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ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Michael Cunningham: "A televisão está para nós como os romances estavam para as pessoas no século XIX"

Podia ser feliz em Lisboa, mas é incapaz de pôr um ponto final no longo e "complicado" casamento com Nova Iorque. Michael Cunningham, Prémio Pulitzer em 1999, está em Cascais à procura de inspiração.

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Quando deixou Nova Iorque há dois meses, Michael Cunningham trouxe na mala um romance falhado. Tinha escrito um manuscrito há algum tempo e continuava a lutar para manter a história viva. Parecia-lhe cada vez mais certo que já não havia nada a fazer, que a história não ia a lado nenhum e que o melhor era colocar um ponto final em tudo e seguir em frente. Em Portugal, na “montanha mágica” que é Cascais, conseguiu encontrar a tranquilidade necessária para começar tudo de novo.

Ao fim de dois meses de trabalho junto ao mar, possíveis graças à Fundação D. Luís I, promotora de uma série de residências literárias internacionais na vila, o autor de As Horas conseguiu fazer renascer um romance que começava a dar como morto. “Parece estar a sobreviver”, disse ao Observador, e está contente com isso. Ainda tem muito trabalho pela frente, mas conseguiu completar cerca de um terço do manuscrito durante uma estadia que descreve como maravilhosa.

Entre maio e junho, Cunningham, de 66 anos, parece ter-se apaixonado por Portugal. Admite que era capaz de ser feliz em Lisboa, mas Nova Iorque não o deixa. Tem um “casamento complicado” com uma cidade “difícil” onde mora há décadas e que, apesar das queixas, parece não ser capaz de abandonar. É verdade que existe barulho constante, sacos de plástico que voam contra a sua cara, mas há também o homem que se passeia pelo parque vestido de jornais e outros mil mundos diferentes uns dos outros. E essa é a magia da cidade.

O vencedor do Prémio Pulitzer, que tem a sua obra publicada em Portugal pela editora Gradiva, está quase a partir. Antes, haverá uma última oportunidade de ouvir falar o escritor que quer, acima de tudo, ser verdadeiro. O autor vai estar no dia 2 de julho, terça-feira, na Fundação Luso-Americana, em Lisboa, para dar uma aula aberta que promete ser informal. Cunningham quer ouvir o que têm para lhe dizer sobre a leitura, a escrita e sobre tudo o resto, temas que não escaparam também a esta conversa.

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Michael Cunningham está em Cascais desde maio. Parte para os Estados Unidos da América muito em breve

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Está em Cascais a participar numa residência literária. Chegou em maio e vai ficar até ao final do mês de junho. Considera que este tipo de experiências, que tiram os escritores da sua zona de conforto e os levam para outros países, outras cidades, são importantes?
Acho que são extremamente importantes exatamente por essa razão — saímos da nossa zona geográfica de conforto, somos libertados dos nossos hábitos, das nossas obrigações e dos nossos afazeres do dia-a-dia. Estou num lugar que é muito confortável, mas que não me é familiar. Isso tem sido extraordinário. Quando cheguei, estava um bocadinho preocupado porque não me tinha apercebido do quão sozinho ia estar. E pensei: “Wow, como é que isto vai ser durante dois meses? Passaram dois dias e ainda não falei com ninguém”. Passados alguns dias, comecei a adaptar-me. As coisas começaram a abrandar, e uma hora começou a ser uma coisa sumarenta. Em Nova Iorque, é difícil não nos sentirmos acelerados a toda a hora, não nos sentirmos sempre um bocadinho nervosos. Não me sinto nervoso aqui, o que é ótimo.

Isso significa que tem de voltar outra vez.
E vou voltar!

E começar a escrever os seus livros aqui.
Dois meses são apenas dois meses, mas acho que foi tempo suficiente para ter um romance com outro país e ver um bocadinho dele. E adoro Portugal! Isto aqui está tão cheio de vida!

Mais do que em Nova Iorque? 
É diferente. Nova Iorque está tão cheia de vida que às vezes é demasiado.

É tudo demasiado?
Sim, sim, pode ser demasiado. Claro que há a questão óbvia do barulho e tudo isso, mas há também a atmosfera. Há tanto esforço e ambição em Nova Iorque. Quase toda a gente que conhecemos está a tentar fazer alguma coisa enorme no mundo. Isso é estimulante, mas à vezes também é cansativo.

