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"Não andei aos ziguezagues, nunca voltei para trás". As origens, os conflitos e o recomeço de António Champalimaud

O Observador faz a pré-publicação de "António Champalimaud: Um Olhar", livro de Jaime Nogueira Pinto sobre a história de um dos nomes fundamentais do século XX português.

É uma das figuras fundamentais do panorama económico e empresarial do Portugal do século XX, com inevitáveis repercussões para o século XXI. Mas a vida de António Champalimaud foi feita também de outras dimensões, dos momentos em que a política foi decisiva aos episódios pessoais que valem histórias em nome individual. 

Os vários ingredientes estão incluídos em “António Champalimaud: Um Olhar”, livro assinado por Jaime Nogueira Pinto (com a colaboração de Inês Pinto Basto e Maria Luísa Esteves da Fonseca), publicado pela Dom Quixote, que está à venda a 3 de novembro. Escreve o autor: “Para escrever este livro, recorri à minha relação de muitos anos com António Champalimaud e aos testemunhos e registos fotográficos de familiares seus e colaboradores próximos. A Fundação Champalimaud deu-me livre acesso ao seu arquivo de imagens”.

O Observador faz a pre-publicação do livro, com excertos referentes a momentos distintos da vida de António Champalimaud: as origens familiares, o exílio em tempos de revolução, o recomeço no Brasil e os números que em 2004, quando morreu aos 86 anos, faziam do empresário e banqueiro o homem mais rico de Portugal.

A capa de “António Champalimaud: um olhar”, de Jaime Nogueira Pinto (Dom Quixote)

Das armas e dos barões

A hereditariedade, o património e as relações familiares são, pelo menos, um legado; talentos que tanto se podem enterrar como multiplicar ou pôr a render, mas que, para o melhor e para o pior, acabam por traçar o destino de um homem. Mesmo o de um exemplar único, de um grande criador e inovador como António de Sommer Champalimaud.

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Quem eram e de onde vinham estes Champalimaud e estes Sommer, presentes no nome e nas origens daquele que viria depois a definir-se como um “patriota de velha cepa”?

Era o penúltimo ano da Guerra dos Sete Anos quando Friedrich Ernst Schaumburg-Lippe, o famoso conde de Lippe, chegou a Portugal. Chegou no dia 2 de Julho de 1762, enviado pelo governo britânico de Sua Majestade num acto de solidariedade para com o aliado luso que, por causa da aliança, era vítima da invasão espanhola no Nordeste transmontano.

Nada de mais justo e equitativo: os Bourbon de Paris e Madrid, unidos no Pacto de Família, queriam que Lisboa fechasse os portos e o comércio ao inglês. Portugal tornava-se assim alvo de represálias e da invasão das tropas vizinhas que, rapidamente e a baixo custo, ocuparam Miranda, Bragança e Chaves.

O exército nacional estava em péssimas condições de moral, de disciplina, de equipamento, de armamento. Era preciso reequipá-lo, treiná-lo e, à falta de competências locais, nada como um excelente profissional, habituado aos campos de batalha da Guerra dos Sete Anos, que ainda corria, e aos das guerras contra os turcos. Ao tempo, eram comuns estas situações e havia uma série de aristocratas que serviam em diferentes exércitos mediante paga e honrarias várias, como James Fitz-James, duque de Berwick (1670-1734), o Príncipe Eugénio de Sabóia (1663-1736) ou Charles-Joseph, príncipe de Ligne (1735-1814).

Os Champalimaud são oriundos de Limoges, da burguesia ou noblesse de robe virada para a carreira militar. Paul Joseph assentou arraiais em Valença do Minho, onde dirigiu a restauração da fortaleza, e veio a casar-se com uma senhora de Fontoura, da aristocracia local, D. Clara de Lira e Castro.

Lippe veio assim para reorganizar o exército português. Chegou nos princípios da que ficaria conhecida como Guerra Fantástica, uma guerra que estava a correr muito mal para Portugal. O enviado de Londres ficava com a responsabilidade de comandar o exército, sob a orientação do conde de Oeiras, depois marquês de Pombal.

