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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras: "Resolvi expor a minha vulnerabilidade. A personagem sou eu mesmo"

A vontade de perceber o pai, sobrevivente do Holocausto e depressivo, levou o fundador da Companhia das Letras a partilhar os momentos mais obscuro. Um relato que quis honesto e sem auto-elogios.

A convivência de Luiz Schwarcz com o pai, um sobrevivente do Holocausto, foi marcada por um profundo silêncio. Esse silêncio, aliado à depressão do pai, doença de que o editor brasileiro também sofre, geraram nele uma vontade de compreensão e de busca que o acompanham desde sempre. Durante anos, Luiz Schwarcz julgou que a resposta para as suas perguntas estava na ficção. Publicou vários livros, infantis e de contos, inspirados na vida do pai e também na sua, e um romance que nunca saiu do papel.

Uma viagem à neve com a família mudou tudo. No meio de um momento que deveria ser apenas de felicidade, Luiz Schwarcz sentiu “um nó seco inexplicável na garganta”, uma lembrança de que a depressão não o tinha abandonado — e não o abandonaria nunca. O choque que isso lhe provocou gerou nele a vontade de por tudo por escrito, de revelar, sem rodeios, a história de uma “longa” doença e de uma “curta infância”. No início, o fundador da editora brasileira Companhia das Letras pensou que o se propunha a escrever não era para si, mas para os outros. Uma conversa com a mãe fê-lo entender o contrário: “Não, estou fazendo porque preciso, para mim’”.

O resultado é O ar que me falta, um relato tão honesto quanto possível (“Não posso dizer que o livro é 100% honesto porque ninguém consegue ser 100% honesto”, confessou ao Observador) sobre a infância e a depressão, onde a personagem principal não é tanto Luiz Schwarcz mas o seu pai, André, que viveu com o trauma da perseguição e da sobrevivência — quando seguia a caminho de Bergen-Belsen, o seu pai, o avó Láios (Luiz) de quem o editor herdou o nome, empurrou-o para fora do comboio. Depois de uma fuga semelhante a um filme, André, que se parecia com Kirk Douglas, conseguiu escapar e chegar a Itália, onde viveu numa casa em Roma com outros judeus até partir para o Brasil, onde reconstruiu a sua vida, mas sem alegria.

Escrever O ar que me falta foi um processo carregado de emoção, como contou Luiz Schwarcz ao Observador em Óbidos, onde esteve no âmbito do festival literário internacional FOLIO, que voltou no final deste mês após uma paragem obrigatória devido à pandemia. Mas foi também um processo terapêutico, que permitiu ao editor conhecer-se melhor a si próprio e à sua família: “Acho que mudou a minha relação com o meu pai e mudou muito a relação com a minha mãe”.

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O livro de memórias de Luiz Schwarcz foi publicado no Brasil em fevereiro. Saiu em Portugal em setembro, pela Companhia das Letras Portugal

É conhecido por ter fundado a Companhia das Letras, uma das mais destacadas editoras brasileiras. Podia ter escrito um livro sobre a sua experiência no mundo da edição, mas decidiu falar sobre algo muito mais pessoal — a sua depressão. Porquê?
Sempre fui de alguma forma perseguido pela ideia de escrever um livro sobre o meu pai. Como percebeu, ele é uma personagem quase mais importante do que eu, ou muito importante. A primeira ideia que tive, antes mesmo de escrever o livro infantil [Minha vida de goleiro], era um livro sobre o silêncio do meu pai. Como se fosse aquela indagação infantil sobre quem ele era, qual era o passado dele, tivesse sido um elemento formador da minha personalidade, da minha pessoa. Depois de fazer dois livros infantis e de contos, tentei fazer um romance sobre ele, Luar ausente. Embora tenha feito esses dois livros de contos [Discurso sobre o capim e Linguagem de sinais], que tiveram até boa repercussão, percebi que não sou mesmo ficcionista. A vontade de ficção morreu dentro de mim. Não como leitor. Essa ideia sempre me perseguia. Uma vez um editor mexicano, a quem contei sobre o romance que estava escrevendo, falou: “Não, você tem de fazer um livro de não-ficção sobre o seu pai”. Quando tive um episódio breve de depressão, que não foi nem uma depressão, mas um sintoma de depressão aparecendo no meio de um momento de alegria extraordinário, com as minhas netas, na montanha, foi como um sinal, um sinal muito forte, de que a depressão nunca mais me largaria. Coisa que já sabia. Tomo remédio, não me recuso a tomar. Aí tive essa vontade de fazer esse livro.

