Há uma questão que os professores de matemática costumam ouvir dos alunos: “Afinal, matemática serve para quê?”. A tutela esteve a preparar, durante os últimos seis anos, a resposta para dar aos alunos do secundário e mostrar que a disciplina é necessária para perceber, por exemplo, por que razão as eleições presidenciais de 1986, entre Mário Soares e Freitas do Amaral, tiveram duas voltas e não uma.
Esta explicação surge no capítulo de teoria das eleições, uma nova entrada, que se junta à matemática financeira e à estatística. Estes três capítulos podem ser incluídos no programa de matemática do 10.º ano do Ensino Secundário – numa vertente mais prática, menos abstrata e menos teórica. E poderão fazer parte do primeiro período do 10.º ano, para que os conteúdos sejam muito semelhantes em qualquer curso – em humanidades, ciências, artes ou no ensino profissional. Assim, “um aluno que queira mudar de matemática A para o ensino profissional no primeiro período, e vice-versa, não terá grande problema”, explica Jaime Carvalho Silva, professor e coordenador do grupo de trabalho que desenvolveu as propostas dos novos programas de matemática do ensino secundário — que ainda poderão sofrer alterações. As propostas, aliás, não são consensuais dentro da comunidade matemática.
Os documentos foram divulgados esta terça-feira, estarão em consulta pública até setembro e só o programa de Matemática Aplicada às Ciências Sociais (MACS) não teve alterações — por já ter esta vertente prática atualmente. Qualquer que seja a decisão final sobre os programas, que deverá ser tomada dois meses depois de encerrada a consulta pública, os novos programas só entrarão em vigor no ano letivo de 2024/2025, de acordo com a informação adiantada por João Costa, ministro da Educação, durante a apresentação dos documentos das Aprendizagens Essenciais de Matemática do ensino secundário.
Desenvolvidos nos últimos seis anos, os programas agora apresentados, explicou João Costa, pretendem “reequilibrar o ensino da matemática”, com a introdução de temas práticos, como as eleições, o IRS, os juros, os créditos ou a programação.
Nenhum conteúdo desaparece. No limite, poderá ser reduzido
Há novos capítulos e outros que foram reorganizados. “É introduzido um teorema que não era habitual dar-se no ensino secundário e que simplifica muito determinados cálculos, essencialmente o cálculo de limites”, explicou Jaime Silva, sempre numa perspetiva de “menos teoria”.
A maioria do capítulo das sucessões, que surge no programa do 11.º ano de matemática A, desaparece e, um ano à frente, no 12.º, o capítulo dos números complexos deixa de existir e é transportado para o primeiro ano do ensino secundário. A questão dos números complexos não é, de facto, simples. É que neste momento, um aluno do 10.º ano aprende que a equação x² = 2 não tem solução. Mas quando chega ao 12.º ano percebe que, afinal, existe solução, porque aprende os números complexos. “Uma das grandes preocupações do grupo de trabalho foi garantir a exequibilidade dos programas”, acrescentou o coordenador do grupo de trabalho para explicar a necessidade prática de transferir alguns conteúdos de uns anos para outros.
“Não eliminamos nenhum tema, mas alguns foram reduzidos, nomeadamente nos enquadramentos teóricos, e que não são praticados em nenhum país de referência”, como França, por exemplo. Nos últimos anos, o grupo de trabalho olhou para o que faz noutros países e até ponderou propor um 10.º ano comum a todas as áreas. A hipótese acabou por não se concretizar, mas estes documentos são apenas uma proposta. Ou seja, “ainda se pode fazê-lo, porque está tudo em discussão”.
“A matemática é importante nos telemóveis, mas poucos vão construir telemóveis”
Durante a apresentação aos jornalistas dos programas que estão agora em consulta pública, que aconteceu no ministério da Educação, tanto o ministro, como o coordenador do grupo de trabalho sublinharam várias vezes que a motivação dos alunos é fundamental. E que foi necessário encontrar métodos para puxar os alunos para os números, sem os afastar com teorias abstratas.
“A matemática é importante nos telemóveis, mas poucos vão construir telemóveis. Não chega dizer que a matemática é importante em termos genéricos. É importante quando se lê um jornal. Ler um jornal é logo a primeira dificuldade quando não se sabe matemática”, apontou Jaime Carvalho Silva.
Neste contexto, e para mostrar a vertente prática do mundo das equações, entra então a teoria das eleições, em que o objetivo é, segundo a proposta da tutela, “saber identificar o vencedor de um processo eleitoral através da maioria simples e da maioria absoluta”, ou “conhecer e aplicar o método de Hondt”, através da análise de contextos eleitorais.
Mas os casos práticos que podem entrar nas salas de aula de matemática não ficam por aqui. O ministério da Educação quer pôr os alunos a discutir o seguinte problema no capítulo de estatística: “O político questiona se valerá a pena candidatar-se às próximas eleições autárquicas do seu concelho”.
A necessidade de conhecimento matemático não se esgota, porém, na leitura de notícias sobre eleições, ou dados estatísticos. E é aqui que entra a literacia financeira, com inúmeros exemplos práticos e que serão úteis para o futuro dos alunos. A proposta aqui começa por reconhecer a diferença entre aquilo que é o salário bruto e o salário líquido, por saber interpretar um recibo de vencimento e por identificar escalões de descontos.
Estes conteúdos com exemplos práticos deverão ser lecionados no primeiro período do 10.º ano, e os alunos podem contar também com matemática para “conhecer e determinar o valor de alguns impostos sobre o consumo (IVA) e sobre o rendimento (IRS)”. A realidade das promoções, dos descontos, das poupanças, do crédito e dos juros está também incluída.
Programação nas aulas gera críticas
“As atividades de programação devem ser integradas com uma complexidade progressiva, sendo relevantes para o desenvolvimento de processos algorítmicos, de um pensamento estruturado e do raciocínio lógico” – este é o conselho do grupo de trabalho constituído pelo Ministério da Educação em relação aos conteúdos de programação, com linguagem Phyton, que deverão ser transversais a todos os programas dos diferentes anos.
Mas a introdução de novos conteúdos não está a ser consensual dentro da comunidade matemática, pelo menos para a Sociedade Portuguesa de Matemática, que já criticou o ensino de programação no secundário — sobretudo pela falta de tempo para cumprir os programas, que tantas vezes é referida pelos docentes.
“Diziam que o programa era muito extenso e que não se conseguia dar e metem programação, metem informática, metem pensamento computacional. Se o tempo já não chegava para dar matemática que era preciso dar, agora vai chegar para informática e para a matemática?“, questiona João Araújo, presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática.
A visão de João Araújo está bem longe daquela que é evidenciada pelos documentos divulgados esta terça-feira. Se, por um lado, a tutela quer os alunos a olhar de forma prática para os problemas, a Sociedade Portuguesa de Matemática defende uma visão mais abstrata da disciplina, antes de passar à prática.
“Uma coisa é ensinar a tabuada em abstrato e só depois é que a tabuada se aplica a tudo. Outra coisa é estar a ensinar a tabuada com contas de rebuçados: ‘Estão aqui dois meninos e cada um tem três rebuçados. Quantos rebuçados é que estão aqui ao todo? Seis. Então, decora, dois meninos e três rebuçados dá seis rebuçados’.”, remata João Araújo ao Observador, para explicar que, na sua opinião, é necessário a teoria antes da prática.