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"Matar alguém é a última das decisões." Como os negociadores da PSP lidariam com os assaltantes da "Casa de Papel"

A segunda temporada da série espanhola da Netflix já arrancou. E vem aí a terceira. O Observador falou com um negociador da PSP para perceber quais as técnicas usadas com este tipo de assaltantes.

Oito criminosos conseguem entrar na Casa de Papel espanhola, onde se fabricam as notas de euro. Usam armas e fazem reféns funcionários e um grupo de alunos que fazia uma visita de estudo. São profissionais. Não se conheciam pessoalmente uns aos outros antes do plano, tratam-se por alcunhas e obedecem a um mentor, a quem chamam “Professor”, que coordena todo o assalto a partir do exterior e comunica com a polícia. O crime tem uma particularidade: os assaltantes não querem roubar dinheiro a ninguém, querem sim produzir as suas próprias notas. Para isso precisam da ajuda dos reféns. E de tempo. O tempo é o mais importante no argumento da série da Netflix “A Casa de Papel”, cuja segunda temporada já arrancou — e uma terceira já foi anunciada — e que tem colado à televisão milhões de espectadores em todo o mundo.

Para a polícia, que na vida real intervém em casos que envolvem suspeitos barricados que fizeram reféns, o tempo é também fundamental. Segundo um negociador do Grupo de Operações Especiais da PSP, em conversa com o Observador, num caso destes “o tempo é importante” para as duas situações que daqui podem resultar: para negociar e convencer os opositores ou a abandonarem o local do crime voluntariamente, ou para que a polícia consiga obter o máximo de informação sobre os suspeitos e sobre o local do crime para então intervir. A intervenção obriga quase sempre a abrir fogo. Mas “matar alguém é a última das decisões”, ressalva o polícia (que ainda não viu a série espanhola).

Os negociadores da PSP integram o Grupo de Operações Especiais

A série foca bem a relação que se estabelece entre a polícia e os criminosos. O negociador contactado pelo Observador, que prefere não ser identificado por razões de segurança, explica que num caso destes seria aberto um Incidente Táctico Policial Grave, que obrigaria a cercar o espaço fazendo um perímetro de segurança em dois anéis (interior e exterior). A carrinha de comando dos negociadores da PSP, caso fossem eles a intervir, ficaria situada precisamente entre o primeiro e o segundo anéis do perímetro. Nada de muito diferente do que acontece na fição da ‘Casa de Papel’.

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Os negociadores devem tentar comunicar para o interior com um objetivo muito específico. “Normalmente há sempre um telefone. Senão, tentamos sempre uma forma de comunicar. Quando a negociação começa tem por objetivo salvar a vida das pessoas, ganhar tempo e tentar acima de tudo que o opositor, ou a pessoa que está no lado de lá, se entregue. Não é que se renda, mas que se entregue. Estes são termos diferentes que não humilham”, explica o oficial da PSP. As palavras são por isso, nestes casos, fundamentais.

"Quando a negociação começa tem por objetivo salvar a vida das pessoas, ganhar tempo e tentar acima de tudo que o opositor, ou a pessoa que está no lado de lá, se entregue. Não é que se renda, mas que se entregue. Estes são termos diferentes que não humilham".
negociador da PSP

As palavras não são ditas ao acaso. É essencial saber escolhê-las. Mas, antes, é necessário decidir quem vai fazer este trabalho. O chefe da equipa deve tentar perceber quem está do outro lado e quais as características que o negociador deve ter para se adequar ao opositor. “Se perceber que do outro lado tenho um muçulmano, não posso pôr uma mulher a negociar. A PSP estuda os costumes de todas as culturas para garantir que não põe em causa questões como estas. Por outro lado, se a primeira equipa a chegar ao local — que também tem formação em negociação — conseguir estabelecer logo um contacto e uma empatia, deve permanecer na negociação”, exemplifica. Na série espanhola, ‘Raquel’ — a negociadora especializada da polícia — está em casa com a filha quando recebe um telefonema do chefe. Este diz-lhe que é ela que tem de tratar de um assalto com reféns que acabaram na Casa de Papel. Ela não hesita.