Dráuzio Varela, um escritor e médico muito importante no Brasil, me disse no início: “Faz isso, que você vai ajudar muita gente”. E durante a escrita, repeti esse refrão, “vou ajudar muita gente, vou ajudar muita gente”, mas, na verdade, estava escrevendo aquilo para mim. Vivo de ajudar outras narrativas a virem a público. A minha vida é devotada às narrativas [dos outros]. Queria transformar um sofrimento bastante grande, que vem da infância, numa narrativa para mim. Depois, não cabe a mim escrever a história da Companhia das Letras. Nunca saberia dizer que comecei assim, que hoje tenho uma empresa grande, que fiz isto, fiz aquilo… As pessoas que me conhecem sabem que nunca seria capaz de fazer um livro auto-reverente.

Mas a sua história também poderia ser inspiradora para outros que tal, como o Luiz, sonham em lançar-se no mundo da edição e criar a sua própria editora. O conhecimento que adquiriu poderia ser útil para essas pessoas.
Muitas vezes me vejo no futuro dando alguns cursos, mesmo online. Estou pensando numa coisa assim. Na Companhia [das Letras] vamos fazer um curso de formação de editores, privilegiando a busca de editores negros, porque isso não existe. Acho que o meu trabalho hoje na empresa é muito formar esses jovens editores. Agora, quase um ano depois de ter terminado de escrever esse livro, comecei a escrever um outro, sobre edição. Estou conseguindo fazer isso sem contar os episódios que poderiam soar como um auto-elogio. Estou tratando de temas ligados à edição, temas éticos, filosóficos, e estou misturando com cartas que estou escrevendo para pessoas mortas que participaram da minha formação. De alguma forma, estou conseguindo escapar da armadilha de fazer um livro sobre a Companhia das Letras ou sobre o caminho para o sucesso. Estou muito no começo, escrevi cinco capítulos. Vamos ver se ele vai prosperar. Mas só para responder: tenho de achar uma forma de falar da edição que não tenha nenhum julgamento sobre o meu trabalho. Isso tem de ser alguém que não eu a fazê-lo.

Tem medo de ser mal interpretado e que vejam isso como um sinal de arrogância?
Exato. Não sou uma pessoa que gosta de ser elogiada em público, fico tímido. Também não gosto de fazer referência a mim mesmo. E acabei fazendo um livro totalmente de referência a mim [risos], mas não são episódios grandiosos, são episódios de sofrimento, que de alguma forma sabia como narrar. Se um editor me encomendar, “olha, conta aí a história da Companhia das Letras”, não saberei como narrar essa história. Não me vou sentir à vontade para assumir esse livro na primeira pessoa. Tem de ser alguém que possa observar criticamente, analisar os erros, os acertos.

"Vivo de ajudar outras narrativas a virem a público. A minha vida é devotada às narrativas [dos outros]. Queria transformar um sofrimento bastante grande, que vem da infância, numa narrativa para mim."
Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras e autor de "O ar que me falta"

Alguém que esteja de fora.
Sim, que veja quais foram os acasos que fizeram com que tivesse a fortuna, a sorte, de chegar onde cheguei profissionalmente.

Não pode ter sido só sorte…
O primeiro capítulo do meu novo livro é sobre o acaso na vida dos editores. De alguma forma, falo nisso. O editor que procura valorizar demais o que a gente chama o tino, o faro do editor, e se coloca no centro da história, está errado. O centro da história é sempre o escritor.

Disse que os episódios que conta em O ar que me falta não são positivos ou alegres, mas de sofrimento, o que implica um elevado grau de exposição. É um livro muito honesto e sem pudor. Foi algo que decidiu logo no início, que ia ser 100% honesto?
Não posso dizer que o livro é 100% honesto porque ninguém consegue ser 100% honesto, mas a intenção foi essa. Quando comecei a escrever, falei para mim mesmo que ia contar tudo. E quando o livro ficou pronto, tive muitas reações contrárias. Minha família sempre me apoiou, mas demonstrou temor pelo grau de exposição que assumi. Alguns editores se mostraram muito contra. Por exemplo, em relação ao capítulo sobre a violência, dois editores falaram que não podia me expor dessa forma, que tinha de cortar as questões da sexualidade e até da iniciação sexual. Várias vozes dentro da Companhia falaram que não precisava [fazê-lo]. Expliquei de alguma forma [porque tinha de o fazer]. Por exemplo, a iniciação sexual é um fator importantíssimo para posicionar a relação com o meu pai. A questão delicada de colocar qual era a prática do meu pai no casamento, com a qual não me consigo identificar, essa relação desvinculada da relação amorosa, da relação sexual… Isso é muito raro na minha geração, todos os rapazes começavam a sua iniciação sexual com prostitutas. Isso de alguma forma vai formar uma personalidade mais tímida [em mim], talvez, ou a procura por outros mecanismos de sedução diferentes. Falei que não, que se não pudesse falar sobre tudo, não escreveria.

