Cada cultura tem os seus provérbios, mas os temas acabam sempre por ser os mesmos. O amor, a família, a comida, a boa vontade — e, claro, o dinheiro e a amizade, também.

É destes dois últimos que trata o ditado russo que diz que “melhor do que ter 100 rublos é ter 100 amigos”. Este é daqueles que aponta para o valor inestimável da amizade, aqui tido como um dos bens mais valiosos que o ser humano pode ter. Mas agora, com as revelações que a investigação Panama Papers do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICJI, na sigla inglesa), este ditado ganha outra dimensão. Ter 100 amigos é, de facto, melhor do que ter 100 rublos. Pois é a partir desses 100 amigos, e através de uma complexa rede que envolve alguns dos maiores bancos da Rússia, empresas estatais, dinheiros públicos e contas offshore um pouco por todo o mundo, que Vladimir Putin pode ter em mãos a maior fortuna do mundo — mesmo que o seu salário anual esteja estimado nuns meros 105 mil euros anuais.

Neste caso, os amigos não chegarão a 100 — bastam três. São tantos quantos aqueles que aparecem constantemente nos Panama Papers que dizem respeito ao Presidente russo. Aquele que aparece em maior evidência é o insuspeito violoncelista Sergei Roldugin, amigo pessoal do Presidente desde a década de 80, o homem que apresentou Putin à sua primeira mulher e que apadrinhou a primeira filha do casal. Depois, Arkady e Boris Rotenberg, os dois irmãos que são amigos de Putin desde a infância, autênticos compagnons de route e antigos colegas de judo de Putin que em 2014 foram alvo de sanções dos EUA.

Já o nome de Vladimir Putin não aparece uma única vez — mas isso não impede que o foco esteja nele. “É, contudo, inconcebível, que uma rede desta abrangência pudesse ter existido sem o conhecimento e a conivência de Putin”, disse Karen Dawisha, analista política norte-americana e autora do livro “Putin’s Kleptocracy” (Simon & Schuster, sem edição portuguesa) para um artigo do ICJI disponível no site da investigação em inglês ou em português no site do Expresso, parceiro do consórcio. “Ele [Putin] simplesmente fica com o que quer”, disse a analista. “Quando és Presidente da Rússia não é necessário um contrato escrito, tu és a lei.”

Quando Putin pediu uma “desoffshorização” da economia russa

Agora, um ditado português: pela boca morre o peixe. No seu discurso anual à Assembleia Federal em 2013, foram muitos os jornais que destacaram uma expressão usada por Vladimir Putin: a “desoffshorização”.

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“Os nossos empresários são frequentemente criticados por falta de patriotismo. O número elevado de investimentos ou de propriedades da economia Rússia que estão em offshores é um facto absoluto. Os especialistas chamam a este fenómeno uma fuga à jurisdição”, disse, para depois avançar números. “De acordo com alguns estudos, nove em cada dez transações de valor elevado feitas pelas grandes empresas russas não são controladas pelas leis russas — inclusivamente, e incidentalmente, empresas com participação do Estado. Precisamos de um conjunto de medidas para reverter a offshorização da nossa economia.” E deixou uma promessa: “Vou dar ordens ao Governo para juntar propostas para este problema”.

Este não foi um discurso qualquer — fora o conteúdo, estava carregado de simbolismo, por ser o primeiro discurso anual de Putin desde que retomara a presidência, cargo que ocupou entre 2000 e 2008 e que voltou a ocupar em 2012, depois de um interregno de quatro anos.

Estava em marcha o plano bi-anual de combate à corrupção, referente aos anos 2012-13 e assinado por Dimitri Medvedev em 2011, quando era Presidente.

Mas nada teve efeito. O problema das offshores continuou, contribuindo para os pelos menos 20% que a economia paralela agrega do bolo total russo. Mas nem por isso Putin deixou de falar sobre o tema, passados dois anos, novamente no discurso anual perante os deputados russos. Em 2014, voltou a falar dos paraísos fiscais, deixando uma promessa de amnistia aos russos que transferissem as suas empresas para a o país: “Todos compreendemos que as origens dos ativos são distintas, que foram adquiridas de várias formas. No entanto, estou confiante de vamos poder finalmente virar a ‘página offshore‘ na história da nossa economia e do nosso país. É muito importante e necessário fazer isto”.

O contexto era claro: a Rússia, isolada por uma barragem de sanções e debilitada pela quebra do preço do petróleo, precisava de dinheiro. Não faria sentido que Putin dissesse outra coisa no momento de falar ao país. Não tinha sido um ano fácil para a maior parte dos russos, conforme o provou um relatório do Credit Suisse de 2014. No documento, vinha referido que 83% da população vivia com menos de 10 mil dólares por ano, ao passo que 85% da riqueza de todo o país (ou aquela que estava registada nele) pertencia a dez pessoas.

E foi também no ano de 2014 que, entre outros esquemas agora denunciados pelos Panama Papers, Roldugin, com a mediação da Mossack Fonseca, declarou num formulário de abertura de uma conta no banco suíço Gazprombank Switzerland que não tinha “qualquer relação com PEP ou VIP”. Isto é, com “Politically Exposed Person” (Pessoas Politicamente Expostas) e “Very Important Person” (Pessoa Muito Importante). Poderia Roldugin ter-se esquecido de Putin, pai da sua afilhada e Presidente da Rússia? Na altura, estava em marcha o plano bi-anual de combate à corrupção, referente aos anos 2014-15 e assinado por Vladimir Putin.

Mais tarde, o mesmo Putin assinaria o plano para 2016-2017. Isso aconteceria a 1 de abril de 2016 — o facto de ter sido no dia das mentiras, “celebrado” na Rússia tal como em tantos outros países, pode ser apenas uma coincidência. Nessa altura, o Kremlin parecia estar já em modo de contenção de danos. Dmitry Peskov, porta-voz de Putin, avisou os jornalistas no dia 2 de abril que o Kremlin recebeu “um conjunto de perguntas feitas de maneira pouco cordial” por parte de “jornalistas e membros de diferentes organizações que têm estado ativamente a tentar desacreditar Putin e a gestão a da nação”. Dois dias depois, rebentariam os Panama Papers.