A escolha do negociador

Na série espanhola, os assaltantes têm o cuidado de simular que, de facto, se barricaram após um assalto que correu mal. Depois de conseguirem fazer uma emboscada à carrinha que transportava o papel do dinheiro para a verdadeira fábrica de fazer dinheiro espanhola, chegam ao interior do edifício vestidos de igual e com máscaras de Dali a esconder-lhes a cara. Anunciam o assalto aos reféns, bloqueiam os alarmes, abrem a caixa-forte e reunem dinheiro em, pelo menos, dois sacos de viagem. Só depois acionam o alarme, esperam que a polícia chegue e simulam terem sido apanhados em flagrante. Nesses minutos da série, uma das assaltantes (‘Tóquio’) abre fogo e fere um elemento da polícia. Só depois as portas da Casa de Papel se fecham para dar início à intervenção policial. E à série.

‘Raquel’ chega ao local do crime já este está cercado pelas forças policiais. Em Portugal, na carrinha de comando dos negociadores cabem apenas eles e possíveis intermediários que possam ser chamados para a negociação. “Podem ser intérpretes, advogados, ou mesmo um elemento da família ou alguém próximo, caso seja essencial para apelar ao opositor que é melhor que se entregue”, diz a mesma fonte. No cenário da série, há uma tenda de comando onde estão vários elementos da polícia, um chefe dos Serviços Secretos (porque há uma filha de um embaixador estrangeiro feita refém e o Governo espanhol quer uma atenção especial para este problema diplomático), e ‘Raquel’, por vezes desconcertada com as perguntas do opositor, o ‘professor’, que estabelece todas as ligações.

"Temos sempre um plano para a negociação. Normalmente há sempre alguém a dar dicas para que não existam tempos mortos na negociação. Obrigatoriamente vou lendo os papéis, vendo o encadeamento da conversa... É importante ganhar tempo e empatia".
negociador da PSP

“Temos sempre um plano para a negociação. Normalmente há sempre alguém a dar dicas para que não existam tempos mortos na negociação. Obrigatoriamente vou lendo os papéis, vendo o encadeamento da conversa… É importante ganhar tempo e empatia“, diz o polícia português ao Observador.

São nove os assaltantes, mas o que pensou o assalto (‘O Professor’, ao meio) não entra na Casa de Papel

O posto dos negociadores não será o mesmo do Comandante da operação, mas este está permanentemente a ser informado sobre a negociação e sobre os planos da equipa tática (onde se incluem os snipers, que estão também presentes na série). Estas informações vão ajudar o comandante a decidir se a negociação deve avançar, se as exigências dos suspeitos podem e devem ser satisfeitas, ou se é melhor intervir.

Mas se o tempo é necessário para a negociação e para a equipa tática perceber o que está à sua frente, também não pode estender-se demasiado. “É importante que não se prolongue, porque as coisas também mudam. As pessoas mudam de pensamento. Há meia hora não pensava assim, há que pensar nisto”, explica.

Regra de ouro: nunca trocar um polícia por um refém

Ainda assim, o negociador português já teve casos em que o seu diálogo com o opositor se prolongou por dois dias. “Não havendo mortes, existindo empatia, comunicação, trocas, libertação de reféns, o negociador pode ter esperança que ele se entregue e que não seja necessário intervir”, diz o oficial da PSP. Na fição espanhola a negociação dura dias, há libertação de reféns e vários outros esquemas, mas fazem todos parte do plano dos assaltantes e não da polícia. Aqui os agentes são quase sempre levados ao engano, porque as suas estratégias foram estudadas e antecipadas.

Na negociação da polícia há uma regra de ouro, que recentemente parece não ter sido seguida pelas autoridades francesas em Carcassonne. No ataque terrorista a um supermercado, um polícia ofereceu-se para entrar no estabelecimento comercial e ser trocado por uma refém. Acabou por ser atingido e morrer. “Isso nunca se faz. Nunca respondemos a uma exigência em que se peça uma pessoa, mesmo que seja alguém com grande altruismo a oferecer-se para isso”, diz. A ideia é salvar vidas e não colocá-las em risco. “Se se aperceber que o tempo está a passar, que já há mortes, a negociação tem que perceber que o seu papel não tem continuidade. Então é a altura certa para entrar pela via da força, causando prejuízo. Porque pode causar estragos enormes”, admite.