Um pouco antes, chegara a Portugal Paul Joseph Champalimaud de Nussane, um tenente e engenheiro geógrafo que, em Março desse mesmo ano de 1762, era já engenheiro do Estado-Maior português. Não viera com Lippe, mas com o general Valleré, que estava em Portugal contratado para reorganizar a engenharia militar.

Os Champalimaud são oriundos de Limoges, da burguesia ou noblesse de robe virada para a carreira militar. Paul Joseph assentou arraiais em Valença do Minho, onde dirigiu a restauração da fortaleza, e veio a casar-se com uma senhora de Fontoura, da aristocracia local, D. Clara de Lira e Castro. Do enlace nasceu, em 1771, José Joaquim Champalimaud de Nussane de Sousa Lira e Castro, que também seguiria a carreira das armas. Português pelo lado materno e pelo jus soli, José Joaquim bater-se-ia contra os franceses de Soult durante a segunda invasão, estaria no Buçaco e na conquista de Badajoz e terminaria os seus dias como governador da praça de Elvas. Casou-se com uma prima, Maria Clara, de quem teve nove filhos. Diz-nos a prosa inflamada do padre Constantino Cândido de Castro, pároco de Fontoura, que este “preclaríssimo” marechal Champalimaud, “a quem Fontoura teve a não pequena honra de dar o berço”, tendo nascido na Quinta de S. José do Bárrio da mesma freguesia, tomou como sua a bandeira “que estava a ser esfarrapada pelas águias imperiais”, a mesma bandeira que “se desfraldara gloriosa em Ourique, em Aljubarrota e Montes Claros” e que “atravessara os mares, com a cruz de Cristo, para felicidade de povos das mais diversas raças e longitudes”. E é por ela que José Joaquim abandona “as doçuras e os encantos da vida familiar” que, perante o chamamento da pátria, tomam “o travor das maiores privações”:

Na mesa, onde nada falta, parece-lhe não ver mais que a magra refeição da indigência, e o leito, confortável e reparador de energias, transforma-se-lhe em grosseiro catre de insónias. Sente que a pátria o chama.

Uma das filhas deste Marechal e da sua prima Maria Clara, Carlota Casimira Champalimaud, vai casar-se com um fidalgo duriense, João Baptista de Araújo Cabral Montez, de Peso da Régua, licenciado em Direito e, depois, deputado. Daqui os apelidos Montez Champalimaud, em que o predominante – Champalimaud – vem por via feminina.

E é da união de António Araújo Cabral Montez de Champalimaud – neto de João Baptista e de Carlota Casimira – com Rosa Carolina Pinto Barreiros, que nasce a 13 de Novembro de 1877 Carlos Pinto Barreiros Montez Champalimaud. Carlos frequenta o colégio dos jesuítas em Campolide, faz estudos de Engenharia mas acaba por licenciar-se em Medicina pela Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Médico militar no Hospital da Estrela, administra também a Sociedade Geral de Construções de Angola, e olha pela lavoura e pela vinha, propriedade da sociedade Montez Champalimaud.

"Os meus pais ensinaram-me desde novo que era preciso trabalhar. E a minha vocação já nasci com ela."

Até aqui a história da família Champalimaud é uma narrativa de ligações e relações que podiam figurar num romance de Camilo: um oficial e cavalheiro francês que vem para Portugal numa missão de reorganização militar e que por cá se casa com uma senhora da aristocracia rural do Alto Minho; um filho português pelo nascimento e pelo sangue ao serviço da nação portuguesa contra os compatriotas do seu pai; uma família numerosa, bem aparentada no Norte, com quintas no Douro vitivinícola, prestígio social local, algum dinheiro, estudos e títulos académicos.

