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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Mortes nos Comandos sem castigo. Falha do Ministério Público, inação do tribunal Militar, ou ambas?

Coletivo que absolveu 16 dos 19 superiores do curso de Comandos em que morreram 2 instruendos assumiu que em processo comum o desfecho do caso podia ter sido outro. Mas será que não podia fazer nada?

Os juízes do tribunal coletivo com competência Militar de Lisboa, que deram como provados apenas três dos dos 539 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física de que eram acusados 19 comandos, têm consciência de que a sua decisão poder gerar “incompreensão”, mas pela lei, segundo dizem, nada mais podiam fazer. Os 19 arguidos, que responderam pela morte de dois comandos em instrução e por ofensas provocadas a vários outros instruendos do mesmo curso, foram acusados de acordo com o Código de Justiça Militar e em julgamento o coletivo percebeu que, afinal, alguns dos crimes pelos quais podiam responder estão afinal previstos na lei comum. Mas será que os juízes nada podiam fazer para que a morte de dois comandos do 127.º curso ficasse sem castigo?

Dos 19 arguidos, o tribunal condenou apenas três: o sargento Ricardo Rodrigues, a três anos de cadeia, e dois outros instrutores, o sargento Lenate Inácio, a dois anos, e o tenente Pedro Fernandes, a dois anos e meio, por crimes de abuso de autoridade autoridade e ofensas à integridade física — pelos socos e bofetadas que deram a outros instruendos do curso, que não os que acabaram por morrer, Dylan da Silva e Hugo Abreu. Os três foram condenados a penas de prisão suspensas e estão em liberdade. No acórdão a que o Observador teve acesso, o coletivo presidido pela juíza Helena Pinto refere: “O Tribunal está ciente da incompreensão […] findar com absolvição criminal daqueles a quem foi imputada a morte de dois filhos”, referindo-se sobretudo aos pais das vitimas. “Mas o exercício jurisdicional do tribunal está limitado”, escrevem. E está limitado, dizem, por se tratar de um tribunal militar e não de um tribunal comum.

Mas poderia ter sido feito mais por este coletivo, tendo em conta as limitações?

Para os advogados que representam as vítimas mortais Dylan Silva e Hugo Abreu o coletivo podia, ainda assim, ter feito mais. Miguel Santos Pereira, da família de Dylan, defende que o tribunal comum está sempre num patamar superior. Ricardo Sá Fernandes, que defende Hugo Abreu, lembrou que o “tribunal, embora reconhecendo a existência de condutas criminosas que contribuíram para a morte de Hugo Abreu e Dylan da Silva, entendeu que elas não caberiam no âmbito dos crimes militares imputados aos arguidos, declarando-se incompetente para as apreciar e julgar, por serem crimes civis”. Um entendimento que considera “insustentável, razão pela qual será interposto o competente recurso”. Ambos estão ainda dentro do prazo de 40 dias para apresentar recurso.

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Mortes nos comandos ficaram sem castigo. Como o tribunal militar desmanchou a acusação do Ministério Público

O Observador contactou vários magistrados que afirmam que o tribunal ficou de mãos atadas. Mas uma magistrada do Porto, que preferiu manter-se no anonimato, teve um caso semelhante em mãos há menos de um ano e encontrou uma solução. O coletivo (com um juiz militar) percebeu que o crime por que vinha acusado um arguido militar que tinha à sua frente — insubordinação por ofensas à luz do Código de Justiça Militar — não ficaria provado, mas que à luz da lei comum ele poderia ser condenado pelo crime de ofensas, previsto no Código do Processo Penal. Por isso, os juízes decidiram absolvê-lo do crime militar e mandar extrair certidão para a comarca para ser julgado pelo tribunal comum. Ou seja, acabou por participar o crime ao Ministério Público, para que ele abrisse um processo comum com os mesmos factos. “O que à luz da lei comum até lhe confere mais poderes de defesa, porque pode chegar a acordo, o que não é possível no direito militar”, explicou a magistrada que reconhece que, em anos, este foi um caso único.