"Nunca respondemos a uma exigência em que se peça uma pessoa, mesmo que seja alguém com grande altruismo a oferecer-se para isso (...) Se se aperceber que o tempo está a passar, que já há mortes, a negociação tem que perceber que o seu papel não tem continuidade. Então é a altura certa para entrar pela via da força, causando prejuízo. Porque pode causar estragos enormes".
negociador da PSP

Partindo desse princípio, alerta, também nunca se envia uma equipa médica para o interior do local do crime para prestar assistência a uma alegada vítima. Na série da Netflix, a certa altura assaltantes e vítimas vão todos vestidos de igual e de máscaras para o telhado do edifício. Da mira dos atiradores especiais vê-se um deles levantado, de arma em punho, enquanto todos os outros estão em abaixados, como se estivessem com medo. Na realidade é ‘Arturo’, o diretor da Casa de Papel, quem está a confrontar os assaltantes. A polícia não sabe quem é quem e acaba por disparar sobre ele. Na sequência dessa intervenção, é disponibilizada uma equipa médica para prestar assistência à vítima no interior da Casa da Moeda. Um dos polícias infiltra-se na equipa, mas é logo detetado pelos assaltantes. Os suspeitos aproveitam, até, esse facto para colocar um pequeno aparelho de escuta nos óculos do polícia. A partir daqui, os criminosos conseguem ouvir todas as conversas no interior do posto de comando instalado no exterior da Casa de Papel e antecipar ainda mais as movimentações da polícia.

No terreno e na vida real esta situação seria impensável. “Jamais poria um homem, mesmo que ele quisesse, num local desconhecido onde estão agressores e vítimas em risco de vida”, garante o negociador português.

O Grupo de Operações Especiais da PSP numa operação

As exigências. “Já me pediram um avião”

Na negociação, “além de se tentar minimizar os danos que o caso possa causar, é também importante salvar a vida dos reféns que estão sequestrados”, refere a mesma fonte. E, por isso, podem aceitar-se alguma exigências dos opositores. “Se houver exigências aceitáveis, fazemos um plano de entrega. Tentamos retirar o máximo de reféns, de pessoas que lá estão dentro. Esse é o nosso principal objetivo”, detalha. Na ficção espanhola, a primeira entrega a ser feita pela polícia são refeições e medicamentos, um deles um comprimido para abortar solicitado por ‘Mónica’ — uma funcionária da Casa da Moeda que descobriu naquele dia estar grávida. Mas esta não é a única exigência do ‘Professor’. Por telefone, o homem que pensa todo o crime, pede um barco apreendido numa operação policial para fugir. Quer ganhar tempo. Mas em troca, os assaltantes nada dão no início.

"Há exigências que não aceitamos, mas não o dizemos. Já me pediram um avião, já me pediram dinheiro. Deixamos sempre claro que não somos nós que decidimos, que vamos tentar, mas que é um pedido difícil".
negociador da PSP

“Há exigências que não aceitamos, mas não o dizemos. Já me pediram um avião, já me pediram dinheiro. Deixamos sempre claro que não somos nós que decidimos, que vamos tentar, mas que é um pedido difícil.” O elemento do GOE, ao Observador, recorda-se de um caso em que lhe trouxeram um saco com o dinheiro que o opositor exigia. “Não pode ser. Não se pode ceder a isto nunca”, explica.

“A verdade é que tentamos acima de tudo encontrar um diálogo que possa fazer algumas cedências de ambas as partes e a última será sempre a que o opositor se entregue. E, ao entregar-se, o Incidente Táctico Policial resolve-se pela via negocial, em que não há força musculada nem danos colaterais”. Foi assim que aconteceu, assegura, em mais de 90% dos casos registados nos últimos anos em Portugal. Dados oficiais indicam que entre 2001 e 2016 a PSP esteve envolvida em 125 incidentes táctico policiais (nem todos com reféns). A maioria resolveu-se com negociação.

