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A primeira conversa mais memorável que José Marino de Freitas se recorda de ter com Carlos do Carmo sobre o último disco foi já nos “preparativos”, nos “ensaios”, que aconteciam sempre em casa do fadista. Estavam os dois a tomar café, o cantor e o músico que o acompanha há muitos anos, que começou a gravar discos e a tocar com o fadista ao vivo ainda nos anos 90. O músico, que toca baixo acústico, ouviu do fadista: “Ó Zé, pá, tenho aqui uma coisa que vais ficar de boca aberta. Estou entusiasmadíssimo com este disco. Vamos gravar um poema do teu conterrâneo madeirense, o Herberto Helder”.
Assim à primeira, José Marino de Freitas não percebeu o motivo para tanto entusiasmo de Carlos do Carmo. “Até parecia que o Herberto Helder era conterrâneo dele”, exclama em conversa telefónica com o Observador. Mas o fadista lá lhe explicou: “Tu não estás a ver, nunca ninguém cantou este poeta. Isto é dos poetas mais importantes que o nosso país teve”.
Foi já há mais de dois anos que Carlos do Carmo começou a dedicar-se mais afincadamente àquele que, pressentia já — garante o filho e produtor “Becas” mas também o próprio fadista, numa entrevista captada durante as gravações a que o Observador teve acesso —, seria o seu último disco. Um álbum intitulado E Ainda…, que já não foi a tempo de ver sair porque morreu a 1 de janeiro deste ano, com 81 anos.
O disco sairá na próxima sexta-feira, dia 16 de abril, e foi gravado ao longo de mais de dois anos. Foram “dois anos e tal” de produção mas também de tumulto, dado que o processo foi “longo e doloroso” pelas “grandes dificuldades de saúde” do fadista.
Nem sempre em condições de gravar, mas com uma vontade que ainda lhe permitiu deixar cantados sete temas deste álbum póstumo que agora ouviremos — a que acrescem uma “intro” e um final onde o ouvimos dizer, em modo spoken word, que “cantar, dizem, é um afastamento da morte” e que “a voz suspende o passo da morte e em volta tudo se torna pegada da vida” (frases de Mia Couto) —, Carlos do Carmo cantou contra o tempo.
Os sete fados cantados são: “Mariquinhas.com”, com música de Paulo de Carvalho e uma letra marota e cheia de ironia de Vasco Graça Moura, que leva a “Casa da Mariquinhas” para um “site da internet”; “Sombra”, com letra de Hélia Correia e melodia tradicional (fado menor do Porto) pouco tocada e cantada; “Canção de Vida”, tema há muito prometido por Jorge Palma; “Poemas Canhotos”, com poema de Herberto Helder e música de António Vitorino d’Almeida; “Bem-Disposto Então Vá”, uma composição musical original de Paulo de Carvalho e lírica de Júlio Pomar; “Jogo do Lenço” (palavras de José Saramago, música de fado puxavante de Joaquim Campos); e “Canção”, com poema de Sophia de Mello Breyner e música de Mário Pacheco.
Nas gravações estiveram poucas pessoas, apenas as “estritamente necessárias”. Desse grupo faziam parte Alfredo Almeida, ou “Becas” — filho de Carlos do Carmo, que produziu o disco (em parceria com o pai) e colaborou na gravação, mistura e masterização —, e os músicos José Manuel Neto e José Marino de Freitas. Os três recordaram ao Observador como nasceu o disco, como correu o andamento das gravações e como Carlos do Carmo fez um último esforço para gravar este E Ainda… Os depoimentos foram recolhidos e tratados para que estes três intervenientes do disco pudessem falar em discurso direto.
Alfredo “Becas” do Carmo
Filho e produtor de Carlos do Carmo
Este disco nasceu como todos os outros. O meu pai decide gravar um disco quando tem qualquer coisa para gravar e para dizer às pessoas, porque lhe aparecem um ou dois poemas que faz questão de interpretar e transportar para o seu público. Grava quando sente essa energia e esse chamamento.
