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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Maria Gonzaga: "Nos figurinos quem manda sou eu. Já parei muitos filmes por não concordar com o que fazem"

Maria Gonzaga passou os últimos 40 anos a produzir guarda-roupa para cinema, teatro e televisão. Em vésperas de receber um prémio de carreira, conversámos com a mais consagrada figurinista portuguesa.

“Se não fosse tão bem disposta, esta entrevista era um fiasco. Sinto-me péssima”. O aviso surge já a conversa está pegada, embora ainda nem vá a meio. Maria Gonzaga, ou Mariazinha como é calorosamente tratada no círculo mais íntimo, é uma veterana do teatro e do cinema português. Só não fez carreira debaixo dos holofotes, preferiu antes os bastidores para dar largas às suas múltiplas habilidades. Enérgica e impetuosa, vacila agora que o cansaço e as perdas recentes (familiares e na equipa de há anos) a obrigam a abrandar o ritmo de uma vida a mil à hora.

Experimentou o que quis — dos elencos de revista às performances de João Vieira, do curso de cenografia do Conservatório Nacional, onde foi uma mulher entre homens, ao cinema independente, sem esquecer a boémia lisboeta. E foi por este último que ganhou o maior dos gostos. Como figurinista e maquilhadora, mas também na direção de arte, estreou-se no romper da década de 80. Raúl Ruiz e Wim Wenders vaticinaram uma longa e profícua carreira, da qual fazem parte produções internacionais, mas também sucessos do cinema português como “Até Amanhã Camaradas”, “Zona J” ou, mais recentemente, “Parque Mayer” — o primeiro e o último valeram-lhe dois Prémios Sophia de Melhor Guarda-roupa, em 2014 e em 2019, respetivamente.

O atelier está vazio. Terminada mais uma jornada de trabalho, as mais de duas dezenas de costureiras e assistentes entraram no fim de semana mais cedo. Gonzaga criou o próprio guarda-roupa há precisamente 30 anos. Em 2015, vendeu nome e espólio à Peris Costumes, gigante espanhol com representação nas principais capitais europeias. Hoje, é uma espécie de joia da coroa da empresa, responsável por confecionar os figurinos de estrelas como Milena Canonero e Colleen Atwood, ambas com quatro Óscares na estante. Pelo meio, vai mantendo projetos próprios, como o filme que foi convidada a fazer no Brasil, daqui a um ano.

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“Neste momento estamos a fazer roupa para filmes estrangeiros”, explica, enquanto aponta para um charriot repleto de volumosas saias. É a terceira princesa Sissi — que apelida de “estranha” pela paleta anormalmente escura dos figurinos — que faz este ano. Não tem mãos a medir, até porque a pandemia nunca chegou a parar o atelier. “Os filmes pararam, mas fomos fazendo roupa daquelas épocas para aumentar o stock”, remata.

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Maria recebe a 22 de junho o Prémio Bárbara Virgínia, atribuído pela Academia Portuguesa de Cinema. Honras de carreira que terão lugar na Cinemateca, em Lisboa, e que serão acompanhadas pelo visionamento do filme “A Promessa”, de 1972, onde se estreou no cinema, na altura como atriz. Aos 70 anos, continua exuberante, rodeada de quilómetros de tecido e da mais invejável coleção de chapéus do país. Aqui vai continuar “até ter forças”.

Como é que se meteu nisto dos figurinos?
Meti-me nisto porque tirei cenografia no Conservatório. Tinha 20 anos e o curso só tinha rapazes. Aliás, o curso de Cenografia incluía guarda-roupa mas assim sem graça nenhuma, não era um curso de figurinos. Mesmo hoje, o único que existe é no Porto, na ESMAI [Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo], e é uma amiga minha que dá. Só vai haver enquanto ela estiver viva ou a trabalhar na escola porque assim que se for embora o curso acaba porque vão juntá-lo outra vez com o de cenografia, que não tem nada a ver. Os figurinos são uma coisa muito complexa, tem de se estudar muito e é completamente diferente da cenografia. Mas aquelas cabeças pensantes acham que não.