Mas, nalguns casos, as palavras não chegam. Acontece quando os opositores estabelecem prazos para as suas exigências ou matam. Quando a adrenalina de um caso destes se transforma em agressividade. Quando “por razões que se desconhecem” a negociação não está a resultar, opta-se por intervir. Por esta altura já as forças especiais estabeleceram um plano de como o farão. “E aí pode haver baixas.”

"Não há ninguém, por mais responsabilidade que tenha, que seja tão leviano ao ponto de dizer pode matar. As pessoas estão conscientes que é a ultima das coisas que pode ser feita, tem que haver uma intenção direta em que pode haver a morte dos sequestrados".
negociador da PSP

“Existem pressupostos legais que têm que estar cumpridos. Não há ninguém, por mais responsabilidade que tenha, que seja tão leviano ao ponto de dizer ‘pode matar’. As pessoas estão conscientes de que é a última das coisas que pode ser feita, tem que haver uma intenção direta em que pode haver a morte dos sequestrados. É uma decisão bruta para quem tem o poder de decisão. Por isso o negociador não comanda e o comando não negocia”, refere.

Mas, mesmo quando se decide disparar, é preciso tempo. “É uma janelinha que aparece momentaneamente e que não está aberta todo o tempo”, explica.

Síndrome de Estocolmo. Quando os sentimentos se misturam

Num caso como o que a série retrata podem ainda criar-se situações em que as vítimas se sentem ligadas aos agressores. Em ‘A Casa de Papel’, o “Síndrome de Estocolmo” é bem retratado pelas personagens Mónica e Denver. É este assaltante quem convence Mónica a não abortar, mostrando o seu lado emocional e revelando-lhe várias razões para dar à luz uma criança. Depois de lhe darem ordem para matar esta vítima, o assaltante — que foi levado para aquele crime pelo pai por ter uma dívida para com traficantes de droga — finge matar a refém, mas esconde-a num dos cofres da Casa da Moeda. A relação entre ambos vai-se estreitando.

“É frequente acontecer. As emoções misturam-se muito, o agressor, a vítima, a polícia que chega e que não é bem vista. E este sentimento é depois partilhado por todos“, refere o polícia ao Observador. “E o ‘Síndrome de Estocolmo’ em relação ao negociador e ao opositor?”, pergunta o Observador. “Não, isso não acontece”, garante o oficial da polícia. Aliás, se de alguma forma se perceber que o negociador se pode estar a envolver emocionalmente, por alguma razão pessoal, com o opositor, este é afastado da negociação. Porque “os polícias também são seres humanos”, ressalva. Na série, não é bem assim…

Assaltantes usam máscaras do Dali para não serem identificados

Em Portugal, muitos dos casos que têm levado o Grupo de Operações Especiais a intervir envolvem agressores em situações de “delírio mental” ou mesmo de “solidão”, que não cometeram um crime, que querem, muitas vezes, suicidar-se, mas que acabam a barricar-se e a constituir um perigo para a vida das pessoas à sua volta. A negociação serve para consciencializar a pessoa do que está a fazer e levá-la a sair voluntariamente e a resolver os seus problemas. “Mas, atenção, não somos psicólogos”, avisa o polícia. E por isso só intervêm quando há armas ou perigos envolvidos, como uma garrafa de gás, por exemplo. Mas, também há casos de assaltos que correram mal e em que a polícia chegou antes que eles conseguissem partir, levando-os a barricar-se.

— Está na polícia há muitos anos e já teve muitos casos em mãos. Alguma vez se deparou com um assaltante assim tão estratega como o Professor da série que lhe descrevi?, pergunta-lhe o Observador.

— Pode acontecer termos alguns criminosos que pensam fazer uma coisa maior, mas pelo trabalho da polícia ficam lá fechados. Depois temos as situações mais relacionadas com problemas mentais. E aí já tive pessoas formadas em que a inteligência pode roçar a loucura — responde o elemento do Grupo de Operações Especiais da PSP.

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