Mas em 1917, Carlos Montez Champalimaud casa com Anna de Araújo de Sommer. E se os Champalimaud vinham de Limoges, da França profunda da Nouvelle Aquitaine, terra de cobres e porcelanas – e de pintores, como Renoir –, os Sommer eram originários da Vestfália alemã. Ao contrário dos Champalimaud, escorados no Ancien Régime e servindo a coroa portuguesa contra os invasores napoleónicos, Heinrich Franz Ludwig von Sommer tinha chegado a Portugal na leva dos combatentes liberais – voluntários e mercenários – que, vindos dos Açores, desembarcaram em Pampelido, a 8 de Julho de 1832, para lutar, em nome da liberdade, contra o rei absoluto, D. Miguel I.

Os Sommer são uma família tradicional, de pergaminhos antigos, ligada aos duques de Brunswick, à casa de Hanover e à indústria do ferro. Em Portugal, continuaram o negócio do ferro e dos metais através da casa Sommer & Companhia. Anna de Araújo Sommer era filha de Henrique Luís Sommer e neta de um dos “Bravos do Mindelo”.

Com a união à família Sommer, Carlos Montez Champalimaud alargava também as suas actividades empresariais, entrando para a sociedade comercial financeira da família, com grandes projectos de urbanização em Lisboa, como a construção do novo arsenal do Alfeite. A sociedade tinha interesses na África portuguesa, com a Companhia Geral de Construções, pioneira na área da engenharia e construção em Angola, onde Carlos, que mantinha boas relações com o Governador-geral, Norton de Matos, se desloca pessoalmente.

Em 1919, Carlos Champalimaud adquiria a Quinta da Marinha, colada a Cascais. Mil e trezentos hectares de matagal e pântanos numa área privilegiada de Cascais à Malveira da Serra, sempre junto ao mar.

O primogénito de Carlos e Anna tinha nascido em Lisboa no dia 19 de Março do ano anterior, numa Europa em guerra e num Portugal que vivia os tempos da experiência sidonista.

A 27 de Setembro Salazar é substituído em S. Bento por Marcello Caetano. Apesar de se presumir sempre que a justiça seja independente, António Champalimaud sabia que, enquanto Salazar era invulnerável a pressões, o mesmo não podia dizer-se do seu sucessor. E que na entourage familiar de Marcello Caetano tinha grandes rivais e inimigos.

As raízes estrangeiradas do futuro grande industrial seguiam uma constante já verificada em relação a outros pioneiros da banca e da indústria do século anterior. As alianças familiares também repetiam padrões da sociedade portuguesa desde os finais do Ancien Régime: famílias tradicionais, senhoras da terra, a que o fim dos vínculos fora empobrecendo e fragmentando o património, mas que se aliavam por casamento a famílias novas, burguesas, ou a imigrados de nações “mais civilizadas” – ingleses, alemães, franceses. No Norte, eram comuns as alianças dos ingleses ligados ao vinho do Porto, ao comércio ou à navegação com as “filhas da terra”, as meninas de linhagem tradicional do Norte, deslumbradas com a mise en scène de suposta superioridade civilizacional e social de que os ingleses expatriados se faziam sempre acompanhar. A constância e a renovação dos apelidos entre os sócios de clubes tradicionais, como o Turf e o Tauromáquico, de Lisboa, ou o Club Portuense, do Porto, ilustram bem a evolução e a resiliência de uma sociedade periférica em relação à “Europa”, que procurava a sobrevivência através de uma cooptação prudente mas constante.

[…]

Do primeiro exílio

É no meio de toda esta actividade e crescimento que sobre ele caem, como uma mão negra do destino, as consequências do processo-crime no caso da herança Sommer. Em Junho de 1968 – ainda com Salazar no Governo – a Polícia Judiciária solicita à Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), que tinha também o controlo das fronteiras, que interdite a sua saída do país. António Champalimaud reage e pede autorização para se “deslocar a Moçambique e a Angola para negociações que interessam à economia nacional”. Como se tratava de território nacional, o pedido é deferido. Só não pode regressar por Joanesburgo, como sempre fazia.