Sente a pressão?
É difícil não sentir. Quase que parece que faz parte das moléculas que andam no ar.

Sente que tem sempre de fazer alguma coisa maior, melhor?
Sim. Maior, melhor. Não é uma coisa má, mas é bom sentirmo-nos um bocadinho menos nervosos. E aqui senti-me menos nervoso sem ser menos produtivo, assim que me adaptei à minha vida muito tranquila aqui na montanha mágica. O que tenho estado aqui a fazer é a escrever um romance. Escrevi um rascunho, mas não resultou, por isso tive de o refazer. Passei dois meses em Portugal, em Cascais, mas também na terra do romance, de uma maneira que não consigo fazer quando estou em casa. Porque lá, tenho de ir às compras e isso tudo. Aqui vivo simultaneamente nestes dois mundos paralelos. E tem sido tão bom…!

Vive em Brooklyn, não é?
Sim, vivo em Brooklyn.

E gosta, certo?
Sim, adoro Brooklyn. O que está a acontecer em Nova Iorque é que Manhattan está cada vez mais cheia de empresários e a maioria dos artistas, músicos e pessoas que acho interessantes vivem em Brooklyn. Também em Queens. As pessoas estão a começar a sair de Brooklyn porque está a ficar demasiado caro. Gosto de viver na cidade. Há aquela coisa das cidades…

A vida?
Sim, a vida. O meu trabalho, mesmo quando estou em casa, é solitário. Então, quando acabo o meu dia, quero sair a correr para Nova Iorque e ver toda a gente. E, acredite em mim, Nova Iorque é uma cidade difícil em todos os sentidos, mas uma coisa que tem de bom é que, quando saímos do nosso apartamento, andamos cinco ou dez minutos, olhamos para as outras pessoas e apercebemo-nos que não somos, de todo, o típico ser humano. Porque as pessoas não são como nós, entende? É tão diversificado, há tantas pessoas que são completamente diferentes. Gosto disso. Porém, há momentos em que vou a andar na rua, ouve-se uma sirene, alguém está a buzinar, vou contra alguém que está ao telemóvel, levo com um saco de plástico na cara… “O que raio é que estou a fazer aqui?!” [risos].

"Nova Iorque é uma cidade difícil em todos os sentidos, mas uma coisa que tem de bom é que, quando saímos do nosso apartamento, andamos cinco ou dez minutos, olhamos para as outras pessoas e apercebemo-nos que não somos, de todo, o típico ser humano."
Michael Cunningham

Nunca pensou em mudar-se e ir viver para outro sítio? Talvez para um onde não leve com sacos de plástico na cara.
Já pensei sobre isso, sim. Se eu e o [meu marido] Kenny fôssemos mais novos, talvez nos mudássemos. Podia ser feliz em Lisboa. Ou Madrid, adoro Madrid. Mas tenho os meus amigos de há 30 anos em Nova Iorque, e o Kenny tem o seu trabalho. Os nossos trabalhos estão lá. É um casamento complicado, mas é um casamento, apesar de tudo. E aqui estamos nós!

Como é que organiza um dia de trabalho? Segue algum tipo de horário?
A única verdade absoluta para mim em relação a escrever é: tenho de me levantar de manhã e começar logo a escrever. Porque cheguei à conclusão que, se fizer alguma coisa antes — se for às compras, se fizer uma conferência com o mundo —, vou voltar para o meu estúdio, olhar para o que estive a escrever e pensar: “Inventei isto tudo! Isto não é tão misterioso e profundo como uma mercearia, não é tão misterioso e estranho como o parque”. Para mim, é importante manter uma certa ilusão contínua sobre a realidade paralela do meu mundo inventado. Portanto, a primeira coisa que faço na manhã é: bebo umas quantas chávenas de café e começo a trabalhar. Escrevo de quatro a seis ou sete horas e depois já não consigo mais, paro. Vou fazer outras coisas.

