O momento não passou despercebido a alguns dos presentes. Assim que os especialistas terminaram as suas intervenções, Marta Temido deu a palavra a Marcelo Rebelo de Sousa esperando que o Presidente da República, como tem vindo a ser hábito, colocasse alguma questão. O Presidente não deu resposta e, mais tarde, quando foi novamente chamado disse não ter perguntas. Entrou mudo e saiu calado.

Não é a primeira vez que acontece mas, aos olhos de alguns dos intervenientes nesta reunião, o silêncio do Presidente tem um significado político nesta altura: Marcelo não queria desconfinamento antes da Páscoa, o Governo vai fazê-lo; Marcelo não queria desconfinamento por regiões, o Governo pondera-o; Marcelo não queria que as coisas fossem fossem feitas de véspera, o Governo prepara-se para anunciar um plano de desconfinamento a 11 de março e começar a executá-lo a 15 de março.

Tudo isso ficou evidente na última declaração que o Presidente da República fez ao país. “A Páscoa é um tempo arriscado para mensagens confusas ou contraditórias, como, por exemplo, a de abrir sem critério antes da Páscoa, para nela fechar logo a seguir, para voltar a abrir depois dela. Quem é que levaria a sério o rigor pascal? É uma questão de prudência e de segurança manter a Páscoa como marco essencial para a estratégia em curso”, sublinhou Marcelo.

E disse mais: “Que se estude e prepare com tempo e bem o dia seguinte, mas que se escolha melhor ainda esse dia, sem precipitações, para não repetir o que já se conheceu. E nunca se confunda estudar e planear com desconfinar.”

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O Governo, pelo menos aparentemente, não seguiu o apelo do Presidente da República. E o silêncio de Marcelo foi interpretado por alguns dos representantes partidários e parceiros sociais ali presentes como um cartão amarelo à estratégia do Governo. Os próximos dias trarão mais capítulos desta história feita a dois.

Papéis invertem-se

Ao contrário do que acontecera na última reunião do Infarmed, desta vez António Costa interveio e Marcelo ficou em silêncio. Assim que acabaram as apresentações dos peritos, o primeiro-ministro elogiou o trabalho dos especialistas e aproveitou para deixar uma nota: “O decisor político fica, a partir de agora, habilitado a ter uma base científica mais sólida para tomar as suas decisões.”

Até aqui, Costa nunca tinha podido dizer isto. O primeiro-ministro chegou mesmo a sair incomodado de uma destas reuniões de peritos, já depois do primeiro confinamento, pela falta de acordo entre cientistas. E há um mês, na reunião em que o epidemiologista Manuel Carmo Gomes defendeu que fossem fixadas linhas vermelha, aproveitou para pedir um “consenso” — apelo que caiu em saco roto.

Agora foi diferente e António Costa saiu com um encosto mais firme — como notou nas redes sociais. O epidemiologista Henrique Barros definiu cinco níveis indicados para desconfinamento; o matemático Óscaar Flegueiras definiu as respetivas metas (números de casos por cem mil habitantes); e Raquel Duarte, médica e ex-secretária de Estado, apontou a concretização de algumas medidas. António Costa terá de chamar a si as decisões políticas, mas nunca como até agora teve uma base científica tão consensualizada — ou tão consensualizada como seria possível.

As guidelines (possíveis)

Na sala, os especialistas foram questionados por alguns partidos e também pelo representante da Confederação Empresarial, sobre os passos a seguir nos próximos meses. Nem por isso saíram totalmente firmes. “Parece haver consenso para desconfinar a partir de março, mas sobre tudo o resto há dissenso”, comenta um dos presentes na reunião ao Observador.  Exemplo: em matéria de testes parece haver um acordo em aumentar o número de testes feitos, mas depois há quem, como Henrique Barros, questione utilidade de um aumento do número de testes. O próprio Infarmed também tem dúvidas sobre o que adianta a massificação de testes.

