Discurso do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa

na cerimónia comemorativa do 5 de Outubro de 2021

“Duas palavras prévias: a primeira para evocar com saudade um grande presidente da câmara e um grande Presidente de Portugal, Jorge Sampaio; a segunda para agradecer, em termos nacionais, ao senhor presidente da câmara municipal que está a terminar o seu mandato e para formular, também em termos nacionais, um voto de felicidades ao senhor presidente da câmara que o vai iniciar.”

Numa espécie de período antes da ordem do dia (PAOD, como se abrevia nas reuniões camarárias), Marcelo Rebelo de Sousa fez dois pontos prévios de cortesia simbólicos. A primeira palavra foi de homenagem a Jorge Sampaio, que faleceu recentemente, e ali esteve no passado em várias ocasiões nas cerimónias do 5 de Outubro em duas condições: de presidente da câmara — após vencer as eleições ao próprio Marcelo nas autárquicas de 1989 — e de Presidente da República. Em segundo lugar, Marcelo Rebelo de Sousa (ele que nos bastidores sempre confessou a sua aposta no futuro político de Carlos Moedas) fez questão de registar a mudança de liderança na autarquia, agradecendo a Fernando Medina e dando as boas vindas a Carlos Moedas.

“Portugueses, se queremos que o 5 de Outubro tenha algum sentido para todos nós, então há que fazer dele uma data viva, não uma memória sem futuro ou um ritual sem alma. O 5 de Outubro de 2021 só é uma data viva se quiser dizer um Portugal mais inclusivo, que finalmente entre a tempo num novo ciclo económico, do clima, energia, digital, ciência, tecnologia e renovado tecido produtivo. Um Portugal com aposta no conhecimento para muitos mais do que os ainda insuficientes, mesmo que excecionais, que temos cá dentro e lá fora.”

É uma ideia que Marcelo repetiria várias vezes ao longo do discurso. Naquilo que acaba por ser uma autocrítica ao automatismo e ao ‘cumprir calendário’ (o tal “ritual sem alma”) em que se tornaram estas cerimónias do 5 de Outubro (é a sexta do atual Presidente), o chefe de Estado defendeu que a comemoração se torne numa data dinâmica. E a forma de cumprir a República é, no entender do chefe de Estado, só uma: conseguir estar na linha da frente do novo ciclo económico, que passará pela recuperação económica e social no pós-pandemia. Marcelo diz “finalmente” porque, como explicaria mais à frente, Portugal historicamente perdeu o comboio do desenvolvimento quando a oportunidade apareceu.

“Assim [o 5 de Outubro] projetará no futuro os ideais originários da República: um Portugal mais atento ao povo, à sua soberania, às suas necessidades, à sua voz. Nos direitos sociais, na atividade económica, na educação. Queremos um 5 de outubro uma data viva, então criemos um Portugal mais inclusivo. Até porque o Portugal que somos nunca vencerá os desafios da entrada a tempo no novo ciclo económico e da multiplicação do conhecimento com dois milhões de pobres e alguns mais em risco de pobreza. E uma pobreza que, como dizia Alfredo Bruto da Costa, existe e passa de geração para geração porque as desigualdades sociais afastam pessoas, classes, setores, regiões. Pobreza e desigualdades não vencidas mesmo em anos de desenvolvimento económico”.

Para Marcelo Rebelo de Sousa o problema do país é estrutural e o elevador social não funciona da forma como o próprio Presidente gostaria. O chefe de Estado assume que há dois milhões de pobres em Portugal, chocando pelo número, e que, salvo raras exceções, quem nasce pobre, vive pobre. E mais: quem nasce numa região (por norma menos urbana), tem mais oportunidades do que quem nasce noutra região (por norma mais litoral). Para o chefe de Estado este é um ciclo vicioso que não permite o desenvolvimento do país, mesmo em anos de claro crescimento económico.

“Um Portugal mais inclusivo, até porque o Portugal que somos nunca vencerá os desafios da economia e do conhecimento se não souber assumir sem traumas nem complexos que a nossa identidade nacional é feita da valorização dos nossos emigrantes espalhados pelo mundo, cerca de 6 milhões, e também dos imigrantes, 600 mil nas estatísticas. É feita ainda de raças, culturas, religiões, costumes, práticas, às dezenas e centenas, com a sua diferença e o seu direito à não-discriminação. Elas e eles que moldam essa identidade nacional, dão projeção universal, natalidade, riqueza material e espiritual, que é de todos nós. Não-discriminação lá fora e cá dentro, plenamente assumida mesmo em anos ou décadas de crescimento e de convergência económica.”

O Presidente da República, tal como já tinha feito no discurso do 10 de Junho na Madeira, enalteceu a importância dos milhões de imigrantes espalhados pelo mundo fora. O próprio tem filhos e netos espalhados pelo mundo, como lembrou no dia anterior, quando confessou que os netos viram a final do mundial de Futsal a partir do Reino Unido, do Dubai e do Brasil. Refere sempre esta questão lembrando os “traumas” e “complexos” da identidade nacional (que vêm da permanente e coletiva luta com a memória colonial) e que também foi o tema do seu discurso, muito elogiado, da cerimónia comemorativa do 25 de Abril no Parlamento. Para o Presidente da República também é preciso valorizar os emigrantes (“mais de 600 mil, segundo as estatísticas”) que fazem parte da riqueza do país. Defensor da multiculturalidade, para o chefe de Estado a identidade do país é feita de várias “raças, culturas, regiões, costumes e práticas”, todas elas com direito à “não-discriminação”. Neste caso, Marcelo pretende não apenas defender os imigrantes, como também a comunidade cigana, debaixo de fogo de um dos partidos em crescimento (o Chega, liderado pelo seu ex-adversário presidencial, André Ventura).