Então é como um emprego normal.
Oh, sou muito burguês! Tenho um emprego! Acordo de manhã, digo “adeus, amor!”. Tenho um estúdio, que fica em Manhattan Foi o meu primeiro apartamento quando me mudei para Nova Iorque. Fica num sexto andar sem elevador, a banheira está na cozinha e funciona como lava-loiça. É muito barato e vou para lá escrever. O que é ótimo! É bom poder sair de casa. Não quero ficar em roupa interior até às quatro da tarde sem nunca sair de casa [risos].

Precisa de sentir que está a ir para o trabalho. 
Sim, preciso. Gosto de viver em Brooklyn, mas também é bom ir até Manhattan. O meu estúdio é mesmo ao pé do Washington Square Park, que é um dos maiores parques de Nova Iorque. Está cheio de todo o tipo de gente. O meu favorito é um homem que caminha pelo parque com longos vestidos que ele próprio faz a partir de sacos do lixo, de jornais… Ele ocupa três metros de espaço. Se cruzar o olhar com ele, ele diz: “É uma opinião!” [risos]. Certo, essa é a tua opinião sobre como viver neste mundo, ótimo! E ia ter saudades dele se não pudesse ir a Manhattan.

As pessoas com quem se cruza na rua inspiram-no de alguma forma?
Sim, mas, quer dizer, nunca escreveria sobre aquele tipo, não o conheço suficientemente bem. Mas é inspirador ser lembrado que o nosso mundo é apenas o nosso mundo e que existem muitos outros mundos por aí. Tento não me esquecer disso.

O escritor conseguiu encontrar em Cascais a tranquilidade necessária para avançar com a escrita do seu novo romance

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

O romance que morreu nos Estados Unidos para renascer em Cascais

Disse que estava em Cascais a reescrever um romance. Já o seu último livro, Um Cisne Selvagem [publicado em Portugal pela Gradiva], foi uma coletânea de contos.
Sim, mas isso não é uma coisa normal para mim. Não escrevo contos, isso foi uma coisa especial. O que escrevo é romances. É engraçado, a maioria dos escritores que conheço ou são fundamentalistas dos contos ou são romancistas. Tem a ver como o cérebro trabalha. Comecei por querer ser pintor e sei, por causa da pintura, que o nosso braço quer mover-se de uma determinada forma. Algumas pessoas gostam de pintar quadros pequenos, outras grandes. Tem a ver como funcionamos. Se um pintor de quadros pequenos tentar pintar uma tela grande, vai sentir que é um pouco difusa. Por outro lado, uma tela pequena irá fazer um pintor de quadros grandes sentir-se claustrofóbico. Acho que o cérebro dos escritores funciona de forma semelhante. Adoro contos, leio-os constantemente, mas é difícil para mim fazer alguma coisa acontecer em 15 páginas. Simplesmente não penso dessa forma.

Então porque é que decidiu publicar um livro de contos [em 2015]?
São contos de fadas. É diferente, não são contos normais. São adaptações dos contos de fada com os quais crescei e que escrevi ao longo dos anos. Nunca pensei que fosse reuni-los num livro, escrevi-os para me divertir. Agora, o que estou a fazer é a trabalhar num romance. Acabei o primeiro rascunho há algum tempo.

Mas não estava contente com ele. 
Não, não estava. Queremos sempre escrever alguma coisa nova, escrever o romance que nunca escrevemos antes. Este livro era mais sobre ideias, e as personagens eram como passageiros que seguiam nele. E isso não funcionou porque as pessoas não estavam suficientemente vivas. Era uma espécie de funcionários da história, por assim dizer. Percebi que isso não é o tipo de escritor que sou. Preciso de começar pelas personagens. Portanto, são as mesmas personagens, a mesma história como base, mas muito repensada e muito revista. Consegui fazer muito aqui e sinto que o livro está a sobreviver.

As personagens costumam ser a peça central dos seus livros. Tudo gira em torno delas.
Aprendi isso ao escrever este livro. Perdi muito tempo com um livro que não estava a funcionar mas não me arrependo disso — é assim que descobrimos o que fazer. Como disse, fico contente que esteja a sobreviver, mas precisou de um renascimento dramático.

"Nunca sinto que um livro está realmente acabado porque acho sempre que deve ser melhor do que é. Mas chega-se a um ponto em que percebemos que já não vai ser possível torná-lo melhor, apenas torná-lo diferente."
Michael Cunningham

Ainda tem muito trabalho pela frente?
Sim, tenho. Nunca sei exatamente onde vou, mas acho que consegui escrever um terço do livro durante estes dois meses em Cascais.

