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Começou na rádio, fez teatro, cinema e televisão, ficou conhecido do grande público pelas séries da RTP "Os Andrades" e "Os Amigos do Gaspar"
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Começou na rádio, fez teatro, cinema e televisão, ficou conhecido do grande público pelas séries da RTP "Os Andrades" e "Os Amigos do Gaspar"

Rui Oliveira/Observador

Começou na rádio, fez teatro, cinema e televisão, ficou conhecido do grande público pelas séries da RTP "Os Andrades" e "Os Amigos do Gaspar"

Rui Oliveira/Observador

Mário Moutinho: “Toda a arte é política, principalmente aquela que diz que não é”

Ator, produtor e programador, Mário Moutinho é um nome maior da cultura portuense. Aos 73 anos não perdeu o fôlego. "Little B" é o espetáculo que parte das suas memórias e chega ao Rivoli este mês.

A boina, o bigode e os óculos redondos fazem-nos dar por ele à distância. Numa manhã fria de inverno, Mário Moutinho chega à sede da companhia de teatro Visões Úteis, no Porto, pronto para conversar, provavelmente uma das coisas que mais gosta de fazer na vida. Curioso, perspicaz e de sorriso fácil, fala do presente, do passado e do futuro, provando que a sua história se funde e confunde com a história da cidade, aquela que nunca “abandonou e atraiçoou”.

Sem grande esforço, recorda os concertos da Orquestra Sinfónica do Porto, o cinema comercial e o teatro de revista que via com os pais, experiências de uma infância que ecoaram na adolescência. Tocou bateria, apaixonou-se pelo cinema e começou a sua vida profissional na rádio. Com uma marioneta nas mãos, descobriu o prazer de representar e nunca mais deixou esse ofício.

Fez teatro, cinema e televisão, foi o Marcial, na série “Os Andrades”, e o Guarda Serôdio, em “Os Amigos do Gaspar”. No início dos anos 1990, Mário Moutinho era conhecido na rua e sentiu na pele a falta de privacidade. Foi animador sociocultural, dirigiu o Coliseu do Porto e o FITEI, produziu, encenou e escreveu, nunca negou um desafio e nunca se arrependeu de não ter tentado uma carreira em Lisboa. O rótulo de ator cómico fez-lhe mossa, mas rendeu-se a ele ao perceber que fazer rir os outros era mesmo o seu ponto forte.

Ganhou consciência política aos 15 anos, durante uma homilia do padre na missa, hoje é autarca do Centro Histórico do Porto pelo Bloco de Esquerda e garante que o 25 de abril foi o dia mais feliz da sua vida, o dia em que pela primeira vez teve orgulho em ser português. Para Mário, a arte é sempre um ato político, um reflexo do homem e do momento que vivemos.

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É um critico das pequenas e das grandes coisas e em casa tem uma sala-arquivo onde guarda “tralha”, dos programas de todos os espetáculos que viu a notícias de jornais. No futuro, quer doar toda a documentação ao Museu Nacional do Teatro e Dança, mas antes disso, as suas memórias já resultaram num livro – “O Teatro Semiprofissional do Porto”, lançado em novembro passado – e foram o ponto de partida da peça “Litlle B”, que chega ao Teatro Rivoli, no Porto, de 15 a 19 de janeiro.

O tempo, a idade e a experiência não o fazem abrandar, antes pelo contrário. Mário Moutinho tem sempre projetos na gaveta e ideias por concretizar. Aos 73 anos de vida e quase 50 de carreira, conta-nos que deseja terminar o seu percurso como ator no Teatro de Marionetas do Porto, companhia da qual é fundador, e assim acabar da forma como começou: com uma marioneta nas mãos.