Aqui aconteceu isso: de repente tinha vontade de gravar [um poema de] Herberto Helder, tinha encontrado uma coisa da Sophia de Mello Breyner… no caso dele as coisas começam sempre pelas palavras, pela poesia. E de repente encontrou uma série de palavras que ainda queria dizer, para as quais ainda queria arranjar música. Não ficava agarrado à ordem da editora, à obrigação de gravar de X em X tempo. Não, gravava quando tinha coisas para dizer às pessoas.
Ele tinha a noção que muito provavelmente, como é óbvio, este seria o seu último disco. Até porque tudo tem o seu tempo, mesmo que continuasse vivo e com forças para poder cantar, como cantou tão bem até ao último concerto da vida dele… aliás a prova está documentada [concertos nos Coliseus], cantou de forma magnânima e não vacilou na última vez que pisou um palco.
Mesmo tendo essa consciência de que muito provavelmente seria o seu último disco, a atitude em estúdio foi igual à de sempre: querer fazer sempre o melhor, ter rigor, garantir que as palavras saíam bem, repetir os takes se fosse necessário até encontrar a fórmula que para ele estava correta na passagem da mensagem. O rigor foi sempre igual. Apesar de eu perceber — talvez como filho — que havia uma certa consciência que era a última vez que iria estar ali no estúdio a gravar.
Fiz questão que neste disco não estivesse ninguém em estúdio sem sermos nós, os que precisávamos mesmo de estar. Não estiveram em estúdio amigos, autores [das músicas ou letras], estiveram estritamente as pessoas necessárias. O meu pai gostava sempre de ter pessoas em estúdio — os autores dos temas, os amigos — mas neste disco isso não aconteceu para haver uma concentração absoluta e máxima.
Ir para estúdio era sempre encarado por ele com uma grande responsabilidade e uma grande seriedade. Mas prazer e felicidade sentia era em cima do palco, com o público, com as pessoas à frente. Era um homem da comunicação, da palavra, gostava de falar com as pessoas, com o público. Tinha grandes momentos durante os seus concertos de empatia e conversa com o público. No estúdio havia rigor, sabia que aquilo ficava para sempre e que tinha de ficar tudo extremamente bem para preservar a memória.
Logo nas primeiras sessões, há dois anos e tal, o meu pai já não estava bem. A primeira sessão foi muito experimental, as primeiras foram todas muito embrionárias. Começou-se até com uma “voz piloto”, nem sequer havia no início uma preocupação vocal com a interpretação, só a intenção de criar uma voz-piloto para se gravar primeiro o instrumental — as bases musicais. O objetivo era o instrumental ficar sólido e bem gravado, para que depois quando estivesse feito ele pudesse ter o tempo todo do mundo para pôr a voz.
Depois de iniciarmos este processo de começarmos em estúdio a gravação deste disco, o que se seguiu foi doloroso e penoso. E demorou bastante tempo, por comparação com os outros [discos]. Estivemos dois anos e tal em estúdio para tentar gravar este disco tão curtinho, com tão poucas canções. Mas acho que são bem boas. Valeu a pena o esforço e o tempo que demorámos.
O processo foi longo e doloroso por grandes dificuldades de saúde do meu pai, por grandes intermitências na capacidade até se poder deslocar ao estúdio e estar de pé. Ainda pusemos a hipótese de montar um estúdio em casa dele para não ter de sair de casa, mas isso era uma coisa que não o deixava minimamente descansado. A necessidade de sair de casa e estar dentro do estúdio era qualquer coisa que lhe trazia uma mais-valia, sentia essa necessidade. Portanto ficou logo posto de parte. Mas foi duro, foi difícil.
Não foi um disco simples, fácil. Um disco que demora dois anos e meio a gravar não foi gravado à primeira nem à segunda nem à terceira. Muitas vezes íamos a estúdio, tentávamos e o meu pai sentia-se sem forças para atingir o que desejava. E íamos embora. Foi preciso gravar muitos takes para cada tema. Mas a vontade dele era enorme. Mesmo quando não se sentia a 100%, quando se punha de pé em frente ao microfone para gravar parte de um take dava tudo o que tinha e o que não tinha.