Quando é que sabe que um livro está acabado?
Essa pergunta é difícil… Nunca sinto que um livro está realmente acabado porque acho sempre que deve ser melhor do que é. Mas chega-se a um ponto em que percebemos que já não vai ser possível torná-lo melhor, apenas torná-lo diferente. “Isto é o melhor que consigo fazer e está na altura de largá-lo.”

E consegue mesmo largá-lo? Ou fica a pensar que se calhar devia ter feito as coisas de outra forma, que devia ter mudado isto ou aquilo…
Sim e sim. Consigo largá-lo… É um bocadinho como um relacionamento. Quando acaba, acaba.

E é preciso seguir com a nossa vida?
Sim, e temos de seguir com a nossa vida. Quer dizer, obviamente que há muitos escritores que usam a mesma personagem uma e outra vez, mas eu nunca faria isso. Nunca, acabou. Foi bom, mas acabou. Nunca volto atrás para ler uma coisa que escrevi antes, não insisto, mas, claro, passados três, cinco anos, escreveria as coisas de forma diferente. Mas é preciso deixar as coisas seguirem o seu caminho e compreender que aquele foi o melhor livro que podia ter escrito naquela altura da minha vida.

O escritor que queria ser pintor

Disse que começou por querer ser pintor. Ainda costuma pintar?
Sim, pinto, mas não mostro a ninguém.

É uma coisa que faz apenas para si?
Sim. Quando a escrita se tornou numa coisa mais séria — e estou contente com isso, mas tornou-se menos divertida porque existem contratos e essas coisas todas —, percebi que queria criar coisas que não faziam parte desse ciclo, que não estavam para venda, que não estavam sujeitas a crítica. Aprendi a trabalhar a prata. Faço trabalhos em metal. Adoro.

É trabalho duro. 
Sim, mas é muito absorvente. Não pensamos em mais nada quando estamos a fazer uma corrente ou um poste. E mais uma vez, não está à venda…

É algo que faz apenas por diversão.
Sim, e ofereço algumas peças a amigos.

Disse que não pensa em mais nada quando fazer esse tipo de peças. Escrever exige outro tipo de esforço metal?
Sim. Pintar é absorvente de forma diferente. Quando pinto, nem sequer me preocupo se é bom. Isso é muito libertador.

Mas também é uma forma de exprimir o que sente.
Sim, mas não tenho de o traduzir para mais ninguém. Num livro, estamos mais ou menos a exprimir os nossos sentimentos, mas também temos de os tornar legíveis para as outras pessoas. E isso é diferente.

Decidiu que queria ser escritor quando ainda era muito novo, não foi?
Estava na faculdade, não era assim tão novo.

Cunningham queria ser pintor, mas acabou por dedicar-se inteiramente à escrita. Virginia Woolf mudou-lhe a vida

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Li que tinha tomado essa decisão depois de ler Mrs. Dalloway, de Virgina Woolf. É verdade?
Não, li Mrs. Dalloway quando tinha, talvez, 15 anos. Ajudou a tornar-me num leitor. Não era um estudante precoce. Simplesmente andava com o meu skate para trás e para a frente e ouvia música. Quando li Mrs. Dalloway, isso mexeu comigo. Nunca tinha visto linguagem a ser usada daquela forma. Tinha 15 anos, não compreendi o livro, mas consegui ver a complexidade, musicalidade e beleza daquelas frases. Isso fez-me ter vontade de ser menos estúpido [risos], e comecei a ler livros mais sérios. Acho que podemos dizer que comecei ali, como leitor, a seguir um caminho que eventualmente levou a que me tornasse escritor. Mas não pensei propriamente em escrever até ter 20 anos, quando estava na universidade. Havia qualquer coisa na pintura que não estava a resultar, já não me sentia tão ligado a isso. Alguma coisa não fazia sentido.