José Fonseca e Costa, Manoel de Oliveira, José Pedro Vasconcelos ou Rodrigo Areias foram alguns realizadores com quem Mário trabalhou

Rui Oliveira/Observador

Como foi a sua infância?
Nasci no Porto, mais precisamente na freguesia de Paranhos, aos sete anos fui para Cedofeita, onde praticamente vivi sempre. A minha infância foi normal, até aos cinco anos vivi em casa da minha avó materna, num palacete burguês no Carvalhido, andei na escola pública, fiz o liceu e o curso comercial, livrei-me da tropa e larguei os estudos para fazer aquilo que faço hoje.

Tinha alguém na sua família ligado às artes?
O meu pai era violinista, depois da guerra, quando eu nasci, teve que se dedicar a outras atividades profissionais, como a contabilidade. Era violinista, tinha formação artística e foi também ator amador nos seus tempos de juventude, foi ele que me ensinou a ver teatro e cinema.

Recorda-se do primeiro espetáculo que viu?
Lembro-me de ir muito novo com os meus pais ao teatro, os primeiros espetáculos que terei visto devem ter sido na altura do carnaval ou da passagem de ano, aqueles mais comerciais, pois era praticamente a única coisas que havia. Mais tarde, comecei a ir a outras coisas com o meu pai, como os concertos da Orquestra Sinfónica do Porto todos os domingos de manhã no Rivoli.

Que eco é que isso teve em si?
Só percebi o efeito que a música, principalmente a ópera, teve em mim muito mais tarde. Fiz o meu primeiro curso de cinema no Porto sobre linguagem cinematográfica com tinha 15 ou 16 anos, mas não tinha bagagem cultural para perceber muitas das coisas que ali foram ditas. Só muito mais tarde, quando me interesso verdadeiramente por cinema e começo a estudar essa área, é que me fui lembrar de algumas referências, filmes que vi e tive necessidade de voltar a ver.

Antes do cinema, veio a rádio.
Sim, o meu primeiro trabalho profissional foi na Emissores do Norte Reunidos. Fui lá parar porque estava ligado a algumas atividades artísticas, tocava bateria, participava num grupo teatral amador, muito informal de jovens estudantes. O meu primeiro programa foi a rádio teatro, sempre gostei muito de rádio, aliás ainda hoje gosto. Depois comecei a colaborar em programas de música ao vivo e a ler publicidade.

Estudar fora de Portugal era um objetivo?
Sim, com 24 ou 25 anos fui estudar cinema para França, queria ser realizador. O cinema já era a minha paixão desde muito novo. Também ia ao cinema com o meu pai, às matinés e às sessões especiais no São João, no Batalha, no Águia D’Ouro ou no Carlos Alberto. Lá em casa éramos quatro, os meus pais, eu e a minha irmã mais nova, e debatíamos sempre é que queríamos fazer. O meu pai fazia o orçamento e em função disso e do que aparecia no Porto escolhíamos o programa.

Como era o Porto culturalmente nessa época?
Antes do 25 de abril é preciso perceber que o bom cinema e o bom teatro eram proibidos, víamos essencialmente comédias no Sá da Bandeira e revistas. No final dos anos 60 chegaram ao Porto algumas companhias mais sérias, menos comerciais e mais contemporâneas que abanaram o panorama cultural. Aí descubro outro teatro que não estava habituado, foi uma nova visão.

Nunca pensou ficar em França?
Sinceramente não. No final do primeiro módulo do curso fui convidado a fazer uma cenografia audiovisual para uma peça de teatro, era algo que nunca tinha sido feito. Foi um desafio absolutamente inacreditável, não havia vídeo, eu tinha uma câmara Super 8 e fiz umas experiências com slides e retroprojetores. Esse trabalho foi criado com um encenador e uma equipa que viria a ser o Teatro Amador de Intervenção (TAI), uma das companhias que se tornou semiprofissional nos anos 70. A partir daí, tenho uma ligação muito forte com a companhia, que além do grupo de teatro com quem eu trabalhava tinha também um grupo de marionetas. Num verão, um dos elementos desse grupo não estava em Portugal, ofereci-me para o substituir e gostei muito da experiência. No terceiro módulo do curso, já estava como quadro de animação cultural no Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis (FAOJ), da Secretaria de Estado da Juventude, com o objetivo de formar no Porto uma secção de cinema para jovens e com jovens, era um projeto que me estava a entusiasmar muito e me fazia querer regressar a Portugal.