A minha ex-psicanalista, que é muito minha amiga, falou que de jeito nenhum, que eu não podia publicar o capítulo “O silêncio e a fúria” [sobre alguns episódios de violência, como a agressão de uma pessoa num festival literário no Brasil, que foi notícia em todos os jornais brasileiros], que aquilo era uma agressão a mim mesmo e tal. Mas depois que o livro ficou pronto e teve uma boa receção, as pessoas mudaram seu julgamento. Ela, por exemplo, falou assim: “Te desaconselhei, mas mudei a minha visão”. Um amigo, que é um escritor muito importante, leu o livro, e comentou: “Láios, você narra a violência do seu pai de forma que nem ele ficaria chateado”. Ele costuma me chamar de Láios [nome do avó, que pode ser traduzido para português como Luiz], a gente se trata por alcunhas. Tentei ter algum tipo de ternura. Não houve auto-reverência ou auto-elogio, mas uma compreensão para comigo mesmo, uma compreensão que passou um pouco pela ternura.

Procurando evitar a crítica?
Sim. O meu livro não é um livro de literatura, mas busquei uma forma narrativa trabalhada para a não-ficção. Na literatura, o que é que os escritores fazem? Expõem a sua vulnerabilidade através das personagens. Resolvi expor a minha vulnerabilidade, mas a personagem sou eu mesmo. Acho que grande parte da comunicação que se dá entre o leitor e o escritor acontece por causa do encontro dessas vulnerabilidades. Quando você lê um romance, um livro que você gosta muito, é porque alguma coisa dentro de si, alguma das suas vulnerabilidades encontrou um par. A vulnerabilidade de uma personagem, no caso. Tentei mostrar isso. Isso é uma surpresa, talvez. Normalmente o que aconteceria seria o oposto.

"Quando comecei a escrever, falei para mim mesmo que ia contar tudo. E quando o livro ficou pronto, tive muitas reações contrárias. Minha família sempre me apoiou, mas demonstrou temor pelo grau de exposição que assumi."
Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras e autor de "O ar que me falta"

Escrever este livro foi um exercício terapêutico para si?
Foi. Já estava muito bem da depressão quando o escrevi. Depois de o escrever, mexeu um pouco comigo. Então foi terapêutico e anti-terapêutico.

Mexeu de uma maneira que não foi muito positiva?
Mexeu de uma maneira positiva, mas foi um exercício tão profundo que, passados alguns meses, depois de o livro sair, me desestabilizou um pouco. Isso misturado com a pandemia, com o isolamento na minha casa e isso tudo. A repercussão foi maravilhosa para mim. Não apenas as matérias dos jornais, passei a receber [muitas mensagens]. Sou uma pessoa muito recatada. Costumo brincar com a minha mulher assim: “Hoje meus amigos me mandaram um monte de emails”, as lojas de vinho e as lojas de discos, de que recebo as newsletters, porque gosto muito de música. Não costumo receber mensagens pessoais, muito poucas. Um dos efeitos da depressão foi que me fechei muito, me isolei muito. Não briguei com meus amigos, mas me isolei completamente. Com o livro, comecei a receber cinco, dez mensagens por dia, de pessoas falando das suas histórias, que se tinham identificado. Foi muito emocionante. No momento em que essa emoção baixou um pouco, senti o quanto tinha mexido comigo e passei alguns momentos curtos de instabilidade emocional. Mas foi tudo passageiro. Acho que seria impossível não acontecer com o grau de exposição pelo qual optei. Tem coisas que minha mãe ficou sabendo apenas pelo livro. Por exemplo, não sabia que eu ouvia a batida das pernas do meu pai [na cama nos piores momentos da depressão]. Ela chorou muito ao ler isso. Ela não sabia do bullying na colónia [de férias].

