Discurso de Marcelo Rebelo de Sousa

Intervenção na tomada de posse para o segundo mandato

São os portugueses a única razão do compromisso solene que acabei de assumir. A começar nos que mais necessitam: os sem-abrigo; os com teto mas sem habitação condigna; os da minha idade ou mais que vivem em casa ou em lares em solidão; os reformados e pensionistas pobres; os desempregados e em lay-off; os trabalhadores e os empresários precários; as crianças, as famílias, os professores e não-docentes atropelados em dois anos letivos; os que salvam vida e saúde; os que nos ajudam a salvar; os que perdem vida e saúde; os que perdem ente queridos sem uma despedida na doença e na morte; os que nos deixam desejando regressar; os que a nós se acolhem e ficam”.

As primeiras palavras de Marcelo Rebelo de Sousa nesta tomada de posse foram precisamente para aqueles a quem dedicou a eleição: os mais desfavorecidos, os esquecidos, as maiores vítimas da pandemia e da crise económica, sanitária e social, os emigrantes e os imigrantes. Enquanto candidato que se afirmou como sendo da direita social, este foi um ponto de honra feito por Marcelo. O Presidente da República, como repetiria ao longo de todo o discurso, compromete-se a fazer destes grupos sociais e profissionais a sua grande prioridade nos próximos cinco anos.

A 9 de março de 2016, Portugal vivia já a saída de uma dura crise financeira, económica e social. Mas a divisão entre os que haviam arcado com um Governo em crise e os que se lhe tinham oposto era total.”

Marcelo faz uma viagem ao passado para recordar o clima político que herdou. Tantas vezes acusado de ter sido demasiado simpático com uma ‘geringonça’ que dava os primeiros passos, o Presidente da República não raras vezes usou o argumento da crispação total entre os dois blocos para defender que era função do Chefe do Estado ser parte do exercício de reconciliação do sistema político, para grande desgosto de uma parte da sua família política. Hoje, cinco anos depois de tomar posse, Marcelo fez questão de o relembrar: não fosse ele e talvez não tivesse sido possível ao país recuperar a estabilidade política que permitiu ultrapassar a crise financeira e económica.

Portugal continuou o caminho das contas públicas equilibradas. Fê-lo, acelerando compensações sociais e reforçando o setor público. O que, sendo o programa dos novos governantes, se opunha aos seus antecessores. Sairia do Processo por Défice Excessivo em 16 de junho de 2017, depois de ter enfrentado situações críticas na banca e na véspera de viver a primeira das duas vagas de incêndios florestais. Daria passos importantes no equilíbrio orçamental, na exportação, no turismo, sabendo em vários domínios aproveitar caminhos antes desbravados.”

O elogio ao percurso percorrido pelo primeiro Governo de António Costa, em particular no que à preocupação pelo controlo das contas públicas diz respeito, sem esquecer, ainda assim, a herança deixada por Pedro Passos Coelho. É verdade que Marcelo fez questão de recordar o drama dos incêndios de 2017, o ponto de maior tensão entre Governo e Presidente da República. Mas também não quis deixar cair os méritos de uma solução de poder que permitiu devolver o país à convergência com a Europa e aos excedentes orçamentais.

Atenuaria suavemente a pobreza e algumas desigualdades sociais. Iria adiando investimentos ou transformações mais profundas em competitividade empresarial, infraestruturas, Administração Pública, Serviço Nacional de Saúde e, em parte, na Justiça”.

Nem tudo, no entanto, foram conquistas nestes cinco anos de convivência. Marcelo frisou, mais uma vez, que o Governo devia ter ido mais longe no combate à pobreza e à exclusão e devia ter cuidado melhor do investimento e das reformas estruturais de que o país precisava. É a crítica implícita à política de cativações de Centeno e Leão e à primazia de António Costa na gestão política do dia-a-dia em detrimento de grandes reformas — dois reparos comuns nos discursos de Marcelo.