"No final dos anos 60 chegaram ao Porto algumas companhias mais sérias, menos comerciais e mais contemporâneas que abanaram o panorama cultural. Aí descubro outro teatro que não estava habituado, foi uma nova visão."

Depois da realização, apaixona-se pela direção de atores?
Exatamente, quando faço o curso de cinema fico entusiasmo com a área da direção de atores. Na companhia TAI pude explorar isso, procurei estudar o que era o teatro para a infância, algo que estava muito em discussão na época. Nesse grupo só se começa a fazer teatro de marionetas para adultos com a chegada do encenador João Paulo Seara Cardoso e juntos, em 1988, fundámos o Teatro de Marionetas do Porto.

Nos anos 80 dirige o Coliseu do Porto, quando este deixa de ser um cinema e passa a ser uma sala de espetáculos. Como foi essa experiência?
Foi agridoce. Sou convidado para ir para o Coliseu pelo diretor do FAOJ, onde eu era animador cultural há dez anos. Fiquei bastante surpreendido, nunca me tinha passado pela cabeça abraçar aquilo. Na altura assustei-me, sentia que não tinha estaleca nem arcaboiço para aquele trabalho, no entanto sabia que tinha um conjunto de conhecimentos e uma rede de contactos que poderiam ser úteis aquele lugar. Na época, o Coliseu funcionava como cinema, nem sempre com muita qualidade, tinha três mil lugares e às vezes só recebia 30 pessoas. Não era uma sala com uma programação própria, mas de aluguer, não havia mesa de luz, som, não estava minimamente preparado para receber espetáculos. Houve uma transformação, fizeram-se obras e recuperou-se o Salão Ático, para ser uma sala de café teatro, mas algumas opções arquitetónicas e de conceito da administração não me agradaram e tive alguns conflitos. Depois de dois anos, o contrato não foi renovado.

Em que momento chega à televisão?
Chego à boleia marionetas, quando o TAI foi convidado a fazer alguns sketch com marionetas em programas gravados ao vivo com público. O sucesso foi tão grande que o diretor da RTP no Porto, o Elísio Oliveira, convidou o João Paulo Seara Cardoso a fazer uma série com marionetas. O João Paulo juntou-se ao Sérgio Godinho e ao Jorge Constante Pereira e os três criaram a “Árvore dos Patafúrdios”, em 1985. Dois anos depois, veio “Os Amigos do Gaspar”, onde também participei na criação de algumas coisas. Mais tarde, em 1993, chegou a série “No Tempo dos Afonsinhos”. A verdade é que essas séries tiveram muito sucesso.

Quando deixa as marionetas e se assume como um ator de carne osso?
Nessa altura, a direção da RTP no Porto tinha um núcleo de criação para séries infantis e decidiu criar um núcleo de ficção. Veio do Brasil um suprassumo da Tv Globo, o Paulo Afonso Grisolli, fazer um casting para uma série escrita pelo Carlos Tê e pelo Álvaro Magalhães chamada “Clube Paraíso”. O Paulo era o realizador, fez a preparação para a série e uma formação de representarão para televisão que não existia cá. Nós atores levávamos para a televisão e para o cinema as técnicas do teatro, que por vezes ficava exagerado e nem sempre funcionava. Ele ajudou-nos a fazer essa transição, foi extraordinário.