Mas o cerco aperta nos meses seguintes e a 27 de Setembro Salazar é substituído em S. Bento por Marcello Caetano. Apesar de se presumir sempre que a justiça seja independente, António Champalimaud sabia que, enquanto Salazar era invulnerável a pressões, o mesmo não podia dizer-se do seu sucessor. E que na entourage familiar de Marcello Caetano tinha grandes rivais e inimigos.

António Champalimaud em Alhandra, na inauguração do forno da cimenteira, com a mãe e os filhos: Cristina, Manuel, Luísa, José, António Carlos. Em baixo: Luís e João

Tem um barco – o Freelander – e um avião, mas supõe-nos vigiados. Tinha de conceber um plano alternativo que o pusesse longe de um sistema que agora pressentia hostil e com influências que o neutralizavam.

Talvez Marcello Caetano não tivesse, pessoalmente, nada contra ele, mas intuía que à volta do novo Presidente do Conselho se movia uma corte de inimigos seus: o novo ministro da Economia, João Dias Rosas, que lhe faria a vida negra na guerra do BPA; Rogério Martins, o todo-poderoso Secretário de Estado da Indústria, vindo do Grupo CUF; Torres Campos, Director Geral dos Serviços Industriais. E, com razão ou sem ela, estava convencido que por trás deles estariam, como inspiradores, Manuel Queiroz Pereira, com quem cortara relações há muito, e os Mello – os cunhados, “os meus cunhados”. Queiroz Pereira era primo por afinidade de Marcello Caetano e os Mello estavam, há muito, de boas relações com o novo Presidente do Concelho.

Ao temperamento decidido e pertinaz de António Champalimaud agradava mais a decisão e a constância de Salazar do que a reflexão hamletiana de Caetano. Para Champalimaud, um Estado que concentrava poderes no Executivo, como o Estado Novo, não podia nem devia ser governado por uma personalidade indecisa.

A 10 de Fevereiro de 1969, ao meio-dia, é emitido um mandado de captura contra ele. Champalimaud não queria correr o risco de ser preso, não porque se sentisse culpado, mas porque sabia que, atrás das grades, não poderia governar o grupo, que estava em fase crucial de crescimento.

Cogitava por quanto tempo ficaria detido, o que, a suceder, poderia desmoralizar o meu Grupo e arruinar os meus negócios.

Nesse mesmo dia 10, António sai do escritório, na Rua Braamcamp, e vai a casa do seu irmão Henrique: “Fomos os dois pronunciados. Vem comigo”, diz-lhe. Mas Henrique não foi e acabaria por ser preso. António já tinha preparado tudo para sair de Portugal. Pusera um jovem advogado da Empresa de Cimentos de Leiria, Daniel Proença de Carvalho, a estudar, para eventual destino, o país que melhor garantisse a sua não-extradição, e traçara com os genros um plano de fuga. Luís Lino cruzaria os ares para o apanhar, Luís Pombal atravessaria a planície alentejana para o entregar. O ponto de encontro seria uma pista esquecida no meio da Amareleja.

"As afeições de sempre nunca me falharam", disse

Na véspera, Champalimaud dormiu na quinta de Santa Maria do Covão, em Pinheiro de Loures, em casa de António Pereira Coutinho, tio de Luís Pombal. Fazia tudo parte do plano. Pombal tinha ido à Rua de Santo António à Estrela buscar o carro de um outro tio, irmão do pai, que vivia em Angola. O carro estava ali parado e o tio tinha-lhe pedido para, de vez em quando, dar uma volta com ele. Era um Morris verde. No dia seguinte, Luís, Luísa e António foram direitos de Loures à Amareleja, sem parar, nem para meter gasolina. Entretanto, Luís Lino e Cristina Champalimaud, no aeródromo de Tires, preparavam-se para embarcar no Piper Cherokee Six:

Naquele dia o Luís disse que tínhamos que sair depressa. Eu perguntei-lhe: Onde é que nós vamos? E ele disse: Não interessa. Pega numa mala, se fazes favor, e vamos já para o avião. Fomos para Tires e partimos numa avioneta que era do Luís e do Zé Vaz Pinto, duma empresa deles de mármores do Algarve. Era 13 de Fevereiro de 1969. Estava um temporal desfeito. Tínhamos que aterrar no meio do temporal e a pista praticamente não se via, porque era tudo lama.

