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Aos 50 anos, o escritor foi um dos primeiros a publicar na sua geração. Lança agora um romance e já tem o próximo livro praticamente terminado
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Aos 50 anos, o escritor foi um dos primeiros a publicar na sua geração. Lança agora um romance e já tem o próximo livro praticamente terminado

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Aos 50 anos, o escritor foi um dos primeiros a publicar na sua geração. Lança agora um romance e já tem o próximo livro praticamente terminado

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Manuel Jorge Marmelo: "No dia em que escrever for doloroso, deixo imediatamente de o fazer. Não sou masoquista"

Prestes a lançar o livro “A Última Curva do Caminho”, Manuel Jorge Marmelo fala da liberdade na morte, do dom da criatividade, da impossibilidade em formar leitores e da procura pelo reconhecimento.

“Parabéns pelo seu livro, depois dá-me um autógrafo?” Esta é a frase que Manuel Jorge Marmelo ouve na fila para comprar café, bebida que o acompanha durante toda a entrevista. O escritor portuense lança esta quinta-feira no festival literário Correntes D’Escritas, na Póvoa de Varzim, A Última Curva do Caminho, o seu novo romance, publicado pela Porto Editora.

“A escrita deste livro foi um processo muito longo, que durou quase 11 anos”, revela o autor de uma história que conta os últimos dias de vida de um professor octogenário. Nela estão refletidos conceitos como a morte, a memória, o arrependimento, a angústia ou a solidão, numa narrativa sem pressa e sem rodeios. São, aliás, as suas próprias memórias, e as da sua avó materna de Cinfães do Douro, o ponto de partida do livro, que pretende ser “mais um contributo” para o debate sobre a morte medicamente assistida. Para Marmelo, a morte, tal como a escrita, parece ser uma verdadeira inevitabilidade. “Temos demasiado receio da morte, é uma coisa que evitamos a todo o custo falar ou pensar, quando é algo tão natural como nascer, não há razão para ter tabus relativamente a esse momento.”

Descobriu cedo o poder da criatividade, ferramenta que até o levou a ganhar um concurso na escola cujo prémio foi a sua primeira viagem de avião. Dedicou-se depois ao jornalismo e com ele nasceu a sua atenção permanente perante o mundo e os temas do quotidiano, mas há 26 anos que publica livros, onde conta histórias sem esforço ou especial sofrimento. “Da mesma forma que não quero sofrer para morrer, também não quero sofrer para fazer nenhuma outra coisa na vida. Escrever é sempre um enorme prazer, ver surgir, muitas vezes do nada, personagens e frases, é um processo quase mágico.”

As ideias podem assaltá-lo com um computador nos joelhos a ver uma página em branco ou numa simples viagem de autocarro, tudo depende do seu olhar sobre a realidade com uma espécie de filtro, onde cada imagem ou cada conversa pode ter um potencial literário. No caso de Marmelo, este olhar sobre as coisas é também pessimista e talvez por isso os seus livros sejam crus e despidos de voltas desnecessárias.

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Garante que os livros existem para estabelecer diálogo com alguém e afirma que a sua maior contradição é continuar a escrevê-los mesmo sabendo que os seus chegam a poucas pessoas, pelo menos não tantas como gostaria. “Se calhar os meus livros não interessam às pessoas e ponto final, tenho que me acomodar a essa ideia.” Manuel Jorge Marmelo não acredita que seja possível formar leitores ou ensinar alguém a escrever criativamente, defende que é tudo uma questão de escolha e a dele parece que será sempre escrever, independentemente do reconhecimento.

"Tento que a literatura que faço seja o mais descolada da realidade possível."