Já a juíza desembargadora Manuela Paupério, agora na Relação do Porto, trabalhou muitos anos num dos dois tribunais com Competência Militar do país, no Porto, e nunca usou deste mecanismo legal. Segundo explicou ao Observador chegou a deparar-se com casos que considerou não serem crimes militares, previstos pelo Código de Justiça Militar, mas limitou-se a absolvê-los, à semelhança do que aconteceu com o caso dos Comandos. No seu entendimento, não podia mandar pedir a extração de uma certidão para comunicar ao Ministério Público, ou seja, pedir-lhe para investigar estes novos factos (crimes) num processo à parte e à luz da lei comum — neste caso do Código Penal. Isto, porque, explicou ao Observador, “ninguém poderá ser julgado mais que uma vez pelos mesmos factos”.

E, justificou, só os novos factos produzidos em julgamento poderiam eventualmente levar o coletivo de juízes composto por um juiz militar comunicar uma alteração substancial dos factos e alterar a acusação (com a concordância de todas as partes do processo). Mas sempre de acordo com o Código de Justiça Militar, senão o tribunal seria incompetente. “A alteração substancial dos factos, tem que ser com factos novos. No julgamento vem-se apurar que existem factos que não estão lá e que deviam estar, mas tem de haver a concordância para o julgamento”, explica Manuela Paupério. Ou seja, os advogados e o Ministério Público têm de concordar com essa alteração.

O que aconteceu no caso dos comandos é que os juízes perante os mesmos factos consideraram poder haver outro tipo de crime, mas punível pela lei penal comum e não pelo Código de Justiça Militar (CJM). Ou seja, os arguidos beneficiaram de estarem a ser julgados por um tribunal que não os podia condenar por determinados crimes, nem encaminhar o caso para a Justiça comum.

O advogado Ricardo Sá Fernandes, que representa a família de Hugo Abreu

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Também o o coronel Gil Prata afina por esta tese. Ele que foi juiz militar entre 2008 e 2015 e que agora é professor no Instituto Universitário Militar, diz ao Observador que uma alteração destas só poderia ser à luz do Código de Justiça Militar. “Um tribunal com coletivo militar só pode julgar crimes estritamente militares”, sublinha.

Gil Prata lembra que era subdiretor da Polícia Judiciária Militar quando foi aprovado o novo Código de Justiça Militar (CJM), em 2003, que deixou cair muitos crimes que são qualificáveis como crimes comuns. Alguns desses crimes já constavam na lei comum e até tinham penas superiores na lei militar. “Esses crimes foram repatriados. Passaram quase para metade” no CJM, diz, dando como exemplo um furto de material sem ser de guerra feito por um militar ou mesmo um crime de peculato. “O foro deixou de ser pessoal e passou a ser material”. Por outras palavras, a lei deixou de ser aplicável a todos os militares que cometessem crimes para se aplicar apenas a crimes que colidam com os interesses da Defesa Nacional.

"A alteração substancial dos factos tem de ser com factos novos. No julgamento vem-se apurar que existem factos que não estão lá e que deviam estar, mas tem de haver a concordância para o julgamento"
Juíza desembargadora Manuela Paupério

O advogado Rui Baleizão que também foi juiz militar, e que é um dos advogados no caso Tancos, exemplifica com um civil que seja apanhado na posse de uma granada e que é julgado à luz da lei militar por comércio ilícito de material de guerra. Se essa mesma pessoa na altura da detenção tiver cometido um outro crime, por exemplo um assalto a um banco, será julgada paralelamente um processo autónomo e independente pelo tribunal comum e de acordo com o Código Penal.

“O CJM não permite a conexão, ela não opera entre processos que sejam de natureza militar e não militar. Muito menos pode haver a apensação de processos. Por exemplo, um processo por homicídio e outro por insubordinação. Um teria de ser julgado com um juiz militar, porque só pode julgar crimes estritamente militares, e outro pelo comum”, explica por seu turno o coronel Gil Prata.

Na altura da mudança da lei, lembra o coronel Gil Prata, e com a extinção dos tribunais exclusivamente militares acabaram por ser enviados para os tribunais comuns vários processos que deixaram de ser crime à luz da lei militar, como o peculato, mas que eram qualificáveis como crime pela lei comum. Diferente é o caso agora dos Comandos, que corre exclusivamente num tribunal de competência militar por crimes previstos na lei militar.