As sessões aconteciam mais de noite. O meu pai até não se importava de aparecer lá [no estúdio] ao final da tarde. Depois jantávamos e tal, para se ir ambientando, para pôr os papeis, para pôr o seu copo de água, para respirar, falar, ambientar-se e jantar. Mas depois cantar, cantar… estas vozes definitivas que se ouvem no disco foram todas gravadas à noite, depois de jantar, entre as 22h/23h e 1h/2h. É a essa hora que ele canta, é a essa hora que ele gosta de cantar.
Ele colocou neste disco o mesmo empenho, a mesma vontade e a mesma dedicação que colocava sempre. Não houve uma abordagem diferente por sentir que era o último [álbum]. Ele verbalizava-o, isso sim, mas não houve nenhuma alteração no comportamento. O que houve realmente foi uma insistência da parte dele de cada vez que era difícil deslocar-se ao estúdio, sabia que tinha de o fazer porque poderia ser o último [disco].
Lembro-me que um dos temas que talvez tenha sido mais complicado pela sua estrutura musical pode ter sido o “Poemas Canhotos”, que tem música do António Vitorino d’Almeida e palavras do Herberto Helder. É um tema que tem uma estrutura harmónica um pouco complexa e uma melodia bastante flutuante, é capaz de ter levado mais tempo para se encontrar a fórmula de o cantar. Um tema em que aconteceu o oposto será a “Canção de Vida” do [Jorge] Palma. Era uma canção que tinha tão interiorizada… gostou tanto, tanto de a receber do Jorge que quando chegámos ao estúdio para gravar se não foi à segunda [tentativa] terá sido à terceira que a gravou, foi absolutamente natural.
O meu pai dá-se bem com toda a gente. É uma pessoa dos afetos, do toque físico. Gosta de tocar nos braços do outro, de o sentir, de o olhar nos olhos. Com os músicos dele não era diferente, tinha uma grande relação com estes três músicos [Marino de Freitas, José Manuel Neto, Carlos Manuel Proença] que gravaram o disco. Eram os músicos dele, gostava muito deles. São músicos fabulosos mas a relação não era só profissional, era também de estima, de amizade, de carinho. Era uma relação muito boa.
Só é possível fazer coisas boas, sérias e que valham a pena quando há cumplicidade entre as pessoas. Isso até se nota. Quando não há cumplicidade e carinho as pessoas sentem que houve só grandes músicas, grandes temas, grandes técnicas mas que não houve ali algo de humano. E o meu pai tinha de ter sempre com as pessoas, e com os músicos que tocavam com ele em estúdio, uma relação de afeto, de carinho, humana, de brincadeira, de bom humor. Quando falo em brincadeira não falo em desconcentração, falo de um ambiente de amizade e cumplicidade.
Vou confessar uma coisa. O disco é muito curto, estamos a falar de sete músicas cantadas — porque são nove temas mas um é uma intro e outro é um fecho onde ele diz uma frase. O disco poderia ter mais dois ou três temas. Mas realmente houve uma altura em que fui para as misturas, atirei-me para as misturas, e apresentei-lhe este disco que as pessoas vão ouvir. Eventualmente poderíamos voltar ao estúdio para continuarmos a gravar mais temas que estavam na manga. Mas ele ouviu o disco e disse: ok, o disco está feito, é este o disco, não há que ir a estúdio fazer mais nada, está, vamos embora, é isto.
O último dia de estúdio deve ter sido um dia que não ficou na altura pensado como ‘o último dia de gravações’. Se calhar ainda teremos marcado mais umas sessões que depois não chegaram a acontecer. Ele estava tão cansado, tão cansado, que quando lhe apresentei este disco como veio a ficar ele ouviu, descomprimiu, descansou e disse: ok, o disco está feito, pode ser, gosto disto, vamos embora, mandem lá isso para fora que por mim está autorizado.