Na faculdade, não foi para um curso de artes.
Não, mas tive aulas. Quando comecei a escrever, não achei que tivesse assim muito jeito, mas sabia, quase imediatamente, e isto é uma verdade que se tem mantido ao longo de todos estes anos, que havia algo relativamente ao problema que escrever apresenta — é possível, usando tinta, papel e as palavras que estão no dicionário, simular a vida? É possível pegar nestes materiais inertes e fazer alguma coisa que se parece com vida? Isso sempre foi interessante para mim. É preciso ter uma espécie de dom, mas acho que existe uma linha ténue entre ter um dom e ter este tipo de interesse profundo e inesgotável em tentar resolver esse problema. Conheço escritores talentosos que não escrevem porque não estão interessados nisso, mas eu sempre estive. A Marilyn Monroe disse uma vez: “Não era a mais bonita, não era a mais talentosa, só queria aquilo como mais ninguém queria”. E acho que a Marilyn Monroe estava certa! Há um pequeno elemento de autismo nisto, em  sentarmo-nos numa cadeira, sentarmo-nos numa cadeira e sentarmo-nos numa cadeira, e escrever uma frase 15 ou 20 vezes até que comece a ganhar vida. Quando era novo, alguns dos meus amigos queriam escrever, mas eram incapaz de fazer isso. É uma cassete. Não sei como chamar a isso, mas não é um defeito — é uma peculiaridade mental.

"Quando li 'Mrs. Dalloway', isso mexeu comigo. Nunca tinha visto linguagem a ser usada daquela forma. Tinha 15 anos, não compreendi o livro, mas consegui ver a complexidade, musicalidade e beleza daquelas frases. Isso fez-me ter vontade de ser menos estúpido."
Michael Cunningham

A sua principal preocupação é criar algo que pareça real?
Sim. Que pareça verdadeiro, que tenha sentido.

Com o qual as pessoas se possam identificar?
Sim, sim, sim… Sim! Acho que um dos objetivos de escrever, de escrever ficção, é perceber que isso seja estranho também, é que é uma das melhores maneiras que conheço para compreender como é ser alguém além de nós. Sinto que conheço a Anna Karenina melhor do que alguns dos meus amigos, e isso é importante para mim, como escritor e como leitor — tentar sair de dentro de mim e colocar-me no papel de outra pessoa. Tento fazer isso.

O primeiro beijo

Voltou a Mrs. Dalloway em As Horas [vencedor do Prémio Pulitzer em 1999]. Quis fazer uma homenagem a Virginia Woolf e ao papel importante que teve na sua juventude?
Foi um tributo, mas também aconteceu ser ela o primeiro escritor sério que li. Francamente, acho que podia ter sido qualquer outro grande escritor. Acabamos a casar com o homem ou mulher que estava no café na mesma altura que nós, e podia ter sido qualquer outra pessoa. Estávamos no sítio certo com a pessoa certa. E o meu primeiro beijo foi com a Virginia Woolf [risos].

Podia ter escrito apenas sobre ela, mas não foi isso que fez. Porque é que decidiu escrever uma história sobre três mulheres, em tempos diferentes? 
Comecei por escrever uma versão contemporânea de Mrs. Dalloway, mas depois pensei: “Quem é que precisa disto? Já temos Mrs. Dalloway…”. Pensei que não estava a resultar, que se calhar era melhor mudar para outra coisa. “E se a Virginia Woolf fosse parte do livro? E se ele andasse para a frente e para trás entre uma Mrs. Dalloway contemporânea e a Virginia Woolf a escrever Mrs. Dalloway?”. Mas ainda assim…

Foi um processo difícil? O de perceber o que realmente encaixava e fazia sentido?
Sim, foi. O que realmente fez as coisas começaram a andar foi, quando estava sentado no meu estúdio a pensar que mais valia deitar fora este livro, embora não quisesse, e tinha esta imagem da Virginia Woolf na minha cabeça e da Mrs. Dalloway…