Com o encenador João Paulo Seara Cardoso, funda em 1988 o Teatro de Marionetas do Porto e é lá que quer voltar quando terminar a sua carreira

Rui Oliveira/Observador

Há uma série que o torna conhecido do grande público em 1993, “Os Andrades”.
Sim, no “Clube Paraíso” fiz uma personagem que tinha muita piada, um canalizador, e um dos autores pensou em escrever uma série comigo, aproveitando uma personagem cómica que eu poderia criar. “Que tal fazeres um portista com óculos fundo de garrafa, uma sogra a dar-te cabo da cabeça e seres apaixonadíssimo pela rapariga do bingo?” Disseram-me isto e eu disse logo que sim. Foi uma história escrita para mim e em função do que eu poderia fazer. Filmámos duas séries de 26 episódios, de 1993 a 1997, e ainda hoje na rua me chamam de Andrade.

Divertiu-se muito a fazer aquilo?
Era uma coisa muito centrada em quatro atores, não tínhamos descanso. Em simultâneo, eu estava a fazer dobragens de desenhos animados e teatro à noite. Foi cansativo, mas diverti-me muito.

Sendo uma série gravada e inspirada no Porto, sentiu logo o impacto deste trabalho na cidade?
Não, de todo. Aliás, eu só descubro que a série está a ser transmitida quando sou abordado na rua. Ao descer a rua da Lapa, zona onde ainda hoje vivo, um vizinho passa por mim e diz: “ainda agora o vi na televisão e já vai aqui?” A partir daí foi um sucesso inacreditável e isso muito visível principalmente aqui no Porto. Não podia andar na rua, percebi o que era a ausência de privacidade.

Isso incomodou-o?
Lidava bem com isso, mas já não podia olhar para uma menina da mesma maneira, falar com pessoas que não conhecia de lado de nenhum, enfim, comecei a ter noção de que já não poderia fazer os mesmos disparates que fazia, mas, no fundo, acho continuei a fazê-los (risos).

Sempre o viram como ator de comédia, este rótulo não o condicionou?
Ser um ator da comédia foi um dos traumas da minha vida (risos). Claro que me identifico com isso, mas houve uma altura em que sempre que precisam de um palhacinho lembravam-se do Mário Moutinho, quando havia uma coisa séria não era o ator escolhido. Pensava muito nisso, mas depois passou-me. O meu primeiro papel sério foi uma coisa dirigida pelo João Paulo Seara Cardoso, um velho mágico da floresta. Lembro-me que tive dificuldades em encontrar um registo de voz, não tanto a postura, ou a construção de personagem, mas mais o registo de voz. Mais tarde, na companhia Seiva Trupe, o Júlio Cardoso convidou-me para fazer um drama contemporâneo em que não estive nada bem, toda a gente reconheceu isso inclusive eu. Cheguei à conclusão que não era um ator dramático.

Nunca teve a tentação de fazer uma carreira em Lisboa?
Não. Recebi alguns convites, ia a Lisboa fazer uma coisa ou outra, mas depois voltava. Todos os meus colegas que tinham ido para Lisboa durante cinco dias ficaram cinco meses e os que foram por cinco meses ficaram por 50 anos.

Tinha medo que lhe acontecesse o mesmo?
Não era bem medo, Lisboa não me mete medo, mas tinha muita atividade no Porto, era responsável por uma produtora, tinha a companhia de marionetas na qual era o responsável de produção. Existiam vários de projetos em que estava profundamente ligado e que tinha de abandonar para ir para Lisboa. Depois há a ligação à cidade, às pessoas, às raízes, tinha e tenho tudo aqui. Isto não quer dizer que não saia daqui de vez enquanto, ainda há dois anos tive uma grande temporada em Lisboa a trabalhar no Teatro da Trindade, fiz o “À Espera de Beckett”, foi uma proposta aliciante que aceitei logo.

Ao ir para Lisboa acha que teria tido uma carreira diferente?
Acho que sim, seria necessariamente diferente. Eventualmente seria uma carreira com mais visibilidade pública, mas não sei se seria mais interessante, não faço ideia. É natural que fosse mais visível se tivesse sucesso, mas também poderia ser um fracasso. Eu gostei do que fiz cá, não estou nada arrependido.