Pessoalmente o que me coube fazer foi tentar unir as pontas do que achava que poderia trazer alguma coisa ao disco na parte sonora e na estética sonora. Fiz algumas opções de mistura. E dei ali uma ajuda ao meu pai no repertório, também, apesar de ele ser uma pessoa absolutamente convicta e certa das suas necessidades e do que queria fazer. Dei-lhe um toque, disse-lhe: ‘Cuidado com essa letra, cuidado com essa música, cuidado com o conjunto dessa letra com a música’. Mas eram coisas muito circunstanciais, porque o meu pai sabia muito bem o que queria e o que não queria. Dava-lhe só uma pequena ajuda.
Depois ajudava-o muito a cantar, picava-o, pedia-lhe mais ou menos energia, mais ou menos vontade, concentração em relação ao texto. Mas tudo coisas residuais. O meu pai não precisa de qualquer intervenção da minha parte. Estava ali só a unir pontes, a juntar vontades. Depois na mistura dei o meu toque final, a minha estética, mas isso é uma coisa sem grande importância. Estive ali presente como estive durante uns 37 anos na carreira do meu pai: a ajudá-lo no que fosse preciso.
José Marino de Freitas
Músico
Este disco teve um sabor especial por duas razões. A primeira é que sabíamos que era o último trabalho dele. A segunda é que ele estava muito entusiasmado porque ia ser — pela primeira vez na historia da música portuguesa! — cantado um poema de um conterrâneo meu, o madeirense Herberto Helder.
Os ensaios e preparativos eram sempre em casa dele, para qualquer dos discos que gravámos juntos. Tenho sempre aquele estigma inglês de chegar uma hora antes. A gente tomava ali um café e ele dizia-me há tempos: “Ó Zé, pá, tenho aqui uma coisa que vais ficar de boca aberta. Estou entusiamadíssimo com este disco. Vamos gravar um poema do teu conterrâneo madeirense, o Herberto Helder”.
Ficou encantado com aquele poema, estava entusiasmadíssimo com aquilo. Até parecia que o Herberto Helder era conterrâneo dele! E lá explicava: “Tu não estás a ver, nunca ninguém cantou este poeta. Isto é dos poetas mais importantes que o nosso país teve”. Depois contou-me mais coisas sobre o Herberto Helder: a relação que tinha com a própria ilha, com a sociedade de uma forma geral, como era um homem reservado.
O Carlos estava mesmo muito entusiasmado. Pena tenho, temos todos na equipa, que ele não tenha conseguido pôr neste disco todos os temas que gostaria de ter posto. Porque havia mais, ainda gravámos dez ou 11 e segundo parece só vão entrar no disco sete [cantados]. Não houve tempo para refazer as vozes dos outros. Mas por ser o último trabalho dele tem um significado muito especial, acima dos outros todos que gravámos.
Ele chamava-nos, a mim e aos meus colegas, os três anjos da guarda dele. Era eu no baixo [acústico], o José Manuel Neto na guitarra portuguesa e o Carlos Manuel Proença na viola. Acompanhámo-lo sempre nos últimos anos e ele tinha uma grande amizade e um grande carinho por nós.
No meu caso, desde que em 96 nos encontrámos para gravar o ‘Margens’ nunca mais nos separámos, fosse em espetáculos ou em gravações de discos. Tinha uma relação familiar com o Carlos. A casa dele era também a minha casa. Trabalhei 24 anos com ele.
Neste disco sentia-se já algum peso da debilidade física dele. Havia alguma contenção, um ambiente um pouco mais denso e pesado do que o costume. Numa fase anterior o ambiente era muito alegre, ele adorava aquilo, fazíamos o som, íamos jantar, continuávamos. Gostava do lado social da situação, de estar ali connosco, com a esposa, com o “Becas”. Às vezes parávamos e ficávamos meia hora à conversa, a contar uma história, começava a pegar comigo e eu com ele.
