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Marvin Gaye: a música intensa e a vida trágica de um homem atribulado

Neste 2 de abril, se estivesse vivo, Marvin Gaye faria 80 anos. Ao mesmo tempo é editada uma inédita coleção de singles de um dos nomes maiores da música americana. Isilda Sanches recorda-o.

Cada um tem o seu caminho para chegar a Marvin Gaye. No meu caso, a culpa é do Vini Reilly. Lembro-me de ler uma entrevista nos anos 80, acho que num número da revista Música & Som do meu irmão mais velho, em que Reilly, dos Durutti Column, na altura na fase Amigos em Portugal, falava de “Sexual Healing” e da trágica morte de Marvin Gaye. Para uma adolescente que começava a interessar-se pelo lado escuro da vida, a ideia de alguém ser morto pelo pai a tiro era terrível, mais ainda tratando-se de uma estrela da música que fazia canções sobre “curas sexuais”. Na altura não sabia quem era Marvin Gaye, não tinha ainda ouvido a canção, mas fixei o drama pessoal e a temática adulta e fiquei atenta, o que, numa época em que não havia internet, lojas de discos nas redondezas ou programas de soul na rádio portuguesa, significou esperar que passasse acidentalmente na rádio ou televisão.

Acabei por ouvi-la na rádio, acho que à noite e, confesso, o meu pendor pós punk não deixou que me impressionasse. Ou isso ou fiquei intimidada pela entrega de Marvin Gaye numa canção tão sensual, algo bastante estranho para quem estava habituada a ouvir Joy Division ou Bauhaus, às vezes Leonard Cohen. Na verdade, a soul ou funk, genericamente a chamada “música negra”, não tinham grande expressão em Portugal. Crescemos todos com um buraco na alma por causa disso. E pés de chumbo também. Eu acabei por descobrir Marvin Gaye só nos anos 90, quando começaram a chegar os discos de hip hop e acid jazz e as referências ficaram sobrepostas, mas nunca mais esqueci que foi Vini Reilly quem primeiro chamou a atenção.

[“You’re The Man”, da nova coleção de singles agora editada:]

Estrela pop, lenda soul

Tudo em Marvin Gaye é extraordinário. A figura, a voz, a música, a visão, a história de vida, a morte, o legado. E, tudo leva a crer pela biografia, poucos terão tido uma vida pessoal tão infeliz, com fim à medida de uma tragédia fundadora. Abusado fisicamente pelo pai desde criança, Marvin Gay (o apelido original de família não tem “e” no final) tornou-se numa estrela pop, numa lenda soul, mas nunca superou os conflitos primordiais.

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Marvin começou a cantar na Igreja, com os irmãos. Marvin Gay Senior, o pai, era pastor e impunha uma educação extremamente rigorosa (e religiosa) aos filhos. Cantar era não só uma forma de libertação como uma maneira de evitar as constantes e dolorosas tareias de cinto. O ambiente doméstico seria o que se pode chamar bizarro, além de violência física e insultos verbais sobre filhos e esposa, Marvin Gay Sr. tinha por hábito usar roupa de mulher em casa, o que, associado ao nome de família e aos comentários jocosos que provocava, criou muita insegurança sexual no jovem Marvin. Quando entrou para a Motown, com 21 anos, Marvin decidiu acrescentar um e ao apelido para terminar com anos de humilhação e insinuações.

"What’s Going On" era um disco urgente em 1971 por causa da Guerra do Vietname, da violência policial e políticas segregacionistas, por causa das catástrofes ecológicas, já na altura iminentes, e falta de amor em geral. Continua a ser um disco urgente hoje, basicamente pelas mesmas razões, ainda que o foco geográfico de algumas questões possa agora ser outro.

Legiões de psicólogos terão muito a dizer sobre a relação de Marvin com o pai. O que se intui da história que se conhece é que ela marcou toda a sua obra e garantiu que, sobre a voz de anjo que seduzia tudo e todos, pairavam tenebrosas sombras.

[Com Tammi Terrell em “Ain’t No Mountain High Enough”:]

Mas quando Marvin saiu de casa, aos 17 anos, não foi para cantar. Primeiro passou pela Força Aérea e só depois das coisas terem corrido mal é que a música entra no horizonte. Conheceu Berry Gordy, patrão da Motown em 1960, quando cantava com os Moonglows. A editora de Detroit já era na altura bastante conhecida. Inspirada nas linhas de montagem da indústria automóvel, tinha os estúdios abertos 24 horas por dia e dava emprego a muitos músicos, Berry achou que Marvin tinha talento e podia ser útil na “fábrica”.

Os seus primeiros anos foram como operário musical, ou músico de sessão, baterista sobretudo. Marvin só começou a gravar como artista a solo depois de casar com Anna Gordy, irmã de Berry, 17 anos mais velha e com espírito de mãe e mentora. O primeiro disco, em 1962, fê-lo com clássicos ao estilo Nat King Cole, tentando capitalizar na figura elegante e na voz de crooner de Marvin, mas só em meados da década de 60 é que se revelou de facto como cantor e artista pop. Primeiro foram os duetos com Tammi Terrell a chamar a atenção de um público mais vasto (“Ain’t No Mountain High Enough” tornou-se clássico) mas o protagonismo em nome próprio acabaria por chegar também.

A Motown vai editar um álbum perdido de Marvin Gaye

“I Heard It Through the Grapevine” (1968), versão de uma canção então já célebre na interpretação de Gladys Knights & Pips, foi a prova definitiva, tanto para Marvin, que teve o seu primeiro hit, como para a Motown que assim chegou a um público branco internacional. Continua, de resto, a ser um dos singles mais vendidos da história da editora.