"Houve uma altura em que sempre que precisam de um palhacinho lembravam-se do Mário Moutinho, quando havia uma coisa séria não era o ator escolhido. Pensava muito nisso, mas depois passou-me."

Disse numa entrevista que o 25 de abril foi o dia mais feliz da sua vida. Foi mesmo?
Nunca me esquecerei desse dia. Fui acordado de madrugada por um colega que telefonou para minha casa e até acordou o meu pai. Ele não me falou de forma muito clara, estava cheio de medo, só me disse para não sair de casa e ligar imediatamente o Rádio Clube Português. Liguei o rádio e ouvi umas marchas, fiquei na dúvida sobre o que se estava a passar. Nunca mais me disseram nada e de manhã decidi sair de casa e ir para a rua, só regressei de madrugada. Fui para a Avenida dos Aliados e era tudo muito estranho, houve polícia, umas pedras pelo ar, mas saí ileso. Foi um dia fantástico. Lembro-me de entrar no Café Imperial, onde hoje é o McDonald’s, e não ver a cabeça das pessoas, só via jornais abertos. Essa imagem nunca mais me esqueci. Ao fim do dia não queria voltar para casa, apetecia-me ficar na rua a comemorar, senti que era um dia de festa. Queria comprar uma bandeira de Portugal porque de repente fiquei com orgulho no país onde vivia. Até ali não tinha orgulho nenhum.

Não sentia esse patriotismo?
Nada. Sentia vergonha de viver num país com ditadura, quando viajava tinha vergonha de dizer que era português, associavam-me aos emigrantes e era logo mal tratado, não me esqueço disso. Nesse dia tive consciência que algo mudou.

Quando ganhou essa consciência política?
Fui ganhando, mas há talvez um momento importante. Tive formação católica, como a maioria das pessoas, e com uns 15 anos fui, como era habitual, à missa ao domingo à igreja da Lapa. Na homilia, o padre diz que a juventude está perdida e começa a dizer mal da juventude. Já não me lembro dos disparates que ele disse, mas dei por mim a pensar que ou falava do sítio onde estava e gritava que o homem era uma besta ou deixava de lá ir. Esse foi um momento chave. Pensei logo como iria justificar aos meus pais e na semana seguinte procurei ler coisas sobre a igreja católica. O meu pai ficou com a dele e eu fiquei com a minha. Respeitou, mas ficou zangado, refilou, disse-me que não sabia o que estava a dizer, refilou. No fundo, acho que ele pensou que tinha de se mostrar magoado para exercer a sua autoridade, mas percebeu que eu estava a sustentar a minha decisão.

Que argumentos utilizou?
Falei da inquisição, da questão da guerra e do facto de a igreja ser conivente com a guerra. O padre disse mal da juventude porque naquela altura os mais jovens manifestavam-se contra a guerra e começaram a surgir os movimentos hippies. Tudo isso era uma ameaça.

Ganhou consciência política durante uma missa de domingo, atualmente é autarca do Centro Histórico do Porto pelo Bloco de Esquerda

Rui Oliveira/Observador

Foi também nessa altura que se tornou mais ativista?
Foi progressivo, à medida que me vou informando sobre as coisas, vou tomando consciência de que é necessário intervir e não ficar a ver o comboio a passar. Antes vivíamos numa ditadura, num silêncio e numa repressão que sentia em casa e na escola. Depois do 25 de abril tudo mudou. Surgiram os movimentos clandestinos, os estudantes juntaram-se e eu liguei-me aos movimentos dos católicos progressistas. Nessa altura, sou abordado por alguns colegas meus ligados a partidos políticos para pertencer a esses movimentos de esquerda e de oposição. Mantive sempre uma certa independência. Quando havia eleições para a presidência da república eu ia a comissões e a campanhas sem saber bem porquê. O meu pai ficava em pânico, tinha medo que me acontecesse alguma coisa, que eu não tivesse juízo, fosse para a frente de alguma manifestação e acabasse magoado, preso ou morto.