Diz mesmo que escondeu isso dos seus pais. Fez de tudo para que eles não soubessem.
Escondi até hoje. Tenho 65 anos. Minha mãe nunca soube, ficou sabendo pelo livro. Isso tem um peso, mexer com essas coisas que estavam tão escondidas. Mas acho que o resultado foi muito bom, só que houve momentos em que fiquei mais mexido.

Luiz Schwarcz fundou a Companhia das Letras, uma das mais destacadas editoras brasileiras, em 1986. Tem vários livros publicados, mas diz que a "vontade de ficção" morreu dentro de si

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O próprio processo de escrita deve ter sido muito emotivo. A vontade de escrever sobre o seu pai levou-o a procurar alguns dos seus amigos, que lhe contaram histórias que não conhecia. Isso também deve ter mexido consigo.
Fui falar com dois amigos do meu pai. Um morreu de Covid no início da pandemia. Era uma pessoa que gostava muito de visitar.

Dizia-lhe que estava cada vez mais parecido com o seu pai, não era?
Exatamente. Identificava-me com ele e eu fazia o que o meu pai fazia — emprestava dinheiro, nunca cobrei e tal. Os momentos em que conversei com essas duas pessoas foram, para mim, das melhores coisas do livro. Foi muito emocionante. O meu pai foi ficando um homem muito triste. Ele acabou indo trabalhar com o sogro. Meu avô tinha uma personalidade de liderança, era muito empreendedor.

Pelo que conta, parecia ser uma pessoa com uma personalidade muito forte.
Sim, muito forte. Na família, éramos as pessoas mais parecidas, meu avô materno e eu. Meu pai ficou sempre um homem muito apagado. Ele ficava muito feliz quando ia jogar às cartas com os amigos húngaros, provavelmente nas noitadas nos bordéis. Ia à sauna, também. A Magda, essa senhora [que era amiga do meu pai] que ainda está viva, tem quase 100 anos, quando saiu de Auschwitz foi parar a Roma, a uma casa abandonada sem telhado de um militar fascista, onde ficaram alojados alguns judeus que desejavam ir para Israel. Meu pai nesse período foi um líder. Ele fazia uns extras e recebia um pagamento. [Com esse dinheiro,] comprava castanhas para distribuir por todos, para terem o que comer. Houve um episódio que ela me contou, que não coloquei no livro: uma pessoa que estava alojada na casa teve um enfarte ou uma coisa assim e quem fez de tudo para ajudar foi o meu pai. Esse André de que ela me falou, eu não conheci. Com a tristeza e a depressão, e também com o relacionamento quase perverso com o sogro, que gerava uma certa opressão no trabalho, ele não era empreendedor, não era livre. Era um homem triste, infeliz no casamento e muito feliz na vida social com os amigos. Levanto a hipótese de que o pai não era uma pessoa deprimida antes do trauma do Holocausto, porque ele cantava música cigana, tinha uma alegria natural nas ocasiões sociais. Mas ele ficou muito apagado, principalmente em relação a mim e à minha mãe. Em relação à minha mãe, porque eles eram muito infelizes; e a mim, porque fui responsável por resolver essa infelicidade desde muito pequeno.

Queria que o livro mostrasse essas contradições, mesmo em questões em que poderia ter feito um julgamento moral. Podia ter condenado a infidelidade do meu pai. Optei por fazer um livro humano. Durante boa parte da vida, nos conflitos em casa, até tomava o partido dele, porque ele era a pessoa mais frágil. Minha mãe era um pouco mais forte. Para narrar isso, achei que me devia despojar completamente de julgamentos sobre as personagens — sobre mim mesmo –, de julgamentos positivos e negativos.

"Queria que o livro mostrasse essas contradições, mesmo em questões em que poderia ter feito um julgamento moral. Podia ter condenado a infidelidade do meu pai. Optei por fazer um livro humano."
Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras e autor de "O ar que me falta"

O Luiz cresceu sabendo que era judeu. Houve muitos sobreviventes do Holocausto que o esconderam dos filhos.
No nosso prédio, tinha uma família de húngaros que se dizia protestante. Depois eles assumiram o judaísmo.