Enquanto Cristina e Luís sobrevoavam o lamaçal quase às cegas, cá em baixo, António Champalimaud, Luísa e Luís Pombal saíam do Morris que os levara até ali e esperavam que a avioneta aterrasse junto da casa do guarda da pista. Conta Luísa Champalimaud:

O Lino não conseguia dar com o sítio… passava para lá, passava para cá e não nos via. Então fui a correr até à casinha do guarda, onde estavam ele e a mulher a tomar o pequeno-almoço numa mesa com uma toalha aos quadrados encarnados. ‘Preciso dessa toalha!’ E eles: ‘A mulher é louca, ela é louca!’ Ela puxava dum lado, eu do outro… Então, espreitei para o quarto deles… e não é que a manta daquele casal de velhotes era encarnada? Agarrei-me à cama, tirei a manta, fui ter com o meu marido e disse: ‘Puxe por aí, que eu puxo por aqui!’ E pusemo-nos a abanar a manta até que o Lino nos visse e conseguisse descobrir a pista.

António Champalimaud é agora “António Cabral”. Sai de Sevilha para Madrid, num voo da Ibéria, e de Madrid para o México, via Nova Iorque, com o novo passaporte falso. Proença de Carvalho, depois de investigar os regimes legais dos países da América Latina mais favoráveis a que Champalimaud se fixasse a salvo de um mandado de captura internacional, elegera o México.

O aeródromo tinha duas pistas e Luís Lino, vendo várias pessoas junto à casa do guarda a agitar uma manta encarnada mas não sabendo exactamente quem eram, resolveu, por precaução, aterrar na pista que ficava mais longe, para a eventualidade de ter de voltar a levantar. O Morris em que seguia o sogro dirigiu-se então para a avioneta. Cristina saiu e António entrou. As filhas, Luísa e Cristina, despediram-se, com um beijo, do pai: “Vocês usem tudo aquilo que é meu, filhas, mas eu quero-vos dizer: sou inocente.” – “Quanto tempo, pai?” – “Não sei, filhas, muito tempo.”

Dois dias depois da partida de Champalimaud, o comandante do posto da Amareleja comunicaria aos superiores o que o guarda da pista de aviação lhe fizera logo saber: que no dia 13 de Fevereiro de 1969 aterrara ali uma avioneta da qual descera uma senhora de “aproximadamente 25 anos” e para a qual subira “um indivíduo de aproximadamente 60 anos”, que chegara uma hora antes às imediações num Morris. O piloto da avioneta “não abandonara a carlinga para pôr o visto”, como era hábito. A informação transmitida por carta do quartel-general da GNR para a sede da PIDE, dizia ainda que “após aturadas diligências” se reconhecera António de Sommer Champalimaud e se descobrira o nome do dono da aeronave, José Vaz Pinto da Fonseca Pereira e Castro, de Lisboa, que registara no seu diário de navegação um voo de Tires para Sevilha no dia 13/2/69. O piloto seria Luís de Vasconcelos e Sousa Lino.

O curioso é que tendo este relatório chegado à PIDE, a PIDE tenha respondido no mês seguinte ao Tribunal que não tinha conhecimento de que Champalimaud tivesse saído do país. Luís Lino chegou a ser interrogado pela PIDE: fora ele o piloto que aterrara na Amareleja? A descrição do avião coincidia. Em resposta, Lino levara-os ao hangar onde estavam dez aviões que correspondiam à descrição:

Não havia provas nenhumas de que tinha sido eu. De que tinha ido a Sevilha, sim, agora de que tinha parado na Amareleja, não… Mas eles também não me pareceram especialmente interessados em tirar aquilo a limpo.