De que forma é que a arte que faz também pode ser política?
Acho que toda a arte é política, principalmente aquela que diz que não é. Ao dizer que não é política está a ter um ato político, pouco recomendável, mas é um ato político. A arte pode ser mais ou menos interventiva, mas é sempre o reflexo do que é o homem, as suas aspirações, os seus sonhos e os seus anseios. Se não for isso, não é arte, é uma contrafação de outra coisa qualquer. Antes do 25 de abril havia uma arte de resistência que era perseguida, proibida e censurada. Existiram certos grupos a tentar remar contra a maré, como o Teatro Experimental do Porto, por exemplo. Depois disso, houve uma explosão do teatro político, muito militante, muito panfletário, por vezes demasiado óbvio e até mal feito, mas não deixa de refletir um momento que se viveu, que aqui no Porto depois se transformam nos grupos de teatro semiprofissionais.

É disso que fala o seu último livro, “O Teatro Semiprofissional do Porto – Arte Ativismo e Experimentalismo dos anos 70 e 80”. Como surgiu esta ideia?
Nasceu de um desafio que me foi lançado pela crítica e professora Maria Helena Serôdio há quatro anos, depois de uma intervenção minha num ciclo de teatro do Porto no S. Luiz, em Lisboa. Falei do período pós 25 de abril, só tinha 20 minutos, mas falei durante 40 e no fim ela disse-me que tinha que escrever sobre o assunto, que não podia ficar apenas na minha memória. Naquela altura estava na direção do FITEI – Festival Internacional De Teatro De Expressão Ibérica e nunca mais pensei no assunto. Quando saí de lá, em 2014, comecei a olhar para as minhas coisas, para o meu arquivo, no fundo, para a minha tralha, e decido avançar.

Guarda tudo?
Guardo, é horrível. Tenho uma sala cheia de documentação, programas de todos os espetáculos que vi ao longo da minha vida, folhas de sala, cartazes, textos de apoio, críticas, livros e notícias de jornais. Ao procurar esse tipo de coisas, percebi que tinha que fazer uma investigação sobre aquilo e convidei a jornalista Luísa Marinho para trabalhar comigo, já me tinha cruzado com ela no FITEI. Entrevistámos 27 pessoas, protagonistas deste movimento teatral.

"A arte pode ser mais ou menos interventiva, mas é sempre o reflexo do que é o homem, as suas aspirações, os seus sonhos e os seus anseios. Se não for isso, não é arte, é uma contrafação de outra coisa qualquer."

A tralha de que fala também é a matéria prima do espetáculo “Little B”, que estará no Rivoli este mês.
Sim. O Carlos Costa, fundador da companhia Visões Úteis, é meu vizinho e dá-me boleia várias vezes para ir ver espetáculos. Falei-lhe do livro que estava a fazer ele desafiou-me a fazer uma uma peça do teatro pegando em textos antigos. Aí contei-lhe as sessões de café teatro que fazia em locais como o Ceuta ou o Pinguim, onde partilhava histórias da minha vida durante horas, ele gostou da ideia. A Visões Úteis tem sempre atores emergentes como convidados, mas desta vez apostaram pela primeira vez num ator sénior e, por isso, desde 2018 que sou artista associado da companhia. Mas uma coisa era contar histórias a brincar, partilhar as partidas que eu preguei, que me pregaram, os desastres que me aconteceram, as minhas memórias, outra era transformar isso num espetáculo. Disse que não.

Como o convenceram a fazer?
Com a condição de me darem condições de produção, apoio dramatúrgico e irem buscar uma pessoa mais nova para o elenco, que tivesse um olhar diferente sobre as coisas. Foi assim que chegamos à Sara Barros Leitão.