Estava a ser assombrado pela Virginia Woolf.
Sim, estava. Estava numa casa assombrada. E, de repente, veio-me à cabeça a imagem da minha mãe. E disse: “Mãe, o que é que estás a fazer na minha alucinação?”. Fiquei a pensar sobre isso. A minha mãe era uma dona de casa e acho que, como muitas mulheres, mais antes do que agora, mas isso ainda acontece, ela tinha demasiadas qualificações para ficar em casa, o que fez com que ela se tornasse obcecada em relação a tudo — guardanapos, bolos, tudo. E pus-me a pensar: será que posso pegar na minha mãe e na Virginia Woolf e olhar para as suas obsessões e não para o que produziram, tirar, por um lado, o grande romance, e por outro um bolo tão perfeito que simboliza a tristeza, e olhar simplesmente para duas mulheres, completamente diferentes, que apenas queriam criar alguma coisa maior do que aquilo que conseguiam fazer? A minha mãe, no seu desejo de se transcender, tem tanta importância como a Virginia Woolf. Assim que a minha mãe entrou para o livro, tudo fez sentido. Então, três partes, três mulheres. Uma escritora, uma leitora e uma personagem. E assim foi.

"A minha mãe, no seu desejo de se transcender, tem tanta importância como a Virginia Woolf. Assim que a minha mãe entrou para o livro ['As Horas'], tudo fez sentido."
Michael Cunningham

Ao fazê-lo, abordou muitas questões sensíveis para as mulheres.
Quer dizer, não sou uma mulher, mas…

Mas foi capaz de criar personagens femininas credíveis.
Espero que sim. Perguntaram-me várias vezes como é que consegui fazê-lo.

Porque de facto conseguiu.
Bem, mostrei o livro a várias mulheres [risos]. Quando o livro saiu, com as leituras públicas que fiz e tudo isso, fiquei surpreendido pela quantidade de mulheres, mulheres mais velhas, que me disseram: “Fiz aquilo, fiz o que a Laura Brown fez. Abandonei a minha família, e nunca ninguém tinha escrito de forma solidária sobre uma mulher que tivesse feito isso”. Não era nisso em que estava a pensar, mas sim, esse é um dos últimos tabus, uma mãe ambivalente. Algumas pessoas ficaram muito chateadas com isso.

Porquê?
Eram sobretudo homens que não gostavam dessa ideia, que não conseguiam imaginar uma mulher que fizesse isso, que abandonasse os seus filhos. Não faz mal escrever sobre homens que fazem isso, mas não se pode fazer o mesmo em relação às mulheres.

Houve uma coisa incrível que aconteceu na altura. Os meus pais ficaram chateados com o livro. Não sei porque não percebi que ia chateá-los. Claro que ia. [A Laura Brown] não é exatamente igual à minha mãe, mas é suficientemente parecida com ela. E ela não gostou disso. Quando começaram a gravar o filme, [“As Horas”, realizado por Stephen Daldry] a minha mãe foi diagnosticada com cancro. Aconteceu tudo muito depressa. Ela estava a ficar cada vez mais doente, então telefonei ao produtor, Scott Rudin, e disse-lhe que não sabia se ela ia conseguir ver o filme acabado e perguntei-lhe se havia alguma coisa que ele podia fazer. Ele mandou um estafeta a Los Angeles, à casa onde cresci, com 20 minutos de cenas. Sentei-me no sofá que tínhamos desde sempre, com a minha mãe, que acabou por morrer naquele mês, a ver a Julianne Moore a fazer dela como se ela já tivesse reencarnado. E aqui vemos o poder do cinema — ela gostou de ser interpretada pela Julianne Moore [risos]. Não gostou de ser interpretada pelo filho. O que queria que ela tivesse sentido ao ler o livro era que era importante o suficiente para escrever sobre ela, mas ela sentiu-se exposta e traída. Ser interpretada por uma estrela de cinema significou alguma coisa para ela. E isso é uma coisa poderosa. Os filmes são poderosos.

Michael Cunningham tem estado instalado na Pousada Pestana Cidadela, em Cascais

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Já escreveu várias vezes para o cinema. É algo que gosta de fazer?
Sim, mas escrever romances é a minha cena. Agora estou a trabalhar numa série de televisão. É mesmo muito, muito difícil fazer um bom filme. Existem tantos fatores a conspirarem contra isso. É difícil escrever um bom romance, mas ao menos é uma coisa que fazemos sozinhos. Nos filmes, há tanta coisa que pode correr mal. Adoro cinema, adoro televisão, é bom trabalhar com outras pessoas, mas é uma indústria difícil. E está cheia de gente horrível!

Parece ser cada vez mais complicado trabalhar no meio, sobretudo depois dos escândalos dos últimos anos.
Sim, é verdade. A televisão é fantástica agora.