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

A Última Curva do Caminho fala da passagem dos dias, da erosão da memória, de angústia, solidão e arrependimento. É mesmo difícil envelhecer?
Olhar para trás e fazer balanços na vida em determinados momentos é mais ou menos inevitável, é algo inerente ao ser humano, embora o livro não resulte muito disso, não é minimamente autobiográfico. Existem partes do livro que resultam de migalhas de memórias pessoais e familiares, mas esse lado mais autorreflexivo do personagem [Nicolau Coelho] é muito pouco autobiográfico. Tentei simplesmente colocar-me na pele de uma pessoa com 80 e muitos anos, que está perto de morrer, e imaginar o que lhe passaria pela cabeça. A escrita deste livro foi um processo muito longo que durou quase 11 anos.

Porquê tanto tempo?
Basicamente porque nunca me fui sentindo muito satisfeito com o resultado. Este livro chegou a estar na Quetzal para ser editado e a editora achou que não estava bem, depois uma parte dele chegou a ser finalista do prémio Leya e como não ganhou senti-me autorizado a voltar a pegar nele, a reformular tudo e basicamente foi o que fiz. As memórias do passado são muito semelhantes, mas depois todo o enquadramento é diferente. Na primeira versão o livro era narrado por um fotógrafo, por exemplo.

Ele parte dessas memórias autobiográficas? Foi um bom ponto de partida?
Sim, tinha várias histórias de família que gostava de contar. A história do Cricas, por exemplo, era algo que a minha avó materna, natural de Cinfães do Douro, contava muitas vezes nos almoços de domingo, onde explicava que seu avô tinha perdido uma fortuna com as mulheres. Ao fim de 10 anos, isso deu origem ao professor Nicolau Coelho, um homem que partiu dessas minhas memórias, mas depois faz uma reflexão a partir delas.

O lugar de refúgio deste professor é inspirado em Cinfães do Douro?
Não, digamos que é uma vila literária que mistura as referências de Cinfães do Douro com algumas de Castelo de Vide, lugar onde trabalhei nos últimos meses de escrita do livro. Eu próprio me refugiei lá algumas vezes para fazer o trabalho final de afinação das frases e do tom do texto. Há referências da Beira do Alto Alentejo, e mesmo o país assemelha-se muito com Portugal, mas não é exatamente Portugal, percebe-se que aquela capital não é Lisboa. Tentei criar um cenário que fosse ele próprio ficcional a partir de várias referências.

Há algo de si neste Nicolau Coelho?
Ele tem muito de ficção e pouco de autobiográfico, mas todos os livros acabam por ter momentos autobiográficos, não há como fugir disso, escrevemos sempre em função das nossas experiências. O Nicolau Coelho não sendo autobiográfico, acaba por acolher experiências que podem não ser pessoais, mas que vi noutros, principalmente a forma como ele lida com a doença e com a morte.

Essa ideia de velhice, queda e de futuro comprometido estão presentes no livro, mas ele imprime algum tipo de esperança?
A última vez que pensei sobre isso foi quando estávamos a escolher a capa e havia duas possibilidades, esta fotografia que saiu e uma imagem a preto e branco de um homem a caminhar de costas com umas árvores à volta. Embora goste muito de fotografias a preto e branco em capas de livros, acabei de dizer à Porto Editora que não queria essa capa porque iria transmitir uma imagem demasiado pesada e não creio que seja essa a mensagem que o livro passa. O final, por muito dramático que possa ser, é o sentimento do Nicolau a tomar uma decisão e isso não é minimamente negativo, é mais um ato de libertação. Queria passar a ideia de que a nossa vida nos pertence, que é composta por vários momentos e a morte é só mais um deles. Se durante a vida nos é permitido escolher os caminhos que tomamos, também devemos ter essa possibilidade de escolha no final da vida.

Este livro acaba por ser muito atual numa altura em que se debate a morte medicamente assistida. Foi pensado com essa intenção?
Sim, quis bastante que este livro pudesse ser mais um elemento para a discussão que volta e meia regressa ao Parlamento. Creio que é uma visão que não pretende ser mais verdadeira do que nenhuma outra, apenas gostaria de dar mais um contributo para esse debate e reflexão.

