Discurso de Marisa Matias, recandidata a Belém

Apresentação de candidatura apoiada pelo BE à Presdiência no Largo do Carmo, em Lisboa

Estou aqui para vos dizer que serei candidata à Presidência da República e porquê. Mas antes de dizer umas palavras, deixem-me explicar porque pedi a vossa presença, aqui no Largo do Carmo, e vos quis ouvir. O país ouve falar todos os dias da pandemia e do sobressalto em que vivemos. Mas fala-se cada vez menos de quem todos os dias luta nos hospitais e centros de saúde, no rastreamento e na prevenção, para salvar vidas, para permitir a abertura das escolas, para proteger os idosos nos lares”

No Largo do Carmo, em Lisboa, Marisa Matias apareceu sem a habitual moldura partidária que sempre surge nestas sessões oficiais. E isto porque decidiu que aquele não era esse momento. Ali, a candidata presidencial apoiada pelo Bloco de Esquerda, queria apenas deixar a sua declaração de vontade frente a 17 profissionais de várias atividades que estiveram na linha da frente no combate à Covid-19. Na prática juntou representantes de vários setores de atividade que não pararam durante a pandemia, nem no pico do confinamento. No seu entender, figuras que representam quem “olhou o medo nos olhos e foi à luta”: o trabalhador do lixo, Paulo, a trabalhadora das limpezas Isabel, o enfermeiro Mário, o médico Afonso, a técnica de diagnóstico Marta, a cuidadora informal Rosália, o microempresário Afrozur, a voluntária Beatriz, a cientista Inês, a trabalhadora da área da cultura Catarina, a estudante Andreia, o maquinista Sérgio, a professora Cecília, o trabalhador da indústria Luís, o carteiro Roberto, o bombeiro João e a vigilante Sofia. Um simbolismo, ali naquela praça também de pesada carga simbólica, com que a recandidata quis mostrar que é assim que vai fazer campanha: “A ouvir, a dar voz à gente sem medo, a apoiar a coragem de quem cuida dos outros”. E com isto aproveitar também para se afirmar como a “candidata para fazer essa campanha contra o medo”, que — está bom de ver — não é apenas o medo da pandemia.

O meu lugar é a afirmar o respeito e a solidariedade com quem está aflito com a crise. Venho a esta campanha, como vos disse, para mostrar que não pode haver medo. O medo é o que nos destrói, é o que torna um país pequeno e submisso, é o que provoca divisões, racismo, ódio, perseguições. O medo divide, a República une. E é por isso que sou republicana, luto ao lado de quem se revolta contra a injustiça, de quem, como vocês, não se permite desistir do país, de quem luta pelos valores de uma esquerda que não se verga às ordens do mercado, de Berlim ou de Washington, de Pequim ou de Bruxelas”

Há um lado político no agitar desta bandeira do medo e aqui nesta frase foi onde a candidato apoiada pelo BE o deixou mais claro. Nunca nomeou André Ventura, o candidato presidencial já oficializado, mas nas linhas desta tirada está lá tudo o que, para Marisa Matias, o deputado do Chega e seu adversário nesta luta representa. O medo provoca “divisões, racismo, ódio, perseguições”, detalhou a eurodeputada. É uma frente de combate tratada com pinças pelas forças de esquerda, que reconhecem na ponta de lá do espectro político (a extrema direita) um adversário perigoso, mas que não querem valorizar demasiado, dando-lhe palco e fazendo desse o adversário mais direto. Assim, Marisa Matias não nomeia Ventura, embora multiplique no seu discurso os alertas ao medo que quer associar a essa candidatura.

E, por isso, sou candidata frente a frente com Marcelo Rebelo de Sousa. É o presidente em funções e sei bem das diferenças com o passado. E sei de caminhos onde nos encontramos, como na exigência pelos direitos das pessoas em situação de sem-abrigo ou na luta pela visibilidade e reconhecimento dos cuidadores informais. Mas discordamos em questões essenciais e peço o voto sobre essa diferença”

Nem só desse combate silencioso contra Ventura se faz esta candidatura de Marisa, que apenas chama pelo nome um adversário: Marcelo Rebelo de Sousa — lá está, este é o único rival que assume como direto para evitar uma dicotomia com a frente Ventura. O atual Presidente ainda não formalizou recandidatura, mas a bloquista aponta-o como o principal adversário, reconhecendo que há muito que os divide, mas que é muito mais o que os separa. Sim, pode ter cortado com “o passado”, de Cavaco Silva, e até convergir consigo na luta pelos sem-abrigo ou pelos direitos dos cuidadores informais, mas discordam em tudo o resto. Que resto? No regime político, no regime financeiro, no Serviço Nacional de Saúde. Tudo o que é “essencial”, na definição da própria candidata que traça aqui as divergências de conteúdo, mais do que o estilo terra-a-terra que acaba por até a aproximar do homem que vem da direita.

Eu não aceito a desigualdade e enfrento-a. Não terei o voto dos mandatários das fortunas, mas estarei com os jovens trabalhadores que não aceitam empobrecer nesta segunda grande crise das suas vidas.

Esta frase muito curta apenas e só para lembrar outra frase de Marisa Matias há cinco anos quando disse ser “possível chegar à Presidência sem a proteção do Espírito Santo. Nunca fui avençada do dito e nunca festejei a passagem de ano no iate de Ricardo Salgado”. Diferente, certo? Muito. Mas o conteúdo está lá na mesma, nesta referência aos “mandatários das fortunas”. Marcelo continua a ser o velho amigo do ex-Dono Disto Tudo, Ricardo Salgado e a candidata do BE continua a pôr o dedo nessa ferida, embora de forma um pouco bem menos estrondosa. É um passado que o BE pode já não querer explorar por completo, mas não esquece sobretudo porque é uma fragilidade latente para Marcelo e a fase de instrução criminal do caso BES deverá começar até ao final deste ano. Embora a decisão instrutória (quando se decide quem vai a julgamento e por que crimes) deva acontecer apenas já na segunda metade de 2021, a instrução vai recuperar já os fantasmas desse passado em pleno período de pré-campanha presidencial.

Aqui está porque sou candidata. Não sou candidata por jogos partidários, por ajuste de contas, por necessidade de palco. Gosto do que faço: cumpro o mandato para que fui eleita, vivo feliz a dar o meu contributo e, se venho a esta campanha, é pelo entusiasmo e confiança na vossa palavra, na vossa experiência, na vossa vida, na força que podemos dar a Portugal

Em menos de dez minutos, Marisa Matias apresentou os seus motivos numa declaração curta e com a qual conseguiu ultrapassar a outra candidata da esquerda que já se prepara para avançar, Ana Gomes. A socialista vai apresentar candidatura esta quinta-feira, já só depois de Marisa que não a esqueceu nesta sua entrada na estrada presidencial ao dizer que não está aqui para “ajuste de contas”. É um dos objetivos colados à candidatura de Ana Gomes que, não tendo apoio direto nem indireto do líder socialista (antes pelo contrário), não deixa de avançar para uma corrida que sabe não ser unânime no seu partido. Já a parte dos “jogos partidários” e do “palco mediático” são ideias que encaixam bem, mais uma vez, em André Ventura que avança nesta corrida com o intuito de catapultar o Chega além dos 1,29% de votação que obteve nas legislativas de 2019.