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"Nayola": a primeira longa-metragem de José Miguel Ribeiro é o desenho vivo de uma tragédia angolana

Um retrato da guerra civil de Angola na voz de três mulheres, que demorou 9 anos a ser feito e que se estreia esta quinta-feira. Falámos com o realizador, sobre o filme e a animação portuguesa.

Nove anos. Em nove anos muito pode acontecer. Ter filhos, comprar uma casa, mudar de emprego ou de vida. O realizador de animação José Miguel Ribeiro, da Praça Filmes, demorou quase uma década a fazer a sua primeira longa-metragem, “Nayola”, que se estreia esta quinta-feira nas salas de cinema em Portugal. Estreou no festival Monstra, já venceu mais de uma dezena de prémios, entre os quais, o Prémio do Público na Mostra de São Paulo. Portanto, está tudo bem com isso. Houve tempo para tudo. Para trabalhar com equipas de países diferentes, de França a Holanda. Para conseguir um financiamento de três milhões de euros. Para investigar, produzir e sentir uma cultura, em conjunto. Uma cultura que não era a do cineasta.

Em pouco mais de uma hora, viajamos até à guerra civil angolana, inspirados pelo livro Caixa Negra, de José Eduardo Agualusa e Mia Couto, para conhecer a história de três mulheres. Mãe, filha e avó da mesma família que se parte durante a guerra. A mãe procura o pai, a filha procura os dois, a avó aguenta o barco. São elas as protagonistas de um conflito que só terminou em 2002 e ainda hoje procura fechar as feridas que deixou abertas entre os angolanos. O filme, sempre metafórico, minucioso na cor, no traço e nas diferentes técnicas, vive de mãos dadas com a natureza e os animais, tem, por detrás, protagonistas de carne e osso, entre rappers e antigos combatentes. “É um filme angolano, sem dúvida. Há uma riqueza que ganhei nesta procura e investigação de um país, que me completa mais do que quando comecei o filme. Não me senti parado, senti-me ligado à vida. Sinto-me bem com esses nove anos. Estou com vontade de continuar”, confessa José Miguel Ribeiro numa conversa com o Observador.

[o trailer do filme “Nayola” que se estreia em Portugal esta quinta-feira:]

O realizador, que começou o percurso na animação quando, nos anos 90, realizou um estágio franco-português, saltou logo para a ribalta em 1999 com o seu “Suspeita”, ao vencer o Cartoon d’Or 2000, um dos mais prestigiados prémios da área na Europa. Realizou uma série de animação, continuou a sua travessia por África com curtas-metragens como “Viagem a Cabo Verde” e, depois de ter começado a produtora Sardinha em Lata ao lado de Nuno Beato, criou a Praça Filmes em 2012, em Montemor-o-Novo. A ligação com o continente africano, explica, vem do pai, que combateu na Guiné Bissau e regressou com stress pós-traumático. Curiosidade por países que só conhecia através de fotografias, aliada a uma consciência que foi amadurecendo com o passar dos anos sobre a dureza de períodos como o da guerra colonial, puxaram José Miguel Ribeiro para estas histórias. “Começamos a descobrir que, por detrás das imagens encantantórias, está uma realidade terrível quase escondida em Portugal. Os soldados que vieram da guerra colonial foram ignorados. É a sensação de viver uma dor sozinho, de que foram os únicos que lá estiveram. Mas quando conhecemos as histórias percebemos que foi uma doença nacional que deixou marcas em várias gerações”, diz.

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José Miguel Ribeiro tem ficado surpreendido com a reação a “Nayola”, especialmente por quem se sente representado neste projeto, como as mulheres angolanas. Espera que o filme contribua para uma discussão entre Portugal e Angola, deitando por terra estereótipos, por vezes “paternalistas”, de um país para o outro. Porque se o filme tem beleza, tem também desgraça. Se tem misticismo, tem também morte. Tem a realidade animada da guerra que pode ser mais fácil de ver na tela, mas não deixa de destapar o que foi sendo escondido e ignorado ao longo de diferentes gerações. São, por isso, duas faces da mesma moeda que ainda não ocupa lugar no discurso nacional. Mas desengane-se quem ache que, por ser um filme angolano, não pode ser universal. “Angola tem uma juventude comprometida que tenta mudar o país. Fazem-no todos os dias, talvez até mais do que na Europa. Um dia ainda nos vão ensinar como é importante não baixar a guarda e manter-nos empenhados na defesa dos direitos universais”, finaliza.