Em contrapartida, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, avançaram os responsáveis, entregou ao Ministério de Saúde uma proposta de task force para rever a estratégia de testagem. Baralhando e dando de novo: não há um entendimento firme sobre qual deve ser a estratégia de testagem; mas já há uma task force para aumentar o número de testes.

O mesmo sobre o desconfinamento por regiões. António Costa já admitiu que seria uma possibilidade, há especialistas que o defendem e outros que discordam. Segundo várias fontes que participaram no encontro desta segunda-feira, “não há acordo entre especialistas”. “Há alguns que querem que sejam usadas métricas nacionais e outras apenas regionais”.

No limite, até pode existir uma conjugação das duas estratégias: as escolas arrancam todas ao mesmo ritmo, independentemente da região; outros setores da economia podem desconfinar de forma mais ou menos rápida dependendo do concelho onde se inserem. Está tudo nas mãos de António Costa.

Uma coisa é certa: este trilho desenhado pelos especialistas não responde a tudo e o Governo também saiu da reunião sem se comprometer com nada. Aliás, sobre a situação específica das escolas, nunca houve uma resposta concreta além do que foi dito nas apresentações e que aponta para a abertura de creches e pré-escolar ainda em março. Quanto ao resto, o Governo empurra para o Conselho de Ministros de quinta-feira, que vai discutir e aprovar o plano de desconfinamento.

As preocupações

Na parte das perguntas — que foi fechada ao público — a palavra-chave foi cautela. “Há entendimento de haver condições para começar a desconfinar mas com cautela“, sublinha uma das fontes que esteve na reunião.

Óscar Felgueiras, por exemplo, defendeu que seja acrescentado um indicador a todos os propostos (número de casos por cem mil habitantes, transmissibilidade e internamentos): o crescimento a sete dias ou o crescimento a 14 dias do R (índice de transmissibilidade).

“A zona de preocupação é quando a incidência a 14 dias está acima dos 240 casos por cem mil habitantes ou exista uma tendência forte de crescimento”, sublinhou o matemático, que defendeu que “a aceleração do número de casos deve aumentar o patamar de risco”. A partir dos 120 casos, com um crescimento a 30%, deve haver um salto de patamar de risco (dos cinco apresentados). E, para descer o mesmo, com um recuo de 30% dos casos, deve descer o patamar de risco, detalhou.

Há, assim, margem de adaptação para o Governo em cada um dos modelos apresentados. Aliás, outro exemplo: Felgueiras também defendeu que o nível de risco de um concelho influencie os concelhos limítrofes, produzindo uma maior “estabilidade” e “homogeneidade” do mapa do país, com mais concelhos com iguais níveis de risco.

A “base científica” que os especialistas deram (finalmente) a Costa

Para a história da reunião, que deve ser a última antes do desconfinamento após a terceira vaga da pandemia, fica o cenário de “descida” dos números de contágios e internamentos em Portugal, com um Rt médio de 0,74, abaixo de 1 em todas as regiões do país e o mais baixo da Europa. Contudo, o valor mais baixo registou-se a 10 de fevereiro e, neste momento, “a redução tem vindo a desacelerar nos últimos 15 dias”, segundo Baltazar Nunes. E se o Rt tem isso e vai continuar a ser um critério para definir medidas, Óscar Felgueiras, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, propôs que se use um “indicador adicional”: o R, o crescimento a sete dias ou o crescimento a 14 dias por este valor conferir “mais estabilidade à adoção de medidas”.

Durante toda a reunião, as datas foram substituídas por critérios, linhas e objetivos. O epidemiologista Baltazar Nunes foi o único a avançar com uma data (mas não a ligou diretamente a um abrir de portas): a previsão é de que a 15 de março Portugal esteja “muito perto dos 60 casos por 100 mil habitantes”, o cenário que tem vindo a ser apontado pelos especialistas para desconfinar. Além dos 60 mil casos por habitantes, é importante que Portugal consiga um “Rt menor do que 1 ou muito próximo de 1”. E, para que a abertura se torne real, o epidemiologista diz que em primeiro lugar deve estar o “controlo da transmissão na comunidade e nos grupos de risco”, depois a “sustentabilidade e qualidade de resposta nos serviços para doentes Covid e não-Covid” e, por fim, “minimização do impacto social e económico das medidas”.

