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Miguel Esteves Cardoso: 40 anos depois, quanto vale um escrítico pop?

É uma referência da escrita sobre música em português. E 40 anos depois, com uma nova reedição, comprova-se: muitos dos textos de "Escrítica Pop" sobrevivem, não como ruína, mas relato de uma paixão.

Há dias, Flea – conhecido por ser (a maior parte do tempo) baixista dos Red Hot Chilli Pepers e (algum do tempo) dos maiores heroinómanos que a humanidade conheceu, duas facetas que (não raro) coincidiram – publicou um tweet enigmático: dizendo que pode parecer impossível, mas houve um tempo “em que os críticos de música, quando queriam falar da cultura juvenil, escreviam mesmo sobre música”.

Não tendo nenhuma ferramenta para quantificar a quantidade de caracteres que se gastam a coscuvilhar a vida das estrelas pop atuais, ou a descrever coreografias e vídeos e o significado das letras ou de determinado post no Instagram (enfim: os caracteres gastos com tudo o que não diz respeito à música criada), concedo que, a olho, a humanidade dá a entender que se preocupa mais do que nunca com o que é contingente à produção musical – e não à música. Talvez seja apenas uma consequência de vivermos numa era de dados: se os números dizem que o que rende é falar mais da roupa de Billie Eilish na Met Gala, então publica-se mais sobre a roupa de Billie Eilish na Met Gala.

A hipótese de o tweet em questão ser uma resmunguice de velho não deve ser posta de parte: chega sempre um momento na vida da maior parte dos músicos em que estes deixam de ser falados, em que deixam de entender os códigos da cultura juvenil, da qual – francamente – já não fazem parte. O que se segue, por norma, é uma idealização do passado, semelhante ao processo narrativo de um romance de Philip Roth, em que a uma infância idealizada numa América pacífica se segue a descoberta, por parte do protagonista trágico, de que a vida atual foi reduzida a escombros.

Sim, houve um tempo em que a escrita sobre música falava sobre música – em particular a escrita sobre jazz e sobre rock progressivo podiam ser bastante técnicas. Mas à medida que a cultura popular juvenil foi crescendo, mesmo a escrita musical foi deixando de lado os aspetos mais técnicos e confiando as suas descrições de uma canção a imagens e metáforas que serviam mais depressa o propósito de transmitir o “sentimento” de uma canção. Além disso, imagens e metáforas servem para compensar o facto de os críticos de música não terem passado do terceiro ano das aulas de piano e mal serem capazes de ler uma pauta, quanto mais de discutir uma nona aumentada.

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A capa da reedição de "Escrítica Pop" de Miguel Esteves Cardoso, que inclui o texto "O Ovo e o Novo" (Bertrand)

Algumas das mais belas peças escritas nas últimas décadas foram peças de crítica musical que se recusaram a ser apenas folhetos descritos da evolução das notas da pauta, que se recusaram a ser manuais de instrução da Ikea versão musical e procuraram ser a sua própria forma de arte, em que o estilo e o gosto de quem escrevia era imediatamente reconhecível: Jon Savage, Simon Reynolds, Lester Bangs, Nick Kent, Barney Hoskins, todos eles tinham um estilo próprio, um imaginário, um frasear único, além das suas tragédia pessoais, os seus pecados sublimados nas críticas.

Como todas as boas ideias livres, da mini-saia ao casamento gay, a moda chegou tarde a Portugal – a vitória da expressão individual sobre a descrição burocrática da pauta, que produziu alguns dos melhores textos do século XX, veio com o atraso natural de um país pouco habituado à expressão livre e não burocrática. Seria de esperar que o primeiro a produzir textos assim por cá fosse um membro da classe média baixa, um autodidata sem estudos, mas Portugal tem as suas próprias leis e quem por cá deu cabo da escrita musical formal foi um aristocrata a fazer doutoramento em Inglaterra: Miguel Esteves Cardoso.

Não há propriamente uma forma científica de medir o impacto que os textos que Miguel Esteves Cardoso (MEC) produziu para os jornais nacionais e um dia reuniu em Escrítica Pop (livro publicado originalmente em 1982, agora reeditado numa versão especial que inclui o texto recomendável e raramente lido “O Ovo e o Novo”, sobre a evolução da música popular da década de 70) tiveram na produção da escrita musical das gerações vindouras, mas para quem conhece o que veio antes e o que veio depois, digamos que possivelmente não haveria um Mário Lopes ou um Fernando Magalhães sem a estranha mistura de erudição, cultura pop e humor desbragado que constituíam a marca de MEC.

Mais do que os músicos e os discos escolhidos existe a escrita, pelo que "Escrítica Pop" existe só por si, mesmo que não se perceba nada da música popular de finais de 70, início de 80: uma desavergonhada crença no valor do texto, da capacidade de um texto para transmitir a emoção de um disco e agremiar crentes para a causa que um disco é, e uma tremenda capacidade de escrita.

Talvez naquela época as regras, as normas de escrita não estivessem tão instituídas – MEC começou a escrever no final da década de 70, Portugal vivia uma certa euforia e mudanças de costumes e isso permitiu textos como “Como ser um crítico de rock – um guia prático”, que de guia tem pouco e de prático nada. O texto aproxima-se mais do registo de Woody Allen em ‘Para Acabar de Vez Com a Cultura’ e oferece uma série de conselhos non-sense e que gozam com a própria cultura que analisa.

Esse é um dos paradoxos mais fascinantes – e uma das heranças mais perenes – de Escrítica Pop: MEC passa a vida a lembrar-nos que a pop dura apenas 3 minutos e a sua obrigação é fazer-nos felizes enquanto dura, relembra inúmeras vezes o carácter frágil da pop, mas depois escreve sobre ela com a devoção dos crentes, e a maior parte das suas escolhas são discos que não se compadecem com 3 minutos de pastilha elástica. Os seus dogmas: Songs Of Love and Hate, de Leonard Cohen (com quem um dia bebeu “dry martinis”, numa demonstração de extremo bom gosto) e Closer, dos Joy Division.