José Miguel Ribeiro, 57 anos, é um dos mais premiados realizadores do cinema de animação português. Estreou-se em 1994 com a curta-metragem "Ovos"

Há várias formas de lidar com a morte. As três protagonistas do filme fazem-no sempre com uma ligação espiritual à natureza. Quando deu conta desta ligação? E como se explica?
A peça de teatro do José Eduardo Agualusa e do Mia Couto resume-se mais ao presente do filme. E esse presente, que tem uma dimensão simbólica, é mais realista, agarrado ao pós-guerra, de uma família que vive ainda com os efeitos do conflito na sua vida. Mas toda a viagem da “Nayola” no passado é mais simbólica. O Pepetel é que cunhou esse termo: realismo animista. Na América latina existe o realismo mágico. Encontrei esse realismo animista nos livros do Mia Couto. Por exemplo, no “Confissões da Leoa”, onde o Mia me contou que a história é baseada num acontecimento que ele acompanhou: uma leoa que andava a matar pessoas numa aldeia. Mas as pessoas diziam que o animal vinha buscar os maus da fita. Fazia sentido. Quem tinha de ter medo era quem tinha andado a tratar mal as pessoas da aldeia, neste caso, as mulheres. Fui descobrindo, através dessas obras, bem como com outras investigações e conversas que tive, a dimensão da morte em África, que não é a mesma do que na Europa. Numa sociedade animista, a morte quase nem existe. A questão da morte nem se coloca. As pessoas estão vivas, o corpo desaparece, mas o espírito continua ao lado dos vivos. A morte não é uma separação, tal como é vista no ocidente. Podemos ligar-nos aos outros elementos da natureza. Continuamos próximos. A descoberta dessa dimensão, de uma ideia de continuação, influenciou as tomadas de decisão no filme. Daí haver uma visão mais kartesiana, que pode deixar o público mais perdido, mas, também, essa, talvez nem seja a questão essencial.

A ideia da morte casa bem com a animação? Pensar o contrário é preconceito?
Sim, podemos explorá-la. O real é representado, já não estamos nesse domínio. Voltando à pesquisa que fiz, essa dimensão liga-se também a outra que é a da ligação do homem ao meio-ambiente, que nós, no Ocidente, já não temos. O Mia contou-me que as línguas tradicionais em Moçambique não contêm a palavra “natureza”. Porque a natureza não é algo que se nomeie, não a veem fora deles, é uma palavra inútil para a sua existência. E aí percebe-se como se sentem ligados a isso tudo. Também descobri a dimensão poética dessas línguas originais, de como são construídas, como o quimbundo ou umbundo. Notei isso quando traduzia algumas palavras e algumas pessoas no filme descreviam-nas de forma diferente. A língua não é exata, é quase poética. Deixa aberta a possibilidade de interpretação. E essa mesma poesia é um reflexo da sociedade do interior de Angola ou de Moçambique. As pessoas usam muito a metáfora, é um elemento do dia-a-dia. Não está só nos livros. Os mais velhos quando dão conselhos, não dizem diretamente o que têm de fazer, usam metáforas para que busquem as respostas. Todas estas descobertas, que para mim fazem parte dessa forma de viver africana que nós não conhecemos assim tão bem, serviram de motivação para fazer o filme. Há várias interpretações. O filme é aberto, tenho tido surpresas belíssimas de pessoas com interpretações diferentes. Por exemplo, quando me perguntam o que é o chacal [um animal que surge em “Nayola”], eu respondo: preferia não responder para não condicionar.

"Preferi focar-me na sobrevivência das famílias em tempos de guerra. As famílias são esquecidas. É extremamente complexo mantê-las unidas e funcionais no meio de uma guerra, que separa pessoas, que deixa órfãos, que afasta os pais. A família é uma estrutura que começa a cair na guerra."

Têm tido assim tantas respostas diferentes?
É engraçado, o chacal já tem duas leituras. Há quem diga que o chacal é o marido que a Nayola perdeu, há quem ache que é a Nayola. O chacal funciona como o mascarado que está dentro de casa. Não sabes quem é, estás sempre na dúvida se é o pai ou a mãe. Há essa dupla interpretação. Essa dicotomia cria uma ligação entre as duas histórias.

O José decidiu regressar a este período da guerra civil em Angola através de três mulheres, quando estamos mais habituados a olhar para temas semelhantes através a memória masculina…
Quando falamos da guerra em Angola não estamos longe da verdade. Há um livro genial, da Margarida Paredes, Combater Duas Vezes. É uma tese de doutoramento para a qual ela entrevistou várias mulheres da UNITA e do MPLA. Deu-me consciência de que as mulheres estiveram envolvidas na guerra já na fase dos portugueses, na guerra da Libertação, onde existiam grupos militares só do sexo feminino. O parlamento angolano, por exemplo, tem valores de participação de mulheres de quase 40%. E isto nem é conseguