O coordenador da área da Saúde no grupo parlamentar do PSD apresentou um requerimento, no dia 20, para ouvir o diretor exonerado do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina de Reprodução do Centro Hospitalar de Lisboa Norte (CHLN). Horas depois, o líder parlamentar do PSD travou o pedido. O ato causou espanto, mas acabaria por ser justificado como uma falha do deputado por não ter avisado previamente a direção. Tudo parecia sanado, mas deputados do PSD da ala crítica descobriram que a mulher de Miranda Sarmento trabalhava no departamento dirigido pelo visado e denunciaram ao Observador o que consideram ser um conflito de interesses. Miranda Sarmento diz que a mulher não estava sob a alçada hierárquica de Diogo Ayres de Campos, mas o regulamento interno e o organograma enviados ao Observador pelo gabinete de comunicação do CHLN mostram o contrário.
Tudo começou há dez dias. A 20 de junho, o coordenador do PSD para a área da Saúde, Rui Cristina, anunciou que o PSD iria apresentar um requerimento para ouvir Diogo Ayres de Campos, que tinha sido exonerado do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina de Reprodução do Santa Maria no dia anterior. Pouco depois, o gabinete de comunicação do grupo parlamentar fez chegar a informação aos jornalistas. Joaquim Miranda Sarmento não tinha sido avisado e travou o requerimento, alegando, em declarações à agência Lusa que era “extemporâneo” ouvir o médico. A estranheza adensava-se entre deputados e até dirigentes sociais-democratas alinhados com Montenegro comentavam: “Não se percebe porque é que o Miranda Sarmento travou. À partida até era bom para nós ouvi-lo, para rebentar o Governo”; “Não se percebe, isto era mau para o PS e bom para nós”.
Dias depois, o Observador contava a história de como Miranda Sarmento se tinha sentido ultrapassado e, comentava uma fonte social-democrata, tinha travado o requerimento “para mostrar quem manda”. Era, à partida, apenas uma questão de afirmação na bancada.
Já esta quinta-feira, dia 29, o requerimento ia mesmo ser votado na comissão (já que o Chega o apresentou no dia seguinte ao recuo do PSD) e a posição de Miranda Sarmento voltou a ser incompreensível para vários deputados, até porque já tinham passado nove dias do momento em que era “extemporâneo”: o líder parlamentar deu indicação para o PSD se abster. O voto contra do PS podia ditar, assim, que Diogo Ayres Campos não fosse ouvido. Os socialistas, que não revelaram a indicação até ao último momento, acabaram por se abster também e, assim, viabilizaram a audição.
O conflito de interesses em causa
Resolvida que está a questão da audição (que vai mesmo ocorrer), subsiste uma dúvida levantada por alguns deputados do PSD: o facto de a mulher de Miranda Sarmento estar, no momento da exoneração, sob a dependência hierárquica de Diogo Ayres de Campos não devia inibir o líder parlamentar de tomar decisões sobre o caso? “Se queria manifestar autoridade, devia tê-lo feito com outro caso qualquer. À mulher de César, ou ao marido de Cleópatra, não basta ser sério…”, disse um dos deputados do PSD ao Observador. “Este travão foi estranhíssimo desde o início. Se ele não sabia que ele dirigia o departamento da mulher, devia saber”, completava outro deputado do grupo dos desalinhados.
Joaquim Miranda Sarmento, em declarações ao Observador, garante que a “retirada do requerimento em causa ficou a dever-se apenas a questões processuais“. O líder parlamentar recorda que “todo e qualquer requerimento, apresentado em nome do Grupo Parlamentar do PSD, obedece a procedimentos internos conhecidos e aceites por todos os deputados. O não cumprimento dessas normas em que se inclui, naturalmente, a avaliação política da direção e do seu presidente implicaria, em qualquer caso, o que aconteceu ao requerimento”.
O líder da bancada parlamentar continua a explicar que “o que aconteceu a este requerimento aconteceria a qualquer outro, pelo que não tem qualquer relevância o local onde a minha mulher exerce a sua profissão há mais de 20 anos”. E atira aos deputados críticos: “Considero mesmo ser ignóbil e revelador de uma enorme falta de caráter fazer tal ligação”. E sugere cobardia dos mesmos: “Ainda hoje [quinta-feira] houve reunião do Grupo Parlamentar em que um dos pontos da agenda era sobre saúde e nenhum dos citados ‘vários deputados’ abordou o assunto”.
O Observador confirmou, no registo de interesses de Joaquim Miranda Sarmento, que é casado com uma médica do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina de Reprodução do Centro Hospitalar de Lisboa Norte. Tanto os documentos oficiais como o LinkedIn da mulher de Miranda Sarmento confirmam que trabalha naquele departamento do Hospital de Santa Maria.
O próprio Miranda Sarmento confirma-o quando questionado pelo Observador. “A minha mulher trabalha no serviço de ginecologia no Hospital de Santa Maria”, começa por dizer. No entanto acrescenta que a mulher “responde apenas diretamente ao diretor do serviço de Ginecologia, Dr Alexandre Valentim Lourenço (e este reporta diretamente ao Conselho de Administração), pelo que tais insinuações carecem de qualquer fundamento”. Ora, isso é o que acontece agora porque Alexandre Valentim Lourenço ficou a assegurar, interinamente, as funções de Diogo Ayres Campos — mas, no momento da exoneração, não era assim.
O regulamento interno do hospital, enviado ao Observador pelo Centro Hospitalar de Lisboa Norte, diz claramente que — ao contrário do que afirma Joaquim Miranda Sarmento — o “diretor de serviço integrado em departamento está hierarquicamente dependente do diretor de departamento e ambos do Conselho de Administração”. E distingue até a situação de um diretor de serviço “não integrado em departamento”, que está “dependente hierarquicamente” apenas “do Conselho de Administração”.
De acordo com o organograma enviado pelo do Centro Hospitalar Lisboa Norte ao Observador fica igualmente claro que os serviços estão dependentes hierarquicamente da direção do departamento.
Confrontado com a incompatibilidade, Joaquim Miranda Sarmento limitou-se a responder, sobre esta matéria, da seguinte forma: “Considero, por isso, que a minha honorabilidade é posta em causa de uma forma que me abstenho de comentar”.
O episódio está a alimentar, uma vez mais, a guerra de alguns deputados do PSD contra o líder parlamentar Joaquim Miranda Sarmento. Os críticos acusam agora o presidente do grupo parlamentar de “falta de cuidado” e de “ligeireza ética” ao não se ter abstido de tomar uma decisão relativa a a alguém que foi superior hierárquico da mulher até ao momento da exoneração.