Naquela altura, era tudo gajos. Passavam a vida a provocar-me a ver se me aguentava, mas eu era pior do que eles, não era nenhuma virgenzinha amedrontada. Eles diziam um palavrão, eu dizia três ou quatro e punha-os em sentido. De maneira que sempre que se faziam produções da escola, acabava por ser eu a fazer os figurinos, porque era a menina. Em cenografia e figurinos não ficou ninguém — um foi cantar para o coro do São Carlos, outro ficou com as marionetas, o António Quina já era escultor, o [Carlos] Zíngaro fazia ilustração e tocava violino. Ou seja, fiquei eu, menina entre os rapazolas todos.

"Tenho trabalhado com figurinistas com não sei quantos Óscares e, cada vez que trabalho para eles, são um testemunho do bom trabalho que faço. Se tivesse ficado com a empresazinha em Portugal, nunca teria tido essa hipótese."

E como era muito aventureira e gostava de fazer várias coisas, também aprendi maquilhagem. Fazia muito guarda-roupa, até porque havia muitos cenógrafos na praça, mais velhos e já com lugar garantido. Até conseguir entrar aí, levou uns anitos. Fiz muitos filmes, muitos, muitos. Já nem sei quantos fiz.

Mas com que objetivo é que foi estudar cenografia?
Tinha sido atriz antes e chateava-me a repetição. Gostava daquilo, mas da parte da preparação, do estudo e da estreia, até chegar aos aplausos. Depois, era uma chatice porque era repetir tudo. Então pensei: “Epa, gosto muito mais da parte de trás disto”. Não queria ser atriz, também por achar que não tinha qualidade suficiente, e os trabalhos de mãos tinham tudo a ver comigo. Como atriz, não me achava espetacular, queria era experimentar mais coisas. Até porque com um curso de atriz, ficas ali a emperrar e não vais a lado nenhum. Com aquele curso podia fazer adereços, decoração e, claro, figurinos.

Na peça "O Conde Barão", da companhia Os Cómicos, em 1978

Fotografia cedida por Maria Gonzaga

Há uns seis ou sete anos, ainda fiz o mestrado em Design de Cena, mas isso foi porque me apeteceu, não serve para nada. Estava velha e cansada, não havia trabalho cá, era horrível. Andava a correr para trabalhar e para conseguir pagar os impostos e os ordenados e não queria nada ir à falência — é a coisa mais horrível. Se calhar as pessoas que vão à falência ganham muito com isso, mas para mim era uma desonra deixar-me falir. Antes disso, decidi escrever para Espanha a perguntar se me queriam comprar — sempre a achar que ninguém me conhecia. Mas já. No dia em que mandei o e-mail, telefonou-me o Javier Toledo [presidente da Peris Costumes] a dizer que queria vir a Lisboa. Andámos em negociações, se bem que eu só me queria livrar daquela angústia de andar a correr para pagar impostos e com medo de ficar a dever a alguém.

Se deixasse isto à minha filha, seria sempre um presente envenenado. Enquanto estou viva e tenho o meu nome consigo vender tudo e mais alguma coisa. Eu vendi o meu nome, não vendi roupa. Ela sim ia vender roupa e não lhe iam dar nada por uns trapos. Sinto-me muitíssimo melhor e aliviada, desde que vendi o guarda-roupa. Durante 25 anos, construí uma coisa que tinha qualidade e dimensão suficiente para ser vendida. A única coisa que não vendi foi o atelier. Pensei: “A gente um dia dá-se mal e tenho as minhas máquinas, os meus tecidos, as minhas tralhas para montar outro atelier”. Espero que nunca aconteça porque estou muito bem assim. Não é uma coisa miserabilista porque estou a fazer coisas muito interessantes. Tenho trabalhado com figurinistas com não sei quantos Óscares e, cada vez que trabalho para eles, são um testemunho do bom trabalho que faço. Se tivesse ficado com a empresazinha em Portugal, nunca teria tido essa hipótese.

Tenho trabalhado demais nestes últimos anos. Tenho perdido pessoas demais e trabalhei, trabalhei, trabalhei para esquecer. Cheguei ao limite. Vou trabalhando em casa. Tenho lá máquina, um manequim e o mar à minha frente. Esta semana, em três dias, cortei cinco corpos de século XVIII. Tomara às outras todas que andam para aí a cortar fazerem o que eu faço.