Recusa a ideia de este ser um espetáculo autobiográfico. Porquê?
Não quero que seja um espetáculo sobre as histórias da minha vida, resumido à minha pessoa. Acho que não faz sentido, isso é quando escrever as minhas memórias, se um dia tiver pachorra para fazer uma coisas dessas. O “Little B” tem coisas minhas, mas não é cronológico, está bem retalhado, está bem Tarantino.

Durante o processo criativo descobriu alguma coisa sobre si?
Sim, às vezes recordo-me de coisas que já não me lembrava, mas que no fundo estão cá. É um exercício giro. O meu bigode, por exemplo, deixei-o crescer nos anos 60 porque tinha uma cara de puto, ninguém me levava a sério e as miúdas não me ligavam nada. Tirei-o pela primeira vez quando recebi a carta de uma namorada que não era do Porto, mas que vinha cá e queria estar comigo, tinha saudades minhas. Ela tinha-me conhecido sem bigode, pensei que se calhar não ia gostar e decidi tirar. Estive com ela, mas não deu em nada e por isso voltei a deixar crescer o bigode.

Nunca mais o tirou?
Tirei-o duas vezes por motivos profissionais, para personagens, mas agora já é uma imagem de marca, já sou conhecido com ele e por ele.

O bigode farfalhudo compõe a imagem do ator, que ainda hoje é reconhecido na rua como "o Andrade"

Rui Oliveira/Observador

Além do bigode, o Mário é também conhecido por ser um crítico da cidade a nível cultural, mas não só.
O Porto passou um período muito mau, o período de Rui Rio, foram anos negros a todos os níveis. Venda património, cultura completamente esfrangalhada, produtoras a fechar, companhias abandonarem a cidade. Foi um desastre absoluto. Rui Rio foi um dos grandes males que aconteceram à cidade do Porto.

Como vê o Porto culturalmente hoje?
Houve uma mudança radical com a chegada de Rui Moreira, mas há coisas que ainda não estão ainda a funcionar. Ele começou por devolver, e bem, equipamento à cidade, nomeadamente o Rivoli. O Porto aceitou e respondeu muito bem a essa devolução, enchendo as salas cuja programação ainda era da responsabilidade do vereador Paulo Cunha e Silva. A câmara anima a cidade a partir de uma programação que era, não digo excelente, mas bastante boa. Hoje falta o outro lado, ou seja, a ligação das estruturas artísticas, culturais e de criação da cidade ao poder local. Há a necessidade de estabelecer programas de apoios a essas estruturas, são elas que vão identificar a cidade no futuro e essa identidade não se pode perder. As estruturas da cidade são pontualmente programadas para os seus espaços, mas não há contratos de apoio logístico e de produção. A programação é um setor importante na política cultural, mas não é política cultural no seu todo, é necessário dar um apoio continuo à criação e às estruturas de produção artísticas na cidade.

O que gostava de fazer no futuro? Ainda tem projetos na gaveta?
Não sei exatamente o que vai acontecer, mas tenho o projeto de acabar a minha carreira como ator no Teatro de Marionetas do Porto. São 50 anos fazer teatro e queria terminar com um espetáculo lá. É a minha companhia, é a ela que estou ligado de alma e coração, sou um dos fundadores e gostava muito de lá voltar. Não sei se quero escrever as minhas memórias, gostava de fazer coisas pontuais em televisão, uma outra encenação e tenho saudades de fazer café teatro. Quero ter tempo para descansar, mas ficar de papo para o ar não faz parte do meu feitio. Se parar, provavelmente vou dedicar-me à minha biblioteca, vou aproveitar para organizar todos os meus documentos para depois doá-los ao Museu Nacional do Teatro.

Continua a ser um adepto fervoroso do Futebol Clube do Porto?
Sim (risos). Não sou doente, mas fico muito feliz quando o Porto ganha e quando o Benfica perde. Só deixei de ir ao estádio por uma questão de superstição, pois quando deixei de ir o Porto foi campeão. Nunca mais lá fui, mas vejo em casa, porque nem desportivamente atraiçoo a minha cidade do Porto.

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