As discordâncias e rivalidades entre a Judiciária e a PIDE não eram novas.

António Champalimaud é agora “António Cabral”. Sai de Sevilha para Madrid, num voo da Ibéria, e de Madrid para o México, via Nova Iorque, com o novo passaporte falso. Proença de Carvalho, depois de investigar os regimes legais dos países da América Latina mais favoráveis a que Champalimaud se fixasse a salvo de um mandado de captura internacional, elegera o México. E é a partir do México que António vai organizar a nova logística e partir para novos empreendimentos. […]

Do recomeço no Brasil

Eu era, comparativamente, um miúdo. Fiz 30 anos no Rio de Janeiro e estava a escrever o Portugal os Anos do Fim, com a ferida aberta do fim do Império, que acabara de ver de perto. Por isso, a toada em que quase todos embarcávamos tinha muito de Finis Patriae. Naquele ano de 1975-76, a Zezinha e eu passámos uma meia dúzia de fins-semana em Vespasiano. Depois, quando a Zezinha foi para Portugal (estava à espera da nossa filha Catarina e já no limite do tempo para poder viajar de avião) fiquei no Rio, sozinho, só com meia dúzia de amigos, também exilados. Entre Vespasiano, o escritório e as vezes que jantámos juntos, António Champalimaud e eu falámos de tudo e mais alguma coisa.

Na colina a montante da SOEICOM, onde vivia, havia qualquer coisa do espírito dos pioneiros. Era uma casa modesta, pequena e austera, que tinha como únicos sinais exteriores de alguma riqueza uma piscina de grandes dimensões no meio do nada, insólita como um cenário de Alphaville, uma biblioteca com clássicos bem encadernados em prateleiras despretensiosas e um jogo de malas Vuitton, esgueirando-se de um guarda-fatos rústico.

À noite, sentávamo-nos no alpendre à conversa. Numas gaiolas de bambu, penduradas nas colunas da casa, havia umas aves pretas de bico amarelo, talvez urupitingas, que António Champalimaud alimentava à mão com insectos.

Passara como um cometa por uma vida feita de altos e baixos, de ascensões e quedas, uma vida longa, nunca serena, nunca sossegada, rica em combates, derrotas, vitórias

Tinha a ousadia das generalizações impulsivas e gostava de réplica. O interessante da conversa com Champalimaud era a sua curiosidade ecléctica, a sua inteligência intuitiva, a sua cabeça independente, a forma como passava depressa e bem da discussão teórica dos princípios aos exemplos práticos que os suportavam ou contrariavam.

[…]

Eu ia ouvindo, discutindo, acrescentando mais qualquer coisa, pensando duas vezes antes de acender um cigarro, mesmo fora de portas. Na altura, as voltas do fumo do cigarro acompanhavam quase todas as conversas, sobretudo as mais digressivas, mas não com António Champalimaud, que era um antitabagista feroz, a ponto de não ter sequer cinzeiros em casa, o que então era raro, se não insólito. De qualquer forma, respeitava-o nisso, ao contrário da Zezinha que lhe dizia: “António, tenha paciência, mas se eu não puder fumar um cigarro de vez em quando não conte comigo”. […]

Do juízo final

Passara como um cometa por uma vida feita de altos e baixos, de ascensões e quedas, uma vida longa, nunca serena, nunca sossegada, rica em combates, derrotas, vitórias: do miúdo à solta na Quinta da Marinha ao aluno enclausurado no Colégio de La Guardia; do adolescente às voltas no poço da morte ou, pelos ares, de avioneta, ao rapaz de 19 anos que levanta as empresas do pai; do estratega dos cimentos ao pioneiro da siderurgia; do exilado ao retornado. “Como tinha uma têmpera de aço e de cimento – diz o seu filho Manuel – andou sempre por cima de dissabores e obstáculos que levariam muita gente ao chão.” Às batalhas dos negócios, com competidores e com governos, juntaria outras, mais amargas, com os irmãos e com a família, e um casamento desfeito. Paixões fundas, aventuras, longos domingos no mar, grandes caçadas africanas, fazendas no Brasil, muitos livros, uma colecção de arte construída pacientemente entre Londres e Paris, uma das mais belas casas de Lisboa, com Canalettos, Guardis e Bouchers. À entrada, um par de mouros venezianos empunhando tochas, “mandados fazer por Luís XIV.”