“Queremos um 5 de Outubro data viva? Então consigamos que Portugal por uma vez entre a tempo, isto é, nos primeiros e não no meio, e menos ainda nos últimos, no novo ciclo económico do clima, energia, digital, ciência, tecnologia e renovado tecido produtivo. Juntando à nossa renovada agricultura e ao nosso talento no comércio e nos serviços o que temos agora de muito bom na ciência, na tecnologia, no digital e ainda na energia e em tanta indústria imaginativa e audaz. E dispondo de meios de financiamento adicionais a ser usados com rigor, eficácia e transparência.”

Marcelo insiste que Portugal não pode entrar no ciclo de recuperação económica atrasado, aproveitando as oportunidades que o pós-pandemia traz. E se, no dia anterior, deu um puxão de orelhas a António Costa numa entrevista à TVI, por ter utilizado o PRR como arma de campanha eleitoral, agora faz um aviso prévio de que os fundos que aí vêm (quer do Plano de Recuperação e Resiliência, quer o próximo quadro comunitário de apoio) têm de ser utilizados com “rigor, eficácia e transparência”. É um aviso não só ao Governo, mas também às autarquias e a toda a máquina do Estado.

“É tempo de enterrarmos a maldição de termos perdido o melhor mercantilismo comercial e industrial do século XVIII, de termos perdido a Revolução Industrial no século XIX, de termos perdido tempo e modo com décadas de ditadura e de condicionamento industrial. É tempo também de ultrapassar as vicissitudes da construção da democracia, com crises económicas e financeiras nos anos 70 e 80, que travaram, limitaram ou adiaram avanços auspiciosos em setores-chave da nossa economia. Demos muitas vezes passos importantes, mas ainda assim acabámos por ficar para trás no que poderíamos e deveríamos ser em comparação com o que muitos outros são. Mesmo depois de décadas ou anos de crescimento e convergência económica. Desta vez, falhar a entrada a tempo é perder, sem apelo nem agravo, uma oportunidade que pode não voltar mais.”

O Presidente da República vê mesmo o próximo ciclo como uma provável última “oportunidade” para Portugal integrar o grupo cimeiro do desenvolvimento económico. Marcelo de Rebelo de Sousa fez um levantamento de casos em que, no passado, Portugal chegou com atraso a momentos importantes de desenvolvimento económico, esperando que agora isso não se repita.

“Queremos um 5 de Outubro data viva? Então multipliquemos por muitos, muitos mais aqueles dos melhores que temos cá fora, na educação, na ciência e na cultura. Os que temos são mais e melhores do que eram há 10, há 20, há 30 anos e quando muito bons, dos melhores dos melhores de todo o mundo. Mas precisamos de mais. Nas escolas, nos centros de investigação, nas empresas e nas instituições sociais. E não podemos esquecer a Língua e Cultura, que tudo abarcam. Como podemos falar a sério de termos a quinta ou a sexta Língua mais falada no mundo e a primeira no hemisfério sul, aceitando tantas vezes como sociedade como facto natural a situação económica ou financeira crítica que vivemos num livro, nalguma comunicação artística ou na comunicação social. Outros as têm também, como nós, mas as suas Línguas não desempenham o papel internacional da nossa.”

Como também é habitual nestes discursos, Marcelo faz um misto de exigência com um ato de levantamento da autoestima coletiva. Como diz muitas vezes: “Os portugueses são os melhores dos melhores de todo o mundo”. O Presidente quer, no entanto, que se multipliquem esses melhores do mundo. Aproveita ainda para defender a Língua Portuguesa como uma forma de afirmação do país no mundo.

“Portugueses, este 5 de Outubro de 2021 terá mesmo sentido para todos nós se for uma data viva. Um data viva quer dizer um Portugal inclusivo e, por isso, mais justo. Uma data viva quer dizer um Portugal capaz de não perder um novo ciclo de criação de riqueza. E Portugal rico, mais inclusivo e mais justo. Uma data viva quer dizer um Portugal mais conhecedor, mais qualificado, mais culto e, por isso, mais rico, mais inclusivo e mais justo. Superada a pandemia temos nos anos próximos uma ocasião única e irrepetível de reconstruir destinos, de refazer esperanças, de renovar sonhos, a pensar em todos os portugueses e, desde logo, nos que mais desesperam. E, neles, nos mais jovens, que são quem mais sofre se essa ocasião passar ao nosso lado sem a assumirmos. Não a podemos perder. Não a vamos perder. Viva a República. Viva Portugal”.

O discurso foi curto, mas mesmo assim Marcelo teve tempo para ser repetitivo, de forma intencional. O Presidente da República reiterou várias vezes ao longo do discurso que o pós-pandemia é “a” oportunidade do país de dar o salto. Para o chefe de Estado o desenvolvimento económico depende do esbater das desigualdades sociais e numa maior qualificação do país. E repetiu-o. Várias vezes.