Faz falta falarmos mais da morte?
Acho que sim. Temos demasiado receio da morte, é uma coisa que evitamos a todo o curso falar ou pensar quando é algo tão natural como nascer, não há razão para ter tabus relativamente a esse momento. Claro que uma parte da nossa civilização foi construída em cima do receio do desconhecido que a morte implica, no fundo não sabemos bem o que nos acontece depois de morrer, apenas sabemos que alguém se encarrega depois de se livrar do nosso corpo. Há sentimentos associados a ela como a dor, a doença ou a consciência de degeneração, que de algum modo foram servindo para criar as religiões, aliás, elas não são mais do que uma tentativa de gerir esse desconhecido que vem a seguir à vida. O mais certo é que não nos aconteça absolutamente nada, simplesmente deixamos de existir.

Já pensou como gostaria de morrer?
A única coisa que gostaria era não passar por processos degenerativos radicais em que as pessoas passam meses não propriamente a viver, mas a sobreviver, sem aproveitar aquilo que deve ser a vida, em situações muito tristes e delicadas. Gostava de não passar por isso, de conseguir evitá-lo, nem que seja por uma decisão pessoal de terminar a minha vida sem esperar uma causa natural. Não temos de esperar pelas causas naturais. Ao contrário de todos os outros seres vivos, temos a capacidade de decidir sobre a nossa vida, podendo escolher algumas coisas que nos acontecem.

Tem 50 anos, sente que já está em contagem decrescente para esse momento?
Sinceramente acho que já penso nisso desde muito cedo, não tenho isso localizado no tempo, mas pensar na morte sempre foi para mim uma coisa natural. Como nunca tive o refúgio da religião e esse amparo, sempre foi uma coisa que encarei sabendo que me acontecerá um dia, mais cedo ou mais tarde, mas com a perspetiva clara do que não quero passar para chegar lá. Há uns anos um tio meu foi almoçar a casa da filha e ao regressar a casa dele de metro caiu para o lado e morreu. Se puder escolher, gostaria de morrer assim, de forma instantânea e indolor.

"Há de existir alguma predefinição no cérebro de quem escreve que filtra tudo aquilo que observamos do ponto de vista literário, começamos imediatamente a imaginar se aquilo pode ou não ser aproveitado para uma história."

O seu processo criativo é doloroso, solitário ou exigente?
No dia em que escrever for um ato doloroso para mim, deixo imediatamente de o fazer, não sou masoquista. Da mesma forma que não quero sofrer para morrer, também não quero sofrer para fazer nenhuma outra coisa na vida. Escrever é sempre um enorme prazer, ver surgir, muitas vezes do nada, personagens e frases, é um processo quase mágico. Sentarmo-nos em frente a uma página em branco e começar a escrever sobre pessoas que não conhecemos de lado nenhum e histórias que nunca ouvimos contar, e que nascem apenas no nosso cérebro, é extraordinário.

Escreve mais de dia ou à noite?
Ambos, mas mais durante o dia. Há uma passagem neste livro em que ele diz que está a ouvir os cães à noite a ladrar e essa parte escrevia-a, efetivamente, à noite e a ouvir cães em Castelo de Vide, sozinho, numa casa muito fria. De alguma forma, aquilo teria que ser escrito naquele momento, em que eu estava sujeito aquelas condições.

Escrever é uma coisa metódica ou algo que surge espontaneamente?
Acontece-me das duas formas, há dias em que me sento para trabalhar e trabalho, mas também posso ir no autocarro, lembro-me de alguma coisa e tiro notas no telemóvel ou num pequeno caderno.