Um ano demolidor para a vida e para a saúde. O heroísmo deixou de ser coisa de um instante. Passou a ser de um ano. É justa a indignação dos sacrificados. Mas também por isso é parcialmente injusta a recriminação feita a tudo que não se antecipou, não se evitou, não se resolveu. Nuns casos era possível, noutros não seria. Os trucidados pelas pandemias têm o direito de ver o poder existente ao mesmo tempo como tábua de salvação e como muro das suas legítimas lamentações. Os responsáveis durante as pandemias só podem assumir tudo, sabendo que nada nem ninguém pode dar a quem perdeu o irrecuperável o que não tem preço, nem retorno”

Até que a pandemia veio obrigar a rever o caminho que estava a ser seguido até então, reconheceu. Neste particular, e embora reconhecendo a razão e as angústias daqueles que tudo perderam nesta crise, Marcelo não deixou de se colocar ao lado de António Costa: não havia nem houve Governo algum no mundo que fosse capaz de antecipar todos os problemas e de dar resposta a todas as solicitações. Nesta passagem, faz também a defesa do seu próprio papel na gestão da pandemia: em muitos casos, assumiu e liderou a resposta política, chamando assim as responsabilidades, o que faz dele também responsável pelas falhas. Com o reconhecimento do óbvio, Marcelo não procurou, ainda assim, desresponsabilizar os decisores políticos. Antes pelo contrário: mesmo perante críticas que até podem ser injustas, Assembleia da República, Governo e Presidente têm de dar a cara pelas decisões que tomaram.

Vivemos em democracia. Queremos continuar a viver em democracia. E em democracia combater as mais graves pandemias. Preferimos a liberdade à opressão, o diálogo ao monólogo, o pluralismo à censura. Demonstrámo-lo realizando duas eleições em pandemia, de uma das quais resultou a subida da oposição ao Governo. Isto é democracia”.

O Presidente da República faz nesta passagem a defesa da resiliência democrática demonstrada neste período e chega mesmo a lembrar que foi possível à direita nos Açores impor uma alternativa ao poder socialista. Não o concretizou, mas parecia ser uma resposta a Aníbal Cavaco Silva, que recentemente defendeu que a “democracia estava amordaçada”. Ferro Rodrigues tinha sido mais claro na resposta a essa crítica ao ex-Presidente, no discurso que antecedeu o de Marcelo.

Mas queremos também melhor democracia. Onde a liberdade não seja esvaziada pela pobreza, pela ignorância, pela dependência ou pela corrupção. Onde a inclusão, a tolerância, o respeito por todos os portugueses para além do género, do credo, da cor da pele, das convicções pessoais, políticas e sociais, não sejam sacrificados ao mito do português puro, da casta iluminada, dos antigos e novos privilegiados”.

O apelo de Marcelo à recusa dos extremismos, dos populismos e às narrativas dos “portugueses de bem” — que, pela voz de André Ventura, foram temas na última campanha presidencial. Mas, e este foi o alerta de Marcelo, estas narrativas só serão combatidas e contidas se houver resposta aos problemas que minam a democracia e atacam os pilares fundamentais do Estado de Direito.

Queremos uma democracia que seja ética republicana na limitação dos mandatos. Convergência no regime e alternativa clara na governação. Estabilidade sem pântano. Justiça com segurança. Renovação que evite rutura. Antecipação que impeça decadência. Proximidade que impossibilite deslumbramento, arrogância, abuso do poder. Assegurá-lo é a primeira prioridade do Presidente da República para estes cinco anos.”

A primeira grande prioridade de Marcelo Rebelo de Sousa é assegurar a estabilidade política e evitar que o país mergulhe num pântano. Não é a primeira vez que o diz: o Presidente da República tem repetido várias vezes que não compactuará com crises artificiais que somem uma crise política à crise sanitária, económica e social. As referências ao “deslumbramento”, “arrogância” e “abuso de poder” não são inocentes — são um aviso a António Costa, que, sem maioria parlamentar e desde 2015 no poder, tem ficado cada vez mais isolado na aprovação de instrumentos fundamentais de governação, como o Orçamento do Estado. Os reparos, de resto, nem sequer são um exclusivo de Marcelo. Ainda recentemente, Pedro Nuno Santos, ministro e rosto da ala mais à esquerda do PS, desafiou o partido a voltar a conversar com os antigos parceiros parlamentares e a deixar de se comportar como se tivesse maioria parlamentar.