Olhando para a sua infância, algo apontava nesta direção?
Não, não havia ninguém na família. A única coisa que tinha era o meu pai que fazia tudo o queria com as mãos. Nisso, saí a ele. Depois, no ser empreendedora e despachada saí à minha mãe. Nem sempre foi tudo muito bonito. Fiquei sem eles algum tempo, a viver em Lisboa em casa da minha avó. Andava no liceu e trabalhava às seis da manhã com ela numa lojinha que ela tinha ali ao pé da Ribeira Nova, onde vendia coisas para as peixeiras, emprestava dinheiro… sei lá, trinta por uma linha. Levantava-me às cinco da manhã para ir com ela para lá e depois voltávamos às dez e tal. Arranjava-me, almoçava e ia para o liceu. Tinha 12 anos, para aí. Quando voltava, ainda vinha coser à máquina, por isso tinha muito pouco tempo para fazer trabalhos da escola. Fazia coisas para ela vender, aventais para as varinas, essas coisas todas. Ela comprou-me duas máquinas, ainda as tenho para nunca mais me esquecer.

"Porque é que o meu guarda-roupa não me enriqueceu? Porque andava sempre a trabalhar para a televisão e depois a ajudar o teatro e o cinema, onde não havia verbas para fazer as coisas [...] Mas não estou arrependida. Era a única maneira das coisas se fazerem."

Já aí havia costura.
Na altura em que fiz a primeira peça como atriz, o “Vison Voador” [1968], ia logo de manhã comprar tecido e depois ia para o teatro, que havia lá uma máquina. Nessa altura, já não estava a vier em casa da minha avó, estava numa casa ali na Rua das Taipas, onde tinha sido um dos primeiros ateliers do João Vieira. Ele arranjou outro sítio e deu-me aquele para fazer a minha casa. Como não tinha máquina na altura, ia para o teatro, fazia a roupa e à noite ia para os copos e para a passeata já com o fato novo. Tinha uns 17 anos. Ia para os Stones, para o Ad Lib, para as discotecas que havia na altura. Tinha amigos, mas também ia sozinha. O dos Stones até dizia: “Ah, estava a ver que não vinha hoje, já lhe ia marcar falta”. Era levada do diabo.

Só com o “Vison Voador” fiz um ano e meio. Fiquei logo com a carteira de atriz profissional. A seguir ainda fiz uma revista no Monumental — “Para a Frente Lisboa” — com atores bestiais. Foi depois dessa revista que fiz “A Promessa”.

Diria que tinha talento como atriz?
Gostei mais do cinema. Acho que fiz bem aquele papel [em “A Promessa”]. Tinha uma boa relação com a câmara e isso surgiu naturalmente. O teatro é que era uma seca, não tinha paciência. Mas ainda fiz uma coisa depois de 74, já a minha filha tinha nascido — aliás, eu estava grávida quando foi o 25 de Abril. Foi com o [João] Perry e com um grupo de amigos, com canções do Sérgio Godinho, com o Nuno Carinhas. Éramos uma cambada de miúdos. Agora, somos todos gajos mais velhos e mais importantes — alguns, outros não. O Rogério Vieira fazia de professora, mas a imitar o Salazar. Era um papel incrível. Eu era a menina Susete. A peça era engraçadíssima, tudo feito por nós. Foi no Villaret, mas foi numa altura em que havia muitas manifestações e o povo queria era ir e gritar.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O guarda-roupa já lhe chamava a atenção nessa altura?
Bastante. O Vasco Morgado já me tinha proposto trabalhar no guarda-roupa com ele — tinha tudo das peças e das revistas lá na Costa da Caparica. Mas nessa altura ainda tinha outras coisas para fazer. Montava muito a cavalo no Jockey e ainda andava à procura do que queria. Eu era muito à frente quando era miúda. Fiz muitas exposições com o João Viera. Numa delas, na Sociedade de Belas Artes, ele despiu-me e meteu-me dentro de um sarcófago, dentro de água. Ainda tinha 20 anos quando fiz isso. Tinha os cabelos muito compridos e era gira nessa altura. Nunca ouvi tanto silêncio na minha vida, ninguém estava à espera. Lembro-me que eles estavam com medo que não conseguisse ou que ficasse nervosa, mas eu era tão desempoeirada da minha cabeça…

Aqueles bichos que viste ali — era eu que fazia aquelas coisas. Uma vez fiz uma vaca, a Vaca Mimosa, que era um patrocínio no “1, 2, 3”. Eles queriam a vaca para o dia seguinte e ninguém conseguia fazer aquilo. Pedi 600 contos, fui comprar os materiais e fiquei a trabalhar toda a noite, até ao dia seguinte. À hora do programa, tinha a vaca pronta para ser vestida.