Tem muitas ideias no autocarro?
Sim, o autocarro é bastante produtivo nesse ponto de vista. Passei uns anos a escrever “Crónicas do Autocarro”, que basicamente são histórias que eu via a acontecer à minha frente e que depois me apercebi que as outras pessoas não viam aquela história da mesma maneira que eu. Há de existir alguma predefinição no cérebro de quem escreve que filtra tudo aquilo que observamos do ponto de vista literário, começamos imediatamente a imaginar se aquilo pode ou não ser aproveitado para uma história. É uma deformação nossa, estamos sempre a ver as coisas através de filtros, nem sempre é positivo, outras vezes dá jeito. Para a maioria das pessoas o que estou a dizer pode não fazer sentido, mas sinto muito isto, de algum modo observo a realidade tornando-a literatura.

É uma coisa consciente?
É algo que me acontece sem eu dar por isso, portanto de alguma forma é inconsciente, sim. Não saio propriamente de casa com uns óculos que me permitem ver a realidade de forma literária, mas as coisas efetivamente transformam-se dessa forma. Tento que a literatura que faço seja o mais descolada da realidade possível, mas mesmo a irrealidade da ficção é alimentada pelo que nos rodeia, é sempre isso que alimenta o escritor por mais irreal ou surreal que sejam os livros que escreve.

A capa de "A Última Curva no Caminho", de Manuel Jorge Marmelo (Porto Editora)

A sua base é o jornalismo, os seus livros têm sempre refletida uma certa atualidade? Em Tropel isso acontece, é um objetivo ou surge naturalmente?
É outra deformação, neste caso uma deformação profissional. Fui jornalista durante 23 anos, fui treinado para estar atento à realidade e aos temas do quotidiano, que depois influenciam a forma como olho para tudo. Gostava muito de ser capaz de ver telejornais sem estar constantemente a fazer leituras do que estou a ouvir em função de toda a experiência que acumulei no jornalismo, mas não é possível. É mais uma deformação minha, além da deformação que a literatura já imprime em mim.

Ter essa herança profissional facilita ou dificulta quando se quer criar histórias?
Facilita a criação de histórias, mas dificulta a convivência com a realidade.

Afirmou numa entrevista que escreve hoje “de uma forma que dói mais porque o mundo só piorou”.
Disse essa frase a propósito do “Tropel”, que é um livro sobre um problema contemporâneo que é particularmente grave e estúpido. A chegada dos refugiados e dos emigrantes à Europa é apenas uma consequência de 500 anos de exploração europeia de continentes como África, Ásia e América, são pessoas cujas vidas são destruturadas logo à nascença porque há uma herança colonial que modificou o que seria a vida normal daquelas pessoas e não somos capazes de assumir a responsabilidade desse facto. Cada vez mais esse problema se vai agudizando pelas próprias dinâmicas económicas e sociais de um mundo cada vez mais globalizado.

Quanto mais conhece o mundo mais tem a certeza que ele está pior?
Não tenho a certeza que as desigualdades sejam piores do que aquelas que existiam há 500 anos, passou foi a existir uma maior consciência delas. Isso está a criar um choque de mundos, a mim choca-me muito ver crianças a morrer no Mediterrâneo e a darem à costa em praias das ilhas gregas, parece-me uma coisa tão atroz. Em pleno século XXI conseguimos fazer coisas tão incríveis como descobrir curas para doenças, lançar sondas para o espaço, construir barragens, mas depois não conseguimos resolver coisas tão básicas.

Ter essa olhar pessimista sobre a realidade ajuda-o a escrever melhor?
Acredito que os pessimistas são só realistas que têm razão antes do tempo [risos]. Se fosse muito otimista e esperançoso, certamente não escreveria sobre estas temáticas e os meus livros seriam muito diferentes. As tais deformações que adquiri ao longo da vida, por um lado do jornalismo e por outro a deformação do constante desmontar da realidade na tentativa de ver para lá do que nos é oferecido pelos órgãos de comunicação social, não me deixa outra saída se não esta desconfiança permanente.

"Um livro é sempre uma forma de estabelecer um diálogo com outras pessoas."