Antes das sugestões deixadas aos responsáveis políticos, algumas notas a ter em conta no discurso dos especialistas. Henrique de Barros recorda que na primeira onda da pandemia, a incidência era cerca de sete vezes mais baixa quando se tomaram decisões e na segunda onda esses valores “eram muito mais altos”. João Paulo Gomes pediu  “atenção redobrada” às novas variantes do novo coronavírus na hora de desconfinar — devido às entradas registadas na anterior abertura de portas. E há uma ideia geral de que as medidas devem estar sujeitas a monitorização e avaliação continuada, como já tem vindo a acontecer.

Raquel Duarte, da ARS-Norte e do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, avançou com um conjunto de propostas práticas para o desconfinamento. Disse que há medidas que devem aplicadas a nível nacional, independentemente do nível de risco de cada concelho, e outras ao nível do concelho. Tudo começa naquilo a que chamou de nível 4. Este é o primeiro patamar, o que permite abrir as primeiras portas, ainda que com muitas cautelas. As medidas devem ser revistas de duas em duas semanas e “só o agravamento de dois níveis pode permitir retrocesso”. Por outro lado, a especialista deixa outro alerta: “O total recolher obrigatório deve manter-se até ao nível 2.”

Os partidos alinhados no desconfinamento cauteloso e nas críticas

No final da reunião, os partidos foram cautelosos e não anteciparam cenários, mas todos admitiram a situação melhor que se vive no país. Maria Antónia Almeida Santos, do PS, argumentou que está na altura de “começar a pensar em desconfinar” e apela a que este abrir de portas seja “cauteloso e rigoroso”. Para que assim seja, a deputada socialista lembrou que há regras que têm de continuar a ser cumpridas e dá como exemplos o teletrabalho, o desfasamento de horários e também à necessária atenção nos transportes públicos.

Batista Leite, do PSD, elogiou o “salto de qualidade” das apresentações dos especialistas do Infarmed, por trazerem planos para o desconfinamento, e olha “com bons olhos” para uma proposta que diz “reforçar” a proposta social-democrata de confinamento e desconfinamento por regiões. Da reunião, ficam preocupações com as novas variantes, o rastreamento de contactos e a testagem, bem como a ideia de que a task force para os testes, anunciada hoje, “vem tarde”. No seguimento, a sugestão do social-democrata: “Toda a população devia ter possibilidade de fazer teste gratuito e semanal.”

O Bloco de Esquerda, pela voz de Moisés Ferreira, reiterou que o Governo está a perder tempo ao preparar desconfinamento, mas enalteceu que “o sacrifício que a população está a ter está a dar resultado”, tendo em conta os resultados apresentados esta manhã. “Não se sabe nada e é preciso que o Governo deixe de perder tempo e que para além do cronograma para o desconfinamento tenha uma estratégia para lidar com ele para evitar um recrudescimento” do vírus, alerta, pedido que sejam conhecidos “os planos existem para a obrigatoriedade de medidas preventivas nas escolas e locais de trabalho”.

No topo das críticas está também a testagem. O deputado bloquista referiu que “a testagem tem descido e nos últimos dias têm havido menos de 30 mil testes por dia”, o que representa uma “falta estratégia de massificação de testes”. “Há apenas uma proposta de task force para fazer uma proposta para organizar a testagem”, critica.

O PCP reagiu em comunicado e sublinhou a preocupação por não ter havido “nenhuma intervenção dos técnicos sobre vacinação” na reunião do Infarmed, ao contrário das últimas semanas. A meta para atingir a imunidade de grupo é realçada pelo partido, que reafirma a “importância decisiva da vacinação rápida de toda a população”. Além das vacinas, também a testagem merece atenção do PCP e o facto de ter sido criada uma task force.