Queremos desconfinar com sensatez e sucesso.”

É a segunda lição que Marcelo pede a todos que se retire deste ano de pandemia: o país tem de dar passos seguros no regresso à normalidade possível. Num comentário breve mas que encerra todo um programa, o Presidente defende que se evitem passos em falso, precipitados e imprudentes, que a curto prazo obriguem a novos recuos. Não é a primeira vez que o faz, nem será, provavelmente, a última. Ainda na segunda-feira, o Presidente entrou mudo e saiu calado de uma reunião no Infarmed onde o Governo deu todos os sinais que Marcelo não queria ver: António Costa prepara-se para anunciar um plano de desconfinamento a escassos dias de o começar a executar, muito antes da Páscoa e a vários ritmos.

Teremos de reconstruir a vida das pessoas. É mais, muito mais, do que recuperar. Ou seja, [mais do que] regressar a 2019 ou a fevereiro de 2020. É essa a terceira lição deste ano. Queremos usar os fundos europeus com clareza estratégica. Boa gestão. Transparência e eficácia. Nunca esquecendo o que a pandemia desvendou de problemas de fundo: de competitividade económica, de Saúde, de solidariedade social. Ou convidou a revisitar: de reforma administrativa, justiça e luta contra a corrupção, do papel das forças armadas, das forças de segurança, da proteção civil, de bombeiros, de descentralização, toda e a aquela que os portugueses quiserem.”

Um ponto nuclear do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa. O país, e, em particular, o Governo, têm obrigação de fazer mais do que voltar ao que era em 2019, antes da pandemia. A bazuca europeia que aí vem — termo que o Presidente recusa — é uma oportunidade decisiva para que país ultrapasse bloqueios crónicos em várias áreas. E é também, como sublinhou o Chefe de Estado, um teste exigente à capacidade de gerir os fundos europeus com “transparência” e “clareza estratégica”, evitando o desperdício, a opacidade e a corrupção.

Só haverá verdadeira reconstrução se a pobreza se reduzir, se os focos de carência alimentar extrema desaparecerem, se as desigualdades se esbaterem, a exclusão diminuir, a clivagem entre gerações e territórios for superada. A coesão social é a quarta missão prioritária do Presidente da República. Urge reconstruir um só Portugal. Queremos mais crescimento, mas queremos mais do que isso: políticas que corrijam o que a liberdade, a concorrência que o mercado, per si, não permitem corrigir e que se agravou drasticamente com a pandemia. Reconstruir a vida das pessoas sem economia a crescer é impossível; mas reconstruí-la só com economia, sem corrigir as desigualdades existentes, é reconstruir menos para todos porque sobretudo apenas para alguns privilegiados.

Marcelo desenha, aqui, as exigências que tem a fazer para os próximos anos, com recados endereçados a António Costa. Com um país a enfrentar uma crise sanitária que provocou uma grave crise económica e social, é preciso pensar no futuro e na recuperação. Um caderno de encargos com os olhos postos na forma como essa recuperação deve ser construída. Sem uma preocupação acrescida com a redução da pobreza, das desigualdades sociais e territoriais, de pouco valerá o crescimento económico.

Não há ilhas no universo. Eis o apelo do futuro contra o medo do diferente: a quinta missão do Presidente da República é aprofundar a nossa vocação para plataforma entre culturas, civilizações, oceanos e continentes. (…) No fundo, afirmar um sempre renovado patriotismo, um patriotismo das pessoas, e não apenas do lugar, da memória, dos usos, das instituições. Um patriotismo do futuro”

As referências de Marcelo à necessidade de abraçar o que é diferente, de respeitar a diversidade e de promover a tolerância são insistentes: aqui, o presidente volta a reforçar que não há “ilhas” e que não há que ter “medo do diferente”, pelo que o patriotismo que quer promover — a palavra tantas vezes usada como bandeira, por exemplo, na direita populista — é na verdade um patriotismo diferente, “do futuro”, centrado nas pessoas e aceitando essas diferenças. É a recusa de um patriotismo fechado, isolacionista ou focado apenas na “memória” e nas “instituições”.