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Continua a sofrer com o resultado final do seu trabalho? Ainda pensa muito em voltar atrás para mudar alguma coisa?
Comecei a publicar muito cedo, numa altura em que não era muito fácil publicar em Portugal. Talvez tenha sido o primeiro escritor da minha geração a começar a publicar, por isso era inevitável que os meus primeiros livros fossem pouco amadurecidos.

Arrepende-se de algum?
Não, fazem todos parte do caminho que fiz, tal como na vida os erros que cometemos acabam por nos ensinar sempre alguma coisa, tudo faz parte de um processo de aprendizagem. Hoje só consigo escrever este livro porque lá atrás escrevi outros nos quais hoje me revejo muito pouco. Sempre entendi a literatura como um processo evolutivo, tento sempre que o próximo livro seja um pouco melhor que o anterior, no dia em que o deixar de sentir tenho que admitir que a coisa está para acabar.

Ainda há histórias para contar ou já está tudo contado?
Há sempre histórias para contar, mas elas hoje acabam por ser todas muito semelhantes umas às outras. Temos alguns milhares de anos de civilização e o essencial das histórias é decorrente do que é a nossa vida social e por muito que mude a aparência as histórias resultam da forma como os seres humanos se relacionam, nesse sentido são todas muito parecidas.

Mas procura em contar algo novo?
Sim, acho que o trabalho do escritor passa muito por aí, por fazer com que uma história faça sentido para nós. Tenho a certeza absoluta que há muitos outros livros sobre os últimos dias de vida de um octogenário, mas esta história fez sentido para mim e espero que os outros se possam rever nisso.

Escreve sempre para si? Nunca a pensar no outro?
Escrevo sempre para mim, tendo sempre certo que só faz sentido publicar um livro, sujeitando-o à avaliação de outros, se estabelecer um diálogo com alguém. Um livro é sempre uma forma de estabelecer um diálogo com outras pessoas. Claro que o escrevo para mim, mas se tenho a intenção de o publicar, estou já a pensar nessa linha que posso estabelecer com o leitor.

Isso influencia o processo de escrita?
Sim, influencia bastante. O Tropel foi um livro que escrevi convencido que não o iria publicar, estava chateado com uma série de circunstâncias que o mundo literário tinha gerado à minha volta e talvez a dureza extrema desse livro resulte disso. O “Safoda” que encontramos neste “A Última Curva do Caminho” talvez seja uma expressão que esteve sempre na minha cabeça enquanto escrevi o “Tropel”, em que quase choquei o leitor, criando um entrave ao estabelecimento desse diálogo.

Diz que gosta que as suas obras reflitam contradições, qual é a sua maior contradição?
Provavelmente a minha maior contradição será o facto de ao fim de 26 anos a publicar livros continuo a escrever, mesmo tendo percebido que esse diálogo que procuro estabelecer com o leitor é quase sempre insatisfatório porque os meus livros chegam a muito poucas pessoas. Durante algum tempo tomei a decisão de não publicar por ter essa perceção de os meus livros não estarem a estabelecer qualquer tipo de diálogo com os outros.

Foi um período difícil?
Nada. O que gosto realmente de fazer é escrever, creio que irei continuar a escrever independentemente das circunstâncias, de um livro ser ou não publicado.

Há alguma explicação para os seus livros chegarem a menos gente do que gostaria?
Há várias teorias sobre o assunto, desde logo a minha pouca capacidade de comunicar os meus livros enquanto produto que tem de ser vendido, mas não sei se é por aí. Se calhar os meus livros não interessam às pessoas e ponto final, tenho que me acomodar a essa ideia. O que é absolutamente contraditório é que continuo a escrevê-los.