Aqui sentia-se que era um ambiente um bocadinho diferente. Lembro-me que noutras gravações íamos muitas vezes jantar juntos, desta vez não foi possível termos esses hábitos. Ele também teve muitas coisas que lhe correram mal: uma das vezes foi internado e quando estava para ter alta agachou-se para ir buscar uma receita que tinha caído e caiu, ficou no hospital, já não saiu. Foi operado duas vezes ao aneurisma [da aorta]…
Sabíamos o peso e o significativo do que estávamos a fazer. Não foi um ambiente tão eufórico e tão divertido. Mesmo antes das gravações, nos preparativos do disco em casa dele, notava-se já que ele estava um bocadinho cansado. Notava-se no andar. E em duas ou três canções baixávamos ligeiramente o tom, o que é normal — não se canta aos 80 anos no tom com que se canta aos 40.
Aqueles espetáculos no Coliseu foram de um desgaste enormíssimo, depois daquilo ele foi um bocado abaixo. Tive ali a impressão, logo, que estávamos um bocadinho a lutar contra o tempo. Aliás uma das coisas que me marcou foi o espetáculo no Coliseu do Porto, no dia 2 de novembro — o dia do meu aniversário. Ele veio com uma conversa estranha que nunca mais vou esquecer, disse-me: “Ó Zé, quero-te pedir um favor: quando morrer, fazes-me o favor de levar um cravinho para deixar na urna?”. Eu disse-lhe: “Ó Carlos, você quer-me chatear ou quê? Já me estou a passar consigo! A que propósito vem esta conversa, num dia destes?” Nunca mais me esqueci disso.
Mais tarde, até já depois de sairmos de estúdio, volta e meia ligava para a Judite [mulher de Carlos do Carmo] a perguntar como é que ele estava. Mas nos últimos tempos passou parte do final de vida ou internado ou em repouso total, sem poder contactar com ninguém.
Sou um freelancer e um session player. Gravo e toco com muita gente. Mas sem menosprezar ninguém costumo dizer que o meu artista de eleição foi sempre o Carlos. Ele tinha aquela imagem… dizia: sou fadista mas também oiço Tony Bennett. Isto não é depreciativo para o fado nem para quem o canta, diz é muito sobre a bagagem e a cultura daquele homem. Era diferente, era o nosso charmoso, era o nosso ‘the voice’ deste país.
O Carlos para mim tem o melhor e maior espólio da música portuguesa: cantou os melhores poetas, gravou com os melhores músicos, cantou música orquestrada por grandes maestros, teve sempre coisas boas. Trabalhou com o Ary dos Santos, com o meu grande amigo José Luís Tinoco, tudo pessoas que ele… o Carlos costumava dizer que foi a pessoa que me trouxe para o fado e de certa forma foi.
A nossa relação ia para além da música, era familiar. Ele sabia coisas da minha vida, eu sabia coisas da vida dele. Metia-se comigo nos espectáculos por ser madeirense, dizia que eu era ‘laranjinha’ e amigo do Alberto João. Eu respondia-lhe, estávamos sempre na brincadeira um com o outro.
Receei sempre que chegasse o dia em que recebia a notícia que ele tinha falecido. E recebi-a quando estava na Madeira. Era o que temia: um dia acordar e dizerem-me que o Carlos do Carmo tinha morrido.
José Manuel Neto
Músico
O Carlos estava como peixe na água tanto no estúdio como nos palcos. Não conheço ninguém, e conheço muitos cantores, com o à-vontade dele em estúdio e em palco. É incrível.
Nós [os seus músicos] tínhamos com ele uma relação de amizade. Para se ter uma ideia, cumprimentávamo-nos com um beijo. Era uma relação fantástica, ele tratava-nos como família.
Percebiamo-nos muito bem uns aos outros. Não era preciso dizer nada. Uma vez aconteceu-lhe uma coisa — acontece às vezes aos fadistas — num concerto, no Algarve: o ar condicionado deu-lhe cabo da garganta e ficou afónico. Tivemos de baixar dois tons e meio ou três tons aos temas. Ele cantou tudo dois tons e meio abaixo, nós acompanhámos e o concerto fez-se. Quer de um lado quer do outro é preciso ter muita ginástica [risos].