Mas qual é o primeiro grande trabalho de guarda-roupa que faz?
Sabes que não sei. Às tantas deixas de escrever, são uns atrás dos outros. A minha Rosarinho, que trabalhava comigo, tinha sempre tudo. Ainda tenho a minha Nana, que sabe montes de coisas. É que nem um curriculozinho…

[Faz uma pesquisa rápida no computador]

A primeira coisa que está aqui é “O Estado das Coisas” [1982], com o Wim Wenders. Nesse fiz guarda-roupa e maquilhagem. Depois está “O Lugar do Morto”, “Ninguém Duas Vezes”, “Azul Azul”, “O Bobo”…

Como é que chegou até ao Wim Winders? Ou como é que ele chegou até si?
Antes de “O Estado das Coisas”, lembro-me agora, fiz um filme com o Raúl Ruiz — “Le Territoire” –, baseado na história de um avião que cai nos Andes e de uns gajos que se comem uns aos outros. Entrava uma rapariga, a Isabelle Weingarten, que andava de namoro com o Wim. Éramos pouquíssimos. Entrava também aquele gajo que era neto do milionário e que não tinha uma orelha, o Paul Getty — depois desse filme, entrou mesmo em rutura. Estávamos a filmar ali em Sintra, ele veio visitar-nos e adorou aquela equipa com aquele tamanho. Éramos uns 26, com eletricistas com tudo, e ele achou aquilo maravilhoso. Foi-se embora para a América e disse: “Daqui a duas ou três semanas estou cá para fazer um filme com esta equipa”. Achámos que o gajo nos estava a dar uma grande peta.

O que havia de bom nesses filmes é que estávamos a viver numa quinta naquela estrada de Monserrate. “O Estado das Coisas” foi filmado na piscina da Praia Grande. Era inverno, a piscina estava vazia e foi muita giro. Lá vieram ao fim das três semanas. Veio ele com um gajo que escrevia guiões. E escreviam de noite para nós filmarmos de dia, aquilo era uma alucinação. Fiz as roupas — as do filme e as do filme do filme, porque aquilo era um filme de ficção científica que parava. No fundo, aquilo era uma história dele com o Coppola, que era produtor dele e lhe parou um filme, não lhe deu película e ficou toda a gente à espera durante meses. Quem fazia de realizador era o Samuel Fuller, que fumava uns charutões muito grandes mas era um minorca assim deste tamanho. O diretor de fotografia era um francês que eu adorava, o Henri Alekan. O filme era a preto e branco e ele ensinou-me imenso sobre maquilhagem, foi muito giro. No preto e branco, podes usar as cores que quiseres e vale tudo, tens é de aprender quais as cores mais luminosas. O outro segundo filme que fiz do Raúl Ruiz foi o “Les trois couronnes du matelot”. Nesse, já não veio o Henri Alekan, veio o Sacha Vierny, que tinha feito o “Hiroshima mon amour”. Era tudo gente que ficávamos assim a olhar.

Terá sido nessa altura que começou a desenvolver o seu próprio processo criativo. Como é que funciona?
No guarda-roupa? Primeiro, leio o filme. Depois, falo com o realizador. Antes disso há uma reunião prévia, mas tenho de ler tudo, escrever tudo, definir tudo. O meu método para interiorizar o filme é escrever as cenas todas, quantas pessoas entram em cada uma, que tempo é que têm, se faz raccord ou não. Fico com o filme na cabeça. Geralmente, são sempre de época que eu dos outros fujo. Detesto andar às compras nas lojas, não tem graça nenhuma. Gosto mais de recriar a época. Falo com realizador para saber qual o dramatismo das personagens, o que é que ele quer. Isto nos principais, porque depois o resto vai tudo no mesmo tom e na mesma dinâmica. Depois falo com o diretor de fotografia para saber como vai ser a fotografia e a luz.