Mas, então, porque é que no caso dos Comandos não houve um julgamento autónomo no que respeita aos crimes não militares, de modo a evitar que alguns crimes ficassem sem castigo?

Intenção ou negligência?

Quando investigou os alegados crimes ocorridos em Alcochete, o Ministério Público considerou estar perante apenas crimes militares, segundo a fundamentação da própria procuradora Cândida Vilar no processo. Do seu ponto de vista, os crimes de ofensa à integridade física e de homicídio são “crimes materiais de resultado”, que podem ser cometidos por qualquer meio, seja pelas próprias mãos, com uma arma, com veneno… Mais: a procuradora que assinou a acusação contra os 19 militares explicava ainda que o crime de ofensas à integridade física agravado pelo resultado pode ser praticado por omissão, segundo o Código Penal. Ora, como os arguidos tinham uma relação hierárquica com as vítimas e um dever de garante imposto pelas leis militares, a magistrada optou então que fossem julgados por esse crime num tribunal militar acusando-os de um total de mais de 500 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física — um crime punível entre os dois e os oito anos de cadeia de acordo com o resultado. Em caso de morte esta pena pode chegar aos 16 anos. Esta foi uma das imputações feitas a sete dos arguidos pela morte dos dois comandos.

"O Ministério Público podia ter investigado um processo pelo crime de homicídio por negligência, mas seria o tribunal de Benavente a julgar os crimes comuns e o militar os crimes militares"
Coronel Gil Prata

Enquanto o MP imputou aos militares uma “atuação dolosa [intencional] na medida em que todos eles quiseram ou conformaram-se com a possibilidade de virem a causar ofensas corporais nos ofendidos, sendo em alguns casos, tais ofensas idóneas a causar perigo para a vida”, para o tribunal, porém, ao avaliar essas agressões, a conclusão foi outra: a de possível negligência, porque não se provou que os arguidos tivessem intenção de agredir ou mesmo matar os seus instruendos. Porém, como o Código de Justiça Militar não prevê sequer o homicídio negligente para uma eventual alteração dos crimes da acusação, o tribunal tornou-se incompetente para julgá-los por isso, avaliando apenas as ofensas corporais infligidas. A lei “determina que o homicídio seja apenas punido nos termos da lei penal comum, não constituindo por esse motivo um crime militar e, por isso, não possa ser apreciado por este tribunal de competência militar, não possuindo pois competência material para fazer essa apreciação”, lê-se

Falha do Ministério Público?

Para o coronel e professor Gil Prata, não se fazer Justiça deve-se a um “erro” no início do processo. Se tivessem corrido dois processos paralelos, defende, as mortes de Dylan Silva e Hugo Abreu podiam ter sido punidas na forma de homicídio por negligência ou de omissão de auxílio ou até por negligência médica por parte do clínico e do enfermeiro que os assistiram — a eles e aos restantes instruendos. O antigo juiz militar lembra que quando os militares foram detidos e levados para o estabelecimento prisional de Tomar, foram depois presentes a um juiz de instrução que alertou para o facto de poderem estar em causa crimes de competência militar e comum. “Mas a procuradora entendeu que eram crimes estritamente militares até que vieram para julgamento num chamado coletivo militar”, sublinha.

“Creio que para a zona de Alcochete, o tribunal competente seria o de Benavente. O Ministério Público podia ter investigado um processo pelo crime de homicídio por negligência, mas seria o tribunal de Benavente a julgar os crimes comuns e o militar os crimes militares”, sugere o militar, partindo do princípio que sempre foi considerado haver negligência — caso contrário, os arguidos não teriam sido acusados pelo crime de de ofensas, mas sim pelo de homicídio de subordinado que a lei militar prevê, mas que já implica dolo (intenção de matar) e cuja pena máxima é de 25 anos.

