda com o atual modelo?
É um tema que mexe muito comigo, porque temos um falso profissionalismo em Portugal. Se os árbitros tiverem o seu foco apenas naquela função, como se fosse uma profissão normal, têm mais espaço para analisar vídeos, para treinar, para se concentrarem, para estarem com a família, o que também é fundamental… Agora têm o seu trabalho, a seguir vão treinar, chegam os miúdos estão a dormir, acordam no outro dia cedo, ao fim-de-semana agarram no malote e vão para os jogos… Este é o nosso profissionalismo. E os árbitros são humanos.

Será isso suficiente para fazer tanto a diferença?
Se os árbitros estiverem mais bem preparados e de cabeça limpa, erra-se cada vez menos. Nunca vamos conseguir eliminar sempre o erro, mas vamos minorar muito. Não temos árbitros profissionais, essa é a verdade. Temos de criar condições antes, mas a estrutura do futebol tem de querer isso. Para isso, é necessário investimento.

O que falta então para isso?
Precisamos de mais condições, mesmo que as coisas já tenham melhorado. Temos jogadores, treinadores e muitos dirigentes profissionais, só os árbitros é que não. O que falta? Parte financeira. Tem a ver mais com a gestão do que outra coisa, além de algum investimento assumido por toda a estrutura do futebol. Se calhar não se quer investir e não existe essa coragem porque, infelizmente, os clubes não acreditam muito na arbitragem.

E estamos a falar de que valores, mais ou menos?
Prefiro não falar em valores, até porque a APAF tem o seu projeto, que até é mais amplo porque compreende também o profissionalismo dos árbitros assistentes, mas existe também o Conselho de Arbitragem que está a fazer um projeto nesse sentido. Havendo uma boa gestão e algum investimento, não é nada de tão significativo.

As última semanas têm sido marcadas pelo conhecimento público de ameaças e agressões a árbitros. Tem noção real do que se passa? Em algum momento pensou em desistir?
Há histórias que mexem muito comigo e fazem pensar se vale a pena andar aqui, admito. Este árbitro de Viseu, por exemplo. Não por ser público mas por ter falado com ele e ter ouvido em primeira mão que saiu do carro porque se lembrou que se dessem com o pau no carro podiam aleijar os companheiros de equipa, que eram miúdos novos. E depois de uma situação destas, ainda pensa se vai ou não fazer queixa, com medo das represálias. Isto é grave, é de outro mundo. Ou como aconteceu também num outro jogo, onde um miúdo andou a agarrar o pai para não bater no árbitro. Faz-nos pensar que se é assim ali, em casa pode ser muito pior… Isto dói-me, custa.

"Este árbitro de Viseu, por exemplo. Não por ser público mas por ter falado com ele e ter ouvido em primeira mão que saiu do carro porque se lembrou que se dessem com o pau no carro podiam aleijar os companheiros de equipa, que eram miúdos novos. E depois de uma situação destas, ainda pensa se vai ou não fazer queixa, com medo das represálias. Isto é grave."

Acredita que, além das 52 participações que foram feitas até ao momento no Ministério Público, existem muitos outros casos semelhantes mas não relatados?
Acredito que com este mediatismo as coisas sejam diferentes, mas provavelmente já houve casos que não conhecemos. Foram de facto feitas 52 participações ao Ministério Público. mas existem muitos outros casos que não são conhecidos por receio. Se calhar tanto ou mais, por medo das represálias. E isto não pode acontecer.

Essas situações que fala são ameaças antes dos jogos ou reações depois dos jogos?
Em termos genéricos, penso que existe mais essa tentativa de pressões antes, por desconhecidos como é óbvio, nas divisões mais cá de cima, as profissionais. Nos distritais é mais na parte da cobardia, durante o jogo ou a seguir ao jogo, com esperas. Mas repito: não pode acontecer.

"Em termos genéricos, penso que existe mais essa tentativa de pressões antes, por desconhecidos como é óbvio, nas divisões mais cá de cima, as profissionais. Nos distritais é mais na parte da cobardia, durante o jogo ou a seguir ao jogo, com esperas. Mas repito: não pode acontecer."

Que importância poderá ter esta reunião na Batalha para melhorar esse cenário?
Esta reunião foi convocada para termos a verdadeira noção do que se passa em todas as partes do país, daí que seja muito importante a presença de elementos da Madeira e dos Açores, como irá acontecer. Temos de perceber o que podemos fazer, onde estamos e para onde queremos ir.

Admite poder fazer greve aos campeonatos?
Vamos estar abertos a tudo porque aquilo que queremos é uma mudança para bem do futebol, um caminho de diálogo. Não queremos protagonismo, infelizmente está a ser dado aos árbitros mas não são os árbitros que andam em busca disso. Irei defender sempre os árbitros.

E os atuais regulamentos de castigos, são suficientes?
Defendo penalizações para todos aqueles que, sem exceção, incluindo os árbitros, prejudiquem a indústria. Se existem e vivemos este momento, então se calhar devem ser mais duras e céleres para todos.

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