Maria Gonzaga em 1972, ano de estreia do filme "A Promessa", de António de Macedo

Fotografia cedida por Maria Gonzaga

Agora já ninguém conta com ninguém. Quando trabalhava com estes diretores de fotografia antigos, havia uma cumplicidade entre o guarda-roupa, os décors e mesmo com a maquilhagem. Tens de saber isso para perceber o que vais vestir e a que parte do corpo vais dar mais importância. Gosto muito de começar a fazer um filme com o guarda-roupa já todo preparado e provado. No “Até Amanhã Camaradas”, que tinha cento e tal atores e eram seis episódios para televisão (era filme que nunca mais acabava) consegui começar a filmar com o guarda-roupa todo feito e provado nos atores. Trabalho bastante, mas dá-me mais à-vontade para lidar com surpresas que aparecem. Há sempre surpresas.

Qual foi a maior surpresa que já teve?
Antes disso fiz uma série alemã também com não sei quantos episódios para a televisão. Entrava o Paco Rabal a fazer de Torquemada, era sobre a Inquisição. Epa e aquilo nunca mais acabava. Andámos a filmar por todo o Portugal e até em Cáceres. Foi o primeiro guarda-roupa que guardei — a partir daí fui guardando, até que já tinha a casa cheia e tive de arranjar um armazém. Quando chegámos a Cáceres, adoeceu o espanhol que estava a fazer os décors e fui eu que assumi. Começou logo com um mercado medieval, naquela praça interior de pedra ao pé das igrejas, que às duas da tarde é como se estivesses dentro da frigideira.

"Antigamente, tínhamos todos mais esse empenho, apesar de sermos menos. Quando andávamos a filmar na serra, ajudava os eletricistas a segurar nas telas enormes para fazer a luz. Era uma obra que estávamos todos a construir."

Outra surpresa aconteceu quando estávamos a filmar em Monsaraz. Eu andava sempre cheia de trapos atrás porque muitas vezes inventava fatos à última da hora. Ali, só tinham pensado nos homens, nos exércitos árabes. Depois, chegaram à conclusão de que os árabes também viviam na Península Ibérica, ou seja, que havia mulheres e crianças. Às seis da manhã levanto-me para ir tomar o pequeno almoço, numa camioneta horrível, e aparece a assistente de realização a dizer-me que precisava que lhe arranjasse uns fatos de mulher. A minha chefe de guarda-roupa começa aos gritos. Começo a tirar pano e pano de dentro dos sacos. Lá arranjei umas túnicas e uns albernós, com uns turbantes para as mulheres. E para as crianças? Agarrei em duas camisas medievais — uma servia de calças, a outra por cima e uma faixa para atar aquilo tudo. Com mais uns turbantes na cabeça, os putos ficaram mesmo engraçados. À hora de almoço passa o realizador — afinal também era preciso fazer judeus.

Teve de lidar com os egos de muitos atores?
Passa-me um bocado ao lado. Já disse a muitos e a muitas que não estão a fazer o papel da vida deles. Não gostam de se ver? Temos pena. Há umas que são uma seca: e porque não fica bem e que não favorece. Não lhes dou confiança nenhuma. Mas também já todas me conhecem muito bem e já chegaram à conclusão de que não estou ali para as pôr feias, mas sim para fazer o meu trabalho da forma mais séria possível. Se alguma coisa as prejudica não ponho, nem as dispo por despir. Vesti bailarinas para a televisão durante anos e nunca as pus com ar ordinário. Porque não gosto, porque não faz parte da minha leitura do espetáculo. No “Parque Mayer” havia uma casa de meninas e não é só despir por despir. É pô-las mais despidas, mas à época, e ter noção de que não são todas do cancan. Há muito esta mania de pôr tudo no fim de século com espartilhos. As minhas meninas dos anos 30 não eram assim.

Maria Gonzaga com Fernando Pessa, por volta de 1970

Porque é que gosta tanto de produções de época?
Porque são mais enigmáticas e porque tenho de estudar mais. Seja qual for a época, tenho sempre muito que aprofundar. Tem a ver com costumes, com o contexto social. Isso é muito mais engraçado porque tens de criar tipos de pessoas dentro daquela época e não é nos livros de figurinos que vais encontrar isso. As outras não me dão pica. Se for uma coisa atemporal com nas óperas, em que, em vez de ser lá no século não sei quantos, ponho-as nos anos 40 ou nos anos 50, ou mesmo nos tempos mais modernos — isso acho graça. O que não gosto é quando me dizem para ir à Zara comprar um vestido para esta e para aquela.