Os jovens esperam mais e mais depressa. Para eles e para todos os portugueses. Num Portugal desigual e envelhecido, esperam mais e melhor Serviço Nacional de Saúde. Num Portugal pouco competitivo, esperam mais e melhores condições às empresas. Num mundo em aceleração, esperam mais e melhor liderança portuguesa na luta pela ação climática. Três causas concretas que são todas elas nacionais e urgentes.”

Marcelo foca-se nos jovens, um grupo a quem já se dirigiu, aliás, em intervenções anteriores, para apontar ao futuro mas também para reforçar prioridades que quer ver concretizadas neste mandato, e que não têm apenas a ver com os mais novos. Daí o reforço da referência ao SNS, particularmente importante em tempos de pandemia; também às condições para as empresas — uma das principais críticas da direita ao uso que o Governo pretende fazer da ‘bazuca’ europeia, por exemplo, é precisamente a falta de fundos e incentivos para as empresas e a economia privada; e à importância da luta pela ação climática, que é uma das principais prioridades impostas por Bruxelas para o uso dos dinheiros europeus.

Portugueses, resta lembrar o óbvio: sou o mesmo de há cinco anos, sou o mesmo de ontem, nos mesmos exatos termos. Com independência, espírito de compromisso e estabilidade, proximidade, afeto, preferência pelos excluídos, honestidade, convergência no essencial, alternativa entre duas áreas fortes, sustentadas e credíveis, rejeição de messianismos presidenciais no exercício do poder ou na antecipada nostalgia do termo desse exercício. Foi assim e assim será com qualquer maioria parlamentar, com qualquer Governo, antes e depois das eleições autárquicas, antes e depois das eleições parlamentar, antes e depois das eleições europeias, antes e depois dos 50 anos do 25 de Abril em 2024.”

Muito se costuma dizer sobre os segundos mandatos dos presidentes reeleitos, que se veem mais livres para exercer o seu mandato — endurecendo as suas posições face ao Governo, por exemplo — sem preocupações com uma eventual reeleição. Marcelo quis assegurar que será o mesmo, “nos mesmos exatos termos” — o que não significa que as circunstâncias não mudem e os desafios não se tornem maiores. A esses, Marcelo promete responder com os mesmos princípios: mantendo o estilo afetivo, próximo e com preferência pelos mais desfavorecidos, assim como promovendo a “convergência”. Mas não esquece a necessidade de promover uma “alternativa entre duas áreas fortes, sustentadas e credíveis”, voltando assim a puxar pela necessidade de reforçar a direita e, quem sabe, ver neste seu segundo mandato a sua família política reorganizada e com hipóteses de chegar ao poder. A promessa é de que, concretizando-se essa alternativa ou continuando o país a preferir um Governo de esquerda, Marcelo respeitará a vontade dos eleitores e não embarcará em “messianismos” nem na tentação de assumir um papel de protagonismo ou até de oposição ao Governo.

Que os próximos cinco anos possam ser mais razão e esperança do que desilusão é o nosso sonho e o nosso propósito. Temos de acreditar. Vamos acreditar.”

Marcelo rematou o seu discurso com Sophia de Mello Breyner: “Apesar das ruínas e da morte / Onde sempre acabou cada ilusão / A força dos meus sonhos é tão forte / Que de tudo renasce a exaltação /E nunca as minhas mãos ficam vazias”, leu o Presidente da República, antes de acrescentar que “nunca as nossas mãos ficarão vazias”. Não se anteveem tempos fáceis para o presidente: depois de um mandato em que teve de lidar com a tragédia dos fogos, o caso de Tancos, o fim (formal) da geringonça a provocar o aparecimento cíclico de fantasmas de crise política e, sobretudo, a pandemia, desta vez há uma reconstrução social e económica a fazer, com um xadrez político ainda mais imprevisível em mãos. O presidente está consciente desses desafios, mas também quis reconhecer o esforço e as dificuldades sentidas pelos portugueses ao longo do último ano. Por isso, optou por deixar, no final do discurso, uma nota de esperança e encorajamento, pedindo aos portugueses que “acreditem”.