Mas havia coisas que não sabia. Um dos episódios que relata no livro é o momento em que o seu pai conta como conseguiu escapar de ser levado para o campo de Bergen-Belsen, deixando o seu avô para trás.
O facto de que ele tinha escapado do comboio [para Bergen-Belsen] era o único que eu e a minha mãe sabíamos. Sabíamos que ele tinha essa tristeza profunda por causa disso. A minha mãe tinha me contado, mas não sabíamos de nenhum detalhe. Não sabíamos que ele se tinha escondido num monte de feno, que os guardas nazis o procuraram com forquilhas; que tinha agarrado o fazendeiro pelo pescoço com uma moeda na mão e lhe tinha exigido a sua roupa ameaçando que o matava, porque ele precisava de voltar para Budapeste e não podia trajar a roupa que estava usando, podia ser identificado como judeu; o que aconteceu na estação de comboio, com a mulher [desconhecida] que ele resolve beijar [para escapar de um grupo de nazis]… Ele era um homem muito lindo, o meu pai. Tinha olhos verdes, os cabelos ondulados, aquela covinha no queixo.

Parecia uma estrela de cinema.
Poderia ter sido. Tinha um nariz um pouco grande, mas poderia ter sido. Ele se parecia muito com alguns atores, como o Kirk Douglas. Essas coisas que ele contou em detalhe, como que a irmã falsificava os passaportes e que ele vestia o uniforme nazi para os distribuir, a gente soube naquela noite, durante uma conversa de duas, três horas, mais ou menos. Sabíamos a razão básica de o meu pai ter traumas, ter sido tratado com eletrochoque e ser muito deprimido — ele tinha escapado e o pai tinha morrido [no campo de concentração]. Era a única coisa que sabíamos, mas saber tudo o resto foi uma coisa. Não sei se eu consegui naquela noite. E foi de repente.

O editor é filho de um sobrevivente do Holocausto. O seu pai conseguiu escapar do comboio que o transportava para Bergen-Belsen. O seu avô ficou para trás, morrendo após a libertação do campo

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Estavam a assistir a um documentário sobre o Gueto de Varsóvia.
Não era especificamente ligado a Budapeste nem nada, mas ele começou a falar. Agora falando com você, pela primeira vez estou pensando que uma das razões principais terá sido a presença da minha namorada, que hoje é minha mulher [Lilia Moritz Schwarcz]. Acho que ele talvez não teria contado só para mim e para a minha mãe. A Lili tem essa capacidade de fazer com que as pessoas falem com ela sobre as coisas. Estou arriscando o pensamento agora. Acho que, no mínimo, ajudou muito o facto dela estar presente para ele se abrir. Com a minha mãe não se abriria, comigo talvez. Ele dizia sempre que era o meu melhor amigo, que eu era o melhor amigo dele, até de uma forma um pouco opressiva. Mas acho que o conjunto, ele precisar de falar uma vez sobre isso, o documentário, o jantar de Shabat e a presença da minha namorada, de que ele gostava muito e que tem esse dom, acho que pode ter contribuído. Foi inesquecível. Basicamente escrevi dois livros em torno dessa noite [risos].

Para ele também deve ter sido importante. Tinha aquela história dentro dele há muito tempo.
Com certeza. Ele fazia terapia, se tratava com um psiquiatra. Possivelmente para essas pessoas ele falou, mas em casa ele falou muito pouco sobre isso.

A psicoterapia foi e é muito importante para si. Fala sobre isso no livro. No caso do seu pai, sentiu que o ajudou de alguma forma?
Acho que pode ter ajudado, mas não havia como superar aquele trauma. E também havia a infelicidade do casamento, porque misturava tudo — a relação dele com o pai da mulher e ela entre o pai e o marido, ele querendo sair da empresa e não saindo. O ambiente familiar estava completamente contaminado. Para ter conversas pessoais comigo, ele saía do apartamento, como para me explicar o que era o sexo, um episódio que narro com uma certa ironia, porque ele explicou o sexo me mostrando onde eram as casas de prostitutas de luxo, não me falando da vida de um marido e de uma mulher. A gente saía no domingo de manhã e íamos fazer duas coisas. Uma eu detestava, que era ver aeromodelismo. Achava muito chato. A outra eu gostava muito. Naqueles tempos havia o que a chama em português do Brasil futebol de várzea, campos onde fazer um campeonato com equipas de bairros, que são muitas vezes campos de terra. No caminho para o aeroporto, que fica no centro de São Paulo e que era um aeroporto pequeno, havia vários campos. Nos domingos, víamos aquelas equipas com uniformes coloridos e eu ficava muito tocado com aquilo, porque gostava muito de jogar futebol. Devia ser a alegria da semana. Eu e meu pai ficávamos num morro — São Paulo ainda não era o que é –, agachados assistindo àqueles jogos de equipas anónimas, que não participavam em nenhuma liga profissional. Nessas ocasiões, a gente conversava, mas ele nunca me contou nada nesses dias. O que ele queria era confidências da minha parte, que lhe desse a prova de que ele era o meu melhor amigo. Me perguntava coisas e eu fui ficando cada vez mais retraído, cada vez contando menos. Se você tem a obrigação da confidência, não é confidência. São coisas que estou lembrando que não coloquei no livro [risos].