Tivera uma vida inquieta num tempo de transformação de Portugal e do mundo. Transformações a que assistiu, algumas em que participou, outras de que foi vítima.

Assistiu à passagem do país da Primeira República para as políticas de melhoramentos e obras públicas do Estado Novo; participou nas batalhas da industrialização dos anos 50 ao lado dos partidários da indústria e na redescoberta e valorização dos grandes espaços africanos. Sempre na linha da frente, sempre pioneiro, às vezes contra tudo e contra todos. Os anos de exílio, no México e pelo mundo, e as batalhas jurídicas do processo de que foi réu não o demoveram. Não era de desistir, sempre considerara a vida uma luta e as dificuldades estimulavam-no. E dificuldades não lhe faltariam.

Sofreria depois o “confisco” dos seus bens às mãos dos revolucionários de Abril e a perda de dimensão territorial e política de Portugal. Seria um dos principais alvos da sanha revolucionária, que o pintaria como “sabotador económico” ou como o “convidado ocioso da existência” que nunca fora nem seria.

Tinha uma visão orgânica do país, olhando, ao modo dos conservadores, a nação e a sociedade como corpos vivos, com vida colectiva, e sabia bem o que é que do passado estava morto e o que é que permanecia vivo na mudança.

Acabou por refazer fortuna no Brasil. Foi lá que encontrou vivo o Portugal com que sempre quisera identificar-se: um Portugal arrojado, aventureiro e fazedor, de olhos postos nos grandes espaços para superar a pobreza e a pequenez, movido por coisas tão diferentes e antagónicas como a Fé e a Cobiça, Deus e o Ouro, a curiosidade científica e a corrupção daninha, a arte de navegar e combater e a rotina do privilégio, mas que deixara obra feita. Num tempo de desolação nacional, fora no Brasil, dizia, que encontrara a verdadeira imagem da obra e da epopeia dos portugueses e que convivera, a cada passo, com a grandeza de Portugal. Era esse Portugal e esses portugueses que o inspiravam e lhe serviam de motor.

Voltou depois em jornada de reconquista, com determinação e sem se perder em ressentimentos. Sempre fizera lutos rápidos. Sabia que o passado estava passado e não queria ficar seu prisioneiro. Tinha uma visão orgânica do país, olhando, ao modo dos conservadores, a nação e a sociedade como corpos vivos, com vida colectiva, e sabia bem o que é que do passado estava morto e o que é que permanecia vivo na mudança.

Reconquistou património num Portugal que se refizera, no cavaquismo, do susto revolucionário. Sem alterar ideias ou convicções, acabou por se integrar na nova sociedade ou por ser integrado por ela. E até admirado, mesmo pelos novos líderes dos Estados africanos, que começavam a reconhecer a sua acção pioneira: em meados dos anos oitenta, Samora Machel chegara a sondar Daniel Proença de Carvalho, por intermédio de Aquino de Bragança, sobre um possível regresso de Champalimaud à actividade industrial em Moçambique.

Era, nos primeiros anos do terceiro milénio, a primeira fortuna portuguesa e, segundo a Forbes, a 153ª do mundo. Se olharmos as histórias pessoais e familiares dos homens e das dinastias bancárias ou industriais do século XIX europeu e americano vemos repetirem-se, nos seus fundadores, duas características: audácia na condução dos negócios e prudência na gestão do património. Champalimaud, “industrial de velha cepa”, personificava, no séc. XX, essas mesmas qualidades. […]

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