"O tribunal declarou-se incompetente para apreciar e julgar os crimes por serem crimes civis. Um entendimento insustentável"
Advogado Ricardo Sá Fernandes

Também a desembargadora Manuela Paupério considera que o MP podia ter prevenido essa possibilidade. E nem mesmo em fase de instrução, quando um juiz, a pedido dos arguidos, olha para o processo e confirma ou não a acusação do Ministério Público, esta questão foi suscitada por nenhuma das partes. “O juiz de instrução só pode fazer aquilo que lhe pedem para fazer. Se os arguidos contestam o que lhes é imputado, só se vai pronunciar sobre isso”, lembra a magistrada.

Para os advogados das vítimas mortais, o facto de o tribunal da Relação de Lisboa lhes ter dado razão no que respeita ao pedido de indemnização — que o coletivo militar chegou a considerar não poder ser discutido naquela instância, — poderá ser uma porta aberta para que o tribunal superior entenda que este coletivo podia ter feito mais.

Uma juíza contactada pelo Observador e que prefere manter-se no anonimato refere que uma vez que o tribunal nada fez perante a hipótese de estar perante crimes comuns, pode agora o Ministério Público do julgamento (que já anunciou que iria recorrer) fazê-lo. Ou mesmo os advogados dos assistentes, fundamentando-se precisamente no facto de poderem estar crimes comuns em jogo e suscitando um novo processo que poderá seguir nos tribunais comuns. Aliás, diz mesmo, o tribunal não poderia ter feito uma alteração substancial aos factos, porque depois seria incompetente para julgá-los (logo seria um “acto inútil”), mas isso pode ser pedido pelo próprio Ministério Público aos tribunais superiores.

Um ex-ministro da Defesa salvo pela dúvida e o pacto entre arguidos que não convenceu. O que ainda não se sabia do acórdão de Tancos

Crimes militares no caso Tancos ficaram sem castigo

O coronel Gil Prata lembra mesmo um acórdão que foi conhecido dias antes, o de Tancos, que ao contrário deste correu apenas no tribunal comum. Resultado: neste caso ficaram por condenar os crimes previstos no Código de Justiça Militar, como o assalto às instalações militares e a posse de armas de guerra, por exemplo, por parte daquele que se afirmou como o cérebro do crime, João Paulino, e que foi condenado a oito anos de cadeia por terrorismo e tráfico de droga. A mesma visão pode ser aplicada para os militares da Polícia Judiciária Militar, que acabaram condenados por terem feito uma investigação ilegal ao caso e terem montado uma operação para a recuperação das armas, que à luz da lei militar também lhes podia valer uma acusação.

Voltando ao caso dos Comandos, para o coletivo composto por um juiz militar que julgou os 19 comandos no Campus da Justiça em Lisboa não ficou provado em tribunal, ao contrário do que dizia a acusação, que os arguidos ao agredirem os seus subordinados sabiam que podiam causar-lhes consequências físicas graves, entre elas neurológicas, muito menos a morte. O tribunal valorizou a prova documental, as 175 testemunhas ouvidas durante as 312 sessões de julgamento que terminaram em 2021, e até foi ao local do curso, em Alcochete, para a reconstituição da Prova Zero.

O pai da vítima Dylan da Silva à porta do tribunal no dia da leitura do acórdão

LUSA

“Nem tudo foi dito pelas testemunhas e algumas refugiaram-se numa amnésia pouco credível”, lê-se no acórdão. Por outro lado, foram desvalorizados vários testemunhos que o Ministério Público recolheu em fase de inquérito por terem suscitado dúvidas. “Ou por se reportarem a situações em que havia coincidência horária quanto ao momento em que simultaneamente decorriam e a quem presidia às inquirições ou por indiciarem serem mero copy-paste uns dos outros, gerando controvérsia sobre a sua autoria original”. O tribunal enuncia mesmo vários excertos de várias testemunhas que são iguais uns aos outros, pelo que preferiu valorizar a prova produzida em julgamento. Concluindo, por isso, que os arguidos acusados por ofensas, como atirar os instruendos para as silvas, deviam ser absolvidos por não se ter conseguido determinar quem fez o quê.

Uma fonte da defesa das famílias das vítimas, no entanto, discorda por completo destas absolvições uma vez que, tratando-se de um curso e havendo formadores a dar instrução, haveria sempre um responsável hierárquico.

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