"Outro dia calhou aparecerem umas fotografias antigas com o meu avô e com a minha avó. É diferente olhar para uma fotografia da minha família depois de eles se terem transformado em personagens. É como se tivesse potencializado a minha relação [com eles]."
Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras e autor de O ar que me falta

Considera que a depressão do seu pai contribuiu para a sua própria depressão?
Acho que a depressão não tem apenas um determinante biológico. Foi um avanço muito grande quando a medicina descobriu que havia componentes hereditários, mas a hereditariedade da depressão não é uma coisa linear. Há pais que têm e um filho tem e o outro não. Existe a questão do género em si e episódios psicossociais que determinam que a depressão aconteça ou não. Acho que, no meu caso, há um lado hereditário, mas poderia ter isso no meu gene e não ter depressão se não houvesse todo esse conjunto de fatores. Se fosse só hereditário, não poderia ter escrito o livro [risos]. Não teria assunto.

Disse que queria compreender o seu pai e o seu silêncio. Acha que o conhece melhor agora, depois deste livro?
Quando fica se passa meses debruçado consigo mesmo, escrevendo, até na procura da melhor forma de escrever, de alguma forma está se relacionando com suas personagens. Então acho que sim. Houve uma coisa muito bonita na minha vida que foi a mudança na relação com a minha mãe, que foi amadurecendo para melhor. O apoio dela ao livro também, porque a consultei para saber se aceitava.

No início, ficou um pouco na dúvida, não foi?
Perguntou porque é que o estava fazendo. Foi quando comecei a explicar que o estava fazendo para ajudar os outros que parei no meio da frase e disse: “Não, estou fazendo porque preciso, para mim”. Foi aí que tive o clique. A relação com ela, que já estava muito boa, melhorou muito. Ela foi muito generosa e também oscilou. Primeiro falou que sofreu muito a ler [o livro], mas que não queria me impedir de o publicar. No dia em que o livro saiu chegou um aviso pela internet e alguém a avisou e ela teve uma crise. Demonstrou arrependimento. O livro estava pronto, fiquei desesperado, porque não lhe queria causar sofrimento. Depois ela releu [o livro] e muitas pessoas próximas dela gostaram e ela ficou apaziguada. Acho que mudou a minha relação com o meu pai e mudou muito a relação com a minha mãe.

Ainda existe muito preconceito em relação às doenças mentais. Acha que o seu livro, que fala de forma tão honesta e sincera sobre a depressão, pode contribuir para uma melhor compreensão?
Recebi cartas de pessoas que demonstraram que a família não compreendia o que era a depressão. Houve uma pessoa que me disse que a mãe se recusou a ler o livro. Essa pessoa queria que a mãe o lesse para entender e para não a punir por ser deprimida. A esperança era que o pai lesse. Pessoas pobres… Porque a ideia de que a depressão é uma doença de classe superior não é mais verdade. Muitas pessoas escreveram “agora entendo meu pai”, “agora entendo minha mãe”, “a personagem que gostei mais foi a sua avó”. Cada um lê da sua forma. Outro dia calhou aparecerem umas fotografias antigas com o meu avô e com a minha avó. É diferente olhar para uma fotografia da minha família depois de eles se terem transformado em personagens. É como se tivesse potencializado a minha relação [com eles], ficou maior depois de escrever [o livro]. Você pode notar que a minha relação com todos eles era muito forte. Muda a relação, porque você lida com as emoções e elas voltam. Diminui o peso do tempo. É quase como se tivesse vivido tudo isso de novo.

O Observador viajou até Óbidos ao convite do FOLIO — Festival Literário Internacional de Óbidos

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