Vai receber mais um prémio no final deste mês. Acha importante haver esse reconhecimento de quem trabalha nos bastidores?
Acho, mas também acho que me dão os prémios — este de carreira, sobretudo — porque ajudei imenso o teatro e o cinema português. Porque é que o meu guarda-roupa não me enriqueceu? Porque andava sempre a trabalhar para a televisão e depois a ajudar o teatro e o cinema, onde não havia verbas para fazer as coisas.

Trabalhou muito pro bono?
Mas não estou arrependida. Era a única maneira das coisas se fazerem. E se tinha a roupa ali parada, porque é que ela havia de dormir comigo em vez de ir dormir à produção de uma coisa qualquer? Mas quando descobria que não me pagavam porque não queriam, porque guardavam o dinheiro, aí nunca mais ajudava.

Chateou-se muito?
Com algumas pessoas, não com muitas. E nunca com o cinema, até porque me sinto muito reconhecida. Montes de gente me mandou mensagens agora quando saiu a notícias do prémio. Mensagens de afeto, muito queridas.

Qual é que diria ter sido o trabalho da sua carreira?
Ainda não fiz. Gostei de tudo o que fiz, mas nunca nada tão bom como gostaria. Há sempre muitas condicionantes. Por falar na casa das meninas, tinha a roupa toda pronta, mas as meninas não vieram fazer provas com os atores, vieram mais tarde. Por isso, tivemos de fazer ali umas manobras. Os décors do “Parque Mayer”, por exemplo, condicionaram-me um bocadinho. Aí é que senti que gosto muito de fazer décors e que, quando os faço, faço bem. Meto a mão na massa. E Deus me livre de deixar as coisas tão limpinhas como aquelas estavam. Tudo bem que era nos anos 30, perto do princípio do Parque Mayer, mas aquilo ao fim de um mês já estava tudo cagado. Tinha árvores, erva no chão, palha, as coisas eram levadas em carroças e os cavalos cagavam. É disso que gosto, da textura, do envelhecer das coisas e aquilo estava limpinho, limpinho. Fiquei muito chateada.

Acho que há falta de brio. Quando faço uma coisa faço, nem que tenha de não dormir. Não estou a dizer que o guarda-roupa estava perfeito, porque não estava. Mas dei tudo o que podia dar, com o tempo e com o dinheiro que tive. Aliás, até dei mais do que aquilo que devia. Antigamente, tínhamos todos mais esse empenho, apesar de sermos menos. Eu ajudava-os a carregar material quando não tinha nada que fazer. Quando andávamos a filmar na serra, ajudava os eletricistas a segurar nas telas enormes para fazer a luz. Era uma maneira de funcionarmos todos juntos, era uma obra que estávamos todos a construir.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Agora é salve-se quem puder, ninguém põe o pé no setor do outro. Mas nos figurinos, ponho o pé onde quero. O figurino é da ponta do cabelo à ponta do pé e quem manda sou eu. Já parei muitos filmes por não concordar com coisas que fazem. Não fazem como eu digo vou ter com o realizador e digo: “Não quero isto assim”. E como foram eles que me escolheram e conhecem bem o meu trabalho, é para tirar. Se são coisas sem importância, é na boa. Agora, pôr uma rapariga pobre do século XVIII com uma fita desta largura de cetim a brilhar na cabeça, um laçarote. E eram espanhóis. Cheguei lá e queimei a fita. Depois andaram atrás de mim para me bater. Liguei ao diretor de arte, um amigo meu inglês que vivia no Brasil, e disse-lhe que tinha ido lá queimar a fita: “Agora ponham a fita que quiserem que desta já não há”. Isto foi num filme brasileiro, “O Judeu”. Demorámos dez anos a acabar esse filme. Morreu montes de gente, entretanto.

O que é que ainda lhe falta fazer?
Se houve outros projetos assim engraçados que pudesse fazer… Convidaram-me agora para fazer um filme no Brasil, no ano que vem. Vai ser lixado. Ele diz que não me deixa ir e o outro diz que me vem cá buscar, portanto eles que se amanhem.

Até quando é que se imagina a fazer isto?
Até quando? Não sei, até ter forças. Já estou reformada, mas não quero ir para casa. Maça-me muito.

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