[“I Heard It Through the Grapevine” ao vivo:]

Ainda assim, Marvin parecia não se sentir à vontade com o sucesso e a atenção conseguidos com uma canção que nem era sua, e mergulhou em dúvidas e medos. Em 1970, a morte de Tammi Terrell agravou ainda mais a situação. Tammi teve um colapso em palco durante um concerto com Marvin, em 1967, caiu-lhe nos braços durante a atuação. Tinha apenas 22 anos e era uma das estrelas da Motown. Ficaria confinada a uma cadeira de rodas e acabaria por sucumbir, três anos depois, ao tumor maligno no cérebro entretanto diagnosticado. Marvin entrou em reclusão pouco depois do acidente em palco e só regressou com What’s Going On, o disco de 1971 que a Motown não queria editar por ser demasiado político. Marvin teve mesmo que ameaçar sair da editora para a edição acontecer…

What’s Going On era um disco urgente em 1971 por causa da Guerra do Vietname, da violência policial e políticas segregacionistas, por causa das catástrofes ecológicas, já na altura iminentes, e falta de amor em geral. Continua a ser um disco urgente hoje, basicamente pelas mesmas razões, ainda que o foco geográfico de algumas questões possa agora ser outro.

[“What’s Going On” ao vivo:]

Ao contrário das previsões pessimistas da Motown, What’s Going On acabou por ser um estrondo e projetou Marvin Gaye para o estatuto de pensador que lhe reconhecemos hoje. Porque se é verdade que Marvin foi, e será sempre, um cantor da paixão, nas suas dimensões tanto física como espiritual, é na sua dimensão política que se realiza de facto como herói. Nesse sentido, What’s Going On é a sua obra fundamental porque ficou como um eloquente e comovente retrato da América dos anos 60 e 70, e um obra prima da soul consciente.

Do boogie à última discussão

Mas até quando era político, Marvin era sexy…. Let’s Get It On, álbum de 1973, por exemplo, ficou para sempre como um convite ao sexo, mas a ideia original para a canção que lhe deu título está nos antípodas disso. Ed Townsend, autor da letra, contou num documentário da BBC sobre Marvin Gaye, que a canção foi feita como incentivo para alcoólicos e toxicodependentes seguirem com as suas vidas mas, como Marvin Gaye parecia ter toque de Midas sensual, a canção acabou por se traduzir num convite mais ou menos direto ao sexo.

A vida de Marvin Gaye nunca terá sido fácil, mas a partir de meados dos anos 70 foi uma verdadeira montanha russa. À euforia do sucesso e da aclamação seguiam-se terríveis períodos de depressão, tudo alimentado a drogas e outros excessos. Tudo parecia certo quando regressou em 1982 com "Sexual Healing", mas acabou por afundar-se novamente.

O encontro com Janis Hunter durante as gravações de Let’s Get It On terá certamente algo a ver com a tensão sexual que tomou conta da canção. Janis era menor, tinha 16 anos, embora parecesse mais velha, Gaye era casado com Anna Gordy, a irmã do dono da Motown… o caso amoroso levou a que Marvin saísse de casa em 1973 para se entregar à nova relação e depois acabasse por aceitar o pedido de divórcio de Anna, que reclamou também pensão de alimentos. Marvin, reconhecidamente um péssimo homem de negócios que, apesar de ter ganho muito dinheiro, esbanjou mais do que na realidade tinha, nunca conseguiu cumprir com as obrigações de ex-marido exigidas por lei. Here My Dear, álbum de 1978, foi feito precisamente para pagar as dívidas à ex mulher, daí o título… Já agora, também há um “disco de Janis Hunter”: I Want You, o álbum em que Marvin investe no disco e boogie, refletindo os novos interesses e hábitos de vida.

[“Let’s Get it On”:]

A vida de Marvin Gaye nunca terá sido fácil, mas a partir de meados dos anos 70 foi uma verdadeira montanha russa. À euforia do sucesso e da aclamação seguiam-se terríveis períodos de depressão, tudo alimentado a drogas e outros excessos. Por causa disso saiu dos Estados Unidos, viveu uns anos na Bélgica, onde parece ter-se reencontrado, e tudo parecia certo quando regressou em 1982 com Sexual Healing, mas acabou por afundar-se novamente. O disco foi um sucesso e deu origem a uma digressão, mas Marvin tornou-se imprevisível, com comportamentos embaraçosos em palco (baixou as calças em alguns concertos…).

A glória e os pecados da Motown em 10 perguntas

Quando terminou a digressão continuava sem dinheiro e deprimido e acabou por regressar a casa dos pais. No dia 1 de Abril de 1984, um dia antes de fazer 45 anos, Marvin Gaye foi morto pelo pai durante uma discussão. Depois de ter sido empurrado por Marvin, o pai terá dito eu “trouxe-te a este mundo posso tirar-te dele”. E assim fez. Deu-lhe dois tiros com uma arma que o próprio Marvin teria mandado entregar em casa dias antes.

[“Sexual Healing”:]

Marvin faria agora 80 anos, poderia muito bem continuar a gravar discos e dar concertos, acredito que a sua obra continuasse a ser pertinente e a sua voz uma Força do Bem, mas há tragédias que parecem tomar conta de tudo e Marvin é amado também porque teve um fim terrível, além de ter feito música extraordinária.

Entre álbuns de originais e bandas sonoras como Trouble Man, Marvin deixou uma obra diversa e intensa que continua a conhecer acrescentos. Por estes dias saiu You’re The Man, um disco anunciado como “perdido” mas que no fundo é uma colecção de singles que nunca chegaram a ser editados por não cumprirem os requisitos exigidos pela Motown na fase pós What’s Going On. Não sendo brilhante, continua a alimentar a chama de um dos maiores heróis da música popular.

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