O PCP insiste que é preciso reforçar “a proteção individual, fazer a pedagogia da proteção e reforçar o SNS” para que o país “dinamize a atividade económica” e “garanta todas as condições de segurança dos trabalhadores, as atividades cultural e desportiva, e simultaneamente garantir a proteção social a todos aqueles que perderam as suas remunerações, e garantir o salário a 100% aos pais das crianças até aos 16 anos que têm de ficar confinadas em casa devido ao encerramento das escolas”.

Se está na altura de desconfinar, Inês Sousa Real, do PAN, pediu que se aposte “na capacidade da rede dos transportes públicos”, mas também num regresso às escolas faseado, “a começar pelos mais pequenos”. Neste caso, e com as escolas a abrirem de novo, a deputada alerta que o regresso às aulas “não pode decorrer sem incluir no plano de vacinação o pessoal docente e não docente nos grupos de riscos e prioridades porque estarão mais expostos à mobilidade”. As medidas para desconfinar podiam ter sido tomadas “com mais antecedência”, porém agora é preciso que garantam que o sacrifício dos portugueses “não pode ser perdido”.

Foi exatamente neste tema que a deputada Mariana da Silva, do PEV, se focou. Saiu da reunião convencida que “as escolas poderão abrir mais cedo do que o resto das atividades” e que na reunião foi também “reforçada” a necessidade de se manterem as distâncias físicas. Assim, o partido insiste que é preciso reduzir o número de alunos por turma. A poucos dias da apresentação do plano do Governo — prometido para quinta-feira —, Mariana da Silva alerta que é necessário que “as pessoas possam perceber as medidas, para as poderem cumprir”.

João Cotrim Figueiredo considera que houve “boas notícias” e “más notícias” na reunião do Infarmed. O deputado único da Iniciativa Liberal destaca o facto de os números estarem a descer face ao “sacrifício grande” que os portugueses têm feito e também o enquadramento feito dos impactos económicos, sociais e da saúde mental nas apresentações dos especialistas. O terceiro ponto é o que reúne boas e más notícias: os planos de desconfinamento. Cotrim Figueiredo argumentou que estes surgem “em cima do joelho” — a três dias do anúncio do Governo — e que “não aparece um, mas quatro planos de desconfinamento e que não são totalmente compatíveis entre si”. “Estamos a três dias e agora é que o Governo vai tentar compatibilizar informação técnica”, questiona, apontando à “falta de urgência” relativa a esta situação e à forma como se vai traçar um plano “à última da hora”.

Já André Ventura, do Chega, alertou para a necessidade de um “plano gradual, não mediatista nem absoluto”, mas afirma que “não é aceitável manter o país assim [confinado] muito mais tempo”, dando como exemplo os números de pessoas que estão na rua “semelhantes aos tempos pré-Covid”. “Está a haver menos adesão e está a ser destrutivo e contra-produtivo aquilo que estamos a impor aos pequenos serviços, aos cabeleireiros, ao turismo. Somos os únicos na Europa com este tipo de confinamento e não é por precaução, é porque não fizemos o que devíamos ter feitos nos hospitais”, aponta, frisando que há “incapacidade de reagir”. Na reação pós-reunião, Ventura sugeriu ainda um desconfinamento em apenas duas fases em que deve começar com a “reabertura da restauração com condições para venda no exterior, pequeno comércio com regras, cabeleireiros, manicures, barbeiros”.

Paulo Duarte, vice-presidente do CDS, mostrou-se agradado com o “consenso generalizado sobre a necessidade de planear e programar cautelosamente o desconfinamento” e assegura que, “sem um plano à inglesa, programação rigorosa, e face à predominância de novas estirpes, muito mais contagiosas, não é possível o desconfinamento e uma retoma serena da normalidade”. Os centristas pediram a reabertura do ensino presencial, com “inclusão de toda a comunidade escolar na fase prioritária da vacinação e como uma testagem massiva nas escolas públicas, privadas e cooperativas”, mas também a reabertura do pequeno comércio.