Escreve desde 1996 e começou a ser premiado em 2014. Sente que hoje tem o reconhecimento que merece?
Seria muito pretensioso da minha parte responder que sim. Não sei se mereço mais reconhecimento do que aquele que tenho, até porque existe sempre em mim uma perceção enviesada relativamente à qualidade dos meus livros. Claro que já recebi alguns prémios e eles traduzem um reconhecimento por parte de um determinado júri e isso traz uma validação e essa validação tem sido suficiente, pelo menos, tenho sabido viver com isso. Não tenho a certeza que os meus livros merecessem mais prémios do que aqueles que tiveram ou se até não mereciam nenhum.

Mas merecem mais leitores?
Gostava que sim, mas os leitores também fazem as suas escolhas por algum tipo de critério e esse critério é tão válido como o meu.

"Não tenho a certeza se é possível formar leitores, acho que é possível permitir às pessoas terem acesso a determinadas coisas, mas depois dentro da enorme quantidade de alternativas que têm à disposição fazem as suas próprias escolhas."

O primeiro inquérito nacional aos hábitos culturais dos portugueses, divulgado recentemente, concluiu que em 12 meses 61% dos portugueses não leu um livro. Que interpretação faz deste resultado? Surpreendeu-o?
Não me surpreende, se me dissessem que era 75% ou 80% também acharia normal. Temos a tendência para ver o mundo à nossa volta a partir do que é a nossa própria vida, mas se tivermos contacto com outros níveis sociais percebemos que a maior parte das pessoas passa a vida ao telemóvel ou em frente à televisão e isso não é compatível com ler livros.

Essa constatação desmotiva-o ou é lhe completamente indiferente?
Creio que a quantidade de pessoas que historicamente leu livros sempre foi muito pequena. Claro que quando o livro era o único objeto cultural ao qual tínhamos acesso, sem cinema e concertos a toda a hora, toda a gente lia, mas hoje em dia o livro é uma das muitas opções e há opções muito mais fáceis. É o que é.

A mudança pode passar pela formação? Como se cria uma relação com a leitura?
No meu caso foi não forçando absolutamente nada, nunca disse aos meus filhos que eles tinham que ler e tornaram-se ambos leitores naturalmente porque tinham livros em casa à sua disposição e porque viam alguém ler. Não tenho a certeza se é possível formar leitores, acho que é possível permitir às pessoas terem acesso a determinadas coisas, mas depois dentro da enorme quantidade de alternativas que têm à disposição fazem as suas próprias escolhas. É como ser fumador, decidimos ser fumadores num determinado momento da vida porque os cigarros estão à nossa disposição, mas há muitíssimas pessoas no mundo que embora tenham cigarros à sua disposição nunca se tornam fumadores. Penso que tudo a ver com escolhas, umas vezes são boas e outras vezes são más.

A verdade é que os hábitos de leitura mudaram, o livro como o conhecemos hoje continua a ser um objeto que faz sentido comprar?
Acho que faz exatamente o mesmo sentido que fazia antes. Durante anos alguns vários órgãos de comunicação social tentaram vender a ideia de que os livros iriam acabar e passavam a ser digitais, que íamos passar a ler todos em tablets e efetivamente isso não aconteceu. A relação que se estabelece com o livro não é só com o seu conteúdo, mas com o objeto em si. Mesmo sabendo que tenho livros na mochila e isso me dá cabo das costas, tenho de ter o livro físico, dá-me outro prazer, não me faz sentido ler de outra forma.

Não é possível formar leitores, mas é possível ensinar alguém a escrever criativamente?
Também acredito que não. É possível transmitir um conjunto de ferramentas e treinar esse olhar sobre as coisas, mas a criatividade é algo que está a cima disso. Se alguém não tiver uma pinga de curiosidade na sua relação com o mundo e com os outros jamais poderá ser criativo.