É melhor o que se produz para a televisão do que aquilo que se produz para o cinema?
Acho que a maioria é muito melhor do que cinema. Existem séries de televisão mesmo boas que são melhores do que filmes, em parte porque a economia é diferente. Uma série não é tão cara, não precisa de ter um milhão de espectadores, por isso podem correr mais riscos. Mas não consigo acompanhar todas as séries que vão aparecendo.

Vê muita televisão?
Vejo, porque acho que é tão boa. Sinto que a televisão está para nós como os romances estavam para as pessoas no século XIX. É muito raro estar num jantar com um grupo de pessoas e não acabarmos a falar das séries que estamos a ver, tal como no século XIX se falaria sobre Charles Dickens. Normalmente não estamos a ler os mesmos livros ao mesmo tempo, mas costumamos acompanhar as mesmas séries de televisão. Adoro isso.

O Kenny, o meu marido adorável, é psicoterapeuta e escreve coisas académicas.

E costuma ler o que ele escreve?
Sim, leio. É académico, não é uma leitura leve. O Kenny é um grande leitor do meu trabalho. Posso ler o dele, mas não posso falar sobre isso com ele porque não é a minha área. Ele tem outras pessoas a quem mostrar o seu trabalho. Normalmente, à noite, ele está tão cansado que nem sequer consegue ler, então vemos uma das séries que estamos a acompanhar. Não era capaz de ver uma série que fosse uma porcaria, mas existem coisas boas, coisas muito boas. Uma série de televisão é como um bom romance, uma grande história. E é melhor que existam muitas boas histórias do que apenas algumas! Às vezes fico preocupado com os livros que ainda não consegui ler, com as séries que ainda não vi. Há tanta coisa! Sabe, tenho andado a ler Pessoa.

A sério?
Sim. Tinha ouvido falar nele nos Estados Unidos mas nunca o tinha lido. É fantástico!

O que é que está a ler?
O Livro do Desassossego, a poesia… É onde estou neste momento. O Livro do Desassossego é fantástico! Uma das coisas boas de viajar é descobrir literatura noutros países que não conhecemos.

"Para mim é muito claro que, em cada obra de arte, em cada boa história ou romance, existe um limite naquilo que podemos dissecar. Para além disso, existe magia. Reconhecemos a sua existência, mas não mexemos com ela."
Michael Cunningham

Na próxima semana, vai dar uma aula aberta na Fundação Luso-Americana, em Lisboa. 
Pelo que percebi, vai ser uma coisa muito informal. Não vai ser bem uma aula, no sentido em que as pessoas não se vão sentar a escrever, eu não vou falar de histórias específicas. Quero que as pessoas que vão aparecer que determinem a discussão. “Do que é que querem falar em relação a escrever? Se escrevem, quais são os vossos problemas?” Uma coisa informal — quero que me digam do que é que querem falar.

Isto é algo que está habituado a fazer. Dá aulas numa universidade nos Estados Unidos.
Dou uma disciplina de literatura e outra de escrita criativa. Penso na de escrita criativa como uma disciplina sobre leitura. Tenho 12 alunos todos os semestres, a maioria não vai ser escritor. Mas será que alguém é mesmo escritor?

Mas alguns deles querem ser?
Alguns, mas outros não. Alguns só querem aprender mais sobre escrever. Chama-se escrita criativa, mas é mais uma disciplina sobre como ler do que sobre como escrever. Desconstruimos as histórias, falamos sobre o que funcionou, o que não funcionou, sobre o que fez uma determinada personagem mais viva do que outra, o que seria mais surpreendente… Falamos deste tipo de coisas. Mas também lhes digo sempre, no início de cada semestre, que, no centro de cada boa história, existe aquilo que considero um globo de luz que não pode ser dissecado. É a magia da história, e não vamos tentar desfazer isso.

É essa a lição mais importante que ensina aos seus alunos? Que tem de existir uma certa magia no centro de todas as histórias?
É uma delas, sim. Para mim é muito claro que, em cada obra de arte, em cada boa história ou romance, existe um limite naquilo que podemos dissecar. Para além disso, existe magia. Reconhecemos a sua existência, mas não mexemos com ela.

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