É possível que a parte fundamental da escrita musical de MEC seja a que é dedicada aos Joy Division – estando MEC em Manchester na época, seria sempre influenciado pela new-wave, mas a tragédia literária que os Joy Division musicaram seria sempre apelativa a um rapaz que vem, sobretudo, dos livros. O texto sobre Still, uma compilação de demos e gravações ao vivo dos Joy Division, é lindíssimo e um exemplo de como a escrita musical pode ser enriquecida quando tomada como uma arte em si mesma:

Still é sem dúvida a mais bela palavra do vocabulário inglês. Quando é advérbio, é ainda. Ou, às vezes, todavia, futuramente, apesar. Ou, às vezes, substantivo, e então silêncio, calma, imobilidade. Ou, às vezes, adjetivo, e logo tranquilo, estacionário, quieto, e sossegado. E pode ser também um verbo, dizendo pacificar, abonançar, serenar.

Nunca um disco teve um título que tanto dissesse aquilo que encantadamente é. (…) Porque um still life não é uma vida morta, mas uma vida imóvel, um instante muito frágil de bonança e acalmia que amaina carinhosamente para o vermos e tocarmos”.

Estão aqui as marcas da futura escrita pop portuguesa: a erudição e o exagero (“sem dúvida”, “a mais bela palavra”, “nunca”) ao serviço de uma paixão – um crítico de música deixava de ser um avaliador da qualidade técnica dos mundos para ser um tradutor das futuras paixões dos leitores: amem este disco porque ele provocará em vós o mesmo que provocou em mim, que passarei a descrever da seguinte forma.

Leonard Cohen, Canadian singer and writer of Engli Talking Heads At Aragon Ballroom Blondie Portrait Session

Amália Rodrigues, Leonard Cohen, David Byrne e os Blondie: alguns dos nomes sobre os quais escreve Miguel Esteves Cardoso nos textos reunidos em "Escrítica Pop"

ONBEKEND/ANEFO

Os temas de MEC eram mais variados que a new-wave (dos Joy Division aos Echo and the Bunnymen): umas páginas antes das acima citadas surge um texto dedicado aos Tubarões, de título “No cabo-verdíssimo da música popular: Os Tubarões e o LP Trabanca”, cuja primeira frase é um tratado de escrita sobre música popular: “Falemos então da maior e melhor música popular desde o início da civilização”. Esta propensão para a descoberta do melhor objeto/artista desde que os futuros humanos empreenderam o fogo e lhe chegaram um pedaço de carne não é exclusiva da crítica musical: o saudoso João Bénard da Costa costumava definir todo e qualquer filme pelo qual se apaixonava como “O mais belo dos filmes”. A propensão para o exagero não revela imaturidade – quem escreve sabe ser impossível definir o que é “o melhor”; é antes uma forma de enfatizar a paixão que se sente.

Há um pouco de tudo, em Escrítica Pop: os Madness e os Clash, Amália, Sonny Rollins, Joni Mitchell, os Shadows, Billie Holiday, Blondie, Brian Eno e David Byrne – uma mistura eclética de músicos e géneros que refletem a propensão de MEC para não estar quieto a ouvir o mesmo vinil anos a fio.

Mais do que os músicos e os discos escolhidos existe a escrita, pelo que Escrítica Pop existe só por si, mesmo que não se perceba nada da música popular de finais de 70, início de 80: uma desavergonhada crença no valor do texto, da capacidade de um texto para transmitir a emoção de um disco e agremiar crentes para a causa que um disco é, e uma tremenda capacidade de escrita.

Um dos paradoxos mais fascinantes – e uma das heranças mais perenes – de "Escrítica Pop": MEC passa a vida a lembrar-nos que a pop dura apenas 3 minutos e a sua obrigação é fazer-nos felizes enquanto dura, relembra inúmeras vezes o carácter frágil da pop, mas depois escreve sobre ela com a devoção dos crentes, e a maior parte das suas escolhas são discos que não se compadecem com 3 minutos de pastilha elástica.

Claro que há textos que hoje soam desajustados, outros a que torcemos o nariz – todos os textos são produto de uma época, uma idade, e quando hoje olho para o que escrevi no início dos 2000 a vergonha é tanta que penso mudar de nome. A escrita pop mudou, ganhou normas e regras, e continua a mudar – antes uma alta percentagem do tempo de um crítico era passado a dizer mal do que vendia bem; hoje, na era dos dados, concluiu-se que os leitores querem textos que confirmem os seus gostos, pelo que é mais difícil dizer mal do que é extremamente popular (uma pena, porque era um desporto muito divertido).

Faria hoje sentido escrever um texto como o “Como ser um crítico de rock – um guia prático” de MEC? Talvez não; mas há dez anos, quando as redes sociais explodiram, as milhentas publicações online que então apareceram tinham todas listas diárias: as 10 melhores pizzas de San Francisco, 10 Conselhos Para Ser um Blogger de Sucesso, os 10 Gatinhos Mais Lindos da Internet. Nessa altura alguém publicaria “Como ser um crítico de rock – um guia prático”, hoje não.

A natureza do que pode ser dito e como é dito vai-se alterando; o melhor que quem escreve pode esperar é que anos depois ainda haja gente à escuta das palavras que proferiu um dia sobre um disco qualquer, depois de uma noite de copos, ser rejeitado por uma moça e levar uma multa do IRS. E tantos anos depois, muitos dos textos de Escrítica Pop sobrevivem, não como ruína, mas relato de uma paixão.

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