Como foi no seu caso?
Percebi que era criativo numa idade muito jovem, quando andava no 9.º ou no 10.º ano e transformava um trabalho escolar numa diversão, em que para explicar alguma coisa da matéria citava filmes do Woody Allen ou falava nos esquimós na Lapónia. Quando os professores começam a reagir favoravelmente a este tipo de brincadeiras comecei a perceber que tinha uma ferramenta que poderia utilizar noutras circunstâncias da vida. Lembro-me sempre que a primeira viagem que fiz de avião foi um prémio que recebi de um trabalho escolar, era concurso em que tínhamos que escrever um pequeno ensaio sobre a vida e obra de Cesário Verde, ganhei uma viagem à Madeira com 17 anos e fui sozinho. Foi a minha primeira ausência de casa durante 15 dias, foi uma aventura. Percebi que a criatividade pode dar frutos, teve essa vantagem. Depois acho que só me tornei jornalista porque tinha esta relação prévia com a escrita e depois só me tornei escritor porque tinha este treino prévio com o jornalismo.

"Se alguém não tiver uma pinga de curiosidade na sua relação com o mundo e com os outros jamais poderá ser criativo."

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Porque é que o Crónica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez, é o livro da sua vida?
Na verdade, vou mudando os livros da minha vida todos os dias.

Qual é o de hoje?
Provavelmente o Cem Anos de Solidão ou o Dom Quixote. O Crónica de uma Morte Anunciada é um livro perfeito na sua estrutura, em poucas páginas o autor conta uma história sem palavras a mais, sem voltas desnecessárias no enredo, é perfeito do ponto de vista narrativo, o autor não pôs palha para que o livro tivesse 500 páginas.

É isso que o chateia mais nos livros?
Sim, uma das coisas é essa. Agora, por exemplo, estou a terminar um livro com 300 páginas, mas não é nada forçado. Chama-se Olhar para Trás, do Juan Gabriel Vasquez, é uma história que acompanha a vida de uma família em várias décadas e tudo o que está ali faz sentido, mas quando isso não acontece deixo de ler. Já deixei livros a meio, ou até antes do meio.

Já está a pensar no seu próximo livro?
Diria que o meu próximo livro está praticamente escrito, mas ainda estou no processo de revisão. Comecei a escrevê-lo no início do período pandémico, apesar de não abordar este tema, aproveitando aquele tempo inútil que quase todos passamos em casa. Tenho a sorte de ter este refúgio e esta diversão que é pousar o computador em cima dos joelhos e começar a inventar coisas.

Sempre fez questão de continuar a viver no Porto, porquê?
Não sei se vou ficar sempre no Porto, mas nunca me fascinou a ideia de me mudar para uma cidade maior. Há cerca de dois anos tive uma proposta para ir trabalhar num ministério, que não vou dizer qual, e recusei porque não faz sentido mudar-me para uma cidade grande. O meu modo de vida passa muito por andar a pé e de autocarro, fazer circuitos pequenos, no Porto consigo encontrar uma dimensão urbana e uma relação com a paisagem que ainda é gerível. Em Lisboa teria muita dificuldade em atravessar avenidas com seis faixas de rodagem, é algo que se torna inóspito para mim.

Não teria eventualmente mais leitores se vivesse em Lisboa?
Não pode passar por aí, caso contrário teria que me mudar para Nova Iorque, Rio de Janeiro ou São Paulo, onde teria acesso a mercados muito maiores. Provavelmente passará por outras coisas como termos a sorte de alguém com influência suficiente reparar no nosso livro. A Elena Ferrante, que ninguém sabe muito bem quem é ou onde escreve, foi praticamente ignorada até uns críticos em Nova Iorque a terem descoberto e a terem transformado num fenómeno mundial.

Espera que esse fenómeno consigo?
Não, também acho que não lidaria bem com esse tipo de atenção. Dificilmente conseguiria manter a vida que gosto e que tenho se não pudesse andar na rua sem ser interrompido.

Viver exclusivamente da escrita é um desejo?
Sim, tenho que fazer outras coisas profissionalmente porque os livros não me permitem pagar contas. Neste momento faço assessoria numa ordem profissional e projetos de escrita encomendados que vão aparecendo, vou tentando viver disso.

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