O artista se não está a cantar no tom dele tem de ter uma capacidade de improviso para fazer melodias que lhe permitam cantar num registo mais baixo. Precisa de ter essa capacidade musical. Não pode cantar as mesmas melodias que canta quando está a cantar no tom original, quando está bem da voz. E ele fez isso fantasticamente. Com o passar dos anos começou a ser quase desnecessário dizer-nos “gostava disto assim e tal”. Conhecíamo-lo, já sabíamos do que é que ele gostava. Aliás se não ia um de nós ele não gostava muito [risos], ficava assim um bocado chateado.
Lembro-me de termos falado [sobre a hipótese de se gravar mais um disco] há bastante tempo, talvez já em 2018. Nos concertos que íamos fazendo ele ia-nos falando de algumas músicas e poemas que gostava de gravar. Era uma coisa que já antes era costume. Dizia-nos assim: olhem, tenho um poema, tenho uma música do Jorge Palma… em cada concerto ia-nos sempre dizendo o que estava a pensar porque ele era assim, andava sempre à procura de novos poemas, de novas músicas, de poemas novos [musicados] com fados tradicionais. Andava sempre nesta roda-viva.
Foi para aí em 2018 que começou a dizer-nos os temas que tinha, o que estava a pensar a gravar. Inclusive mostrou-me um poema e pediu-me para musicá-lo. Depois acabou por não gravar voz, acho que entrou só como instrumental no disco. Mas foi assim que este disco começou. Ia sendo assim, o processo habitual era este.
Há um disco que ele uma vez gravou, o ‘À Noite’, que foi gravado de uma forma diferente deste: fazíamos dois ou três takes com ele a cantar, todos juntos, e ele dizia: escolham o melhor. Só se houvesse uma coisa muito grave é que repetia, porque o Carlos não era pessoa de estar a repetir os temas até à exaustão. Dizia: ‘Já gastei a energia que tinha de gastar neste tema, cantei-o três vezes, uma delas é a melhor’.
Agora neste disco, por causa do estado de saúde dele, houve algumas músicas que gravámos juntos mas houve uma fase em que ele não estava bem e gravou uma voz-guia [ou “voz-piloto”] e nós gravámos as bases instrumentais. Houve umas duas ou três que gravou já para ficar, connosco, entretanto depois acertava uma coisita ou outra, corrigia o que não gostasse, uma palavra que não tinha saído como ele queria… é o que normalmente se costuma fazer. Noutros casos foi acrescentar partes de voz mais tarde, só ele.
A primeira sessão terá sido ou no fim de 2018 ou no verão de 2019. É difícil precisar, este disco foi assim… porque o Carlos entretanto teve um problema, caiu. Depois teve um problema de voz, ficou afónico, não conseguia meter vozes. Depois foi operado a um coágulo. Começaram a aparecer uma série de maleitas… Mas quando ele vinha para sessões de estúdio é porque podia. E não demonstrava isso, sentia-se quando estava mais fraco — uma pessoa apercebe-se — mas a nível artístico aquilo não parecia mexer com ele, tinha uma postura exatamente igual à que tinha antes.
Nós [músicos] íamos para o estúdio à tarde, começávamos a gravar algumas bases com as vozes que tínhamos. Chegávamos por volta das 15h, saíamos de lá às vezes à meia-noite ou depois.
Lembro-me de um sítio onde jantámos às vezes, um restaurante ali em frente ao estúdio, uma marisqueira fantástica. E ia vendo o Carlos bem, não se queixava. A nível de cabeça não se notava, ainda estava fantástico, continuava a gostar de discutir coisas que estavam a acontecer no panorama político, social.
Só no final de 2019 quando deu os últimos concertos é que o Carlos teve a noção que para cantar em palco já não tinha saúde, que já não poderia fazer. Mas vivia muito a música e a poesia e estava sempre com ideias. Sei que não foi falado entre nós algo como “pá, vamos lá ver, este disco temos de aprimorar porque é o último”. O que se passou foi procurar o melhor da poesia, músicas bonitas. Ele procurava sempre o melhor que poderia encontrar. E aqueles últimos concertos [de 2019, nos Coliseus de Lisboa e Porto e no Theatro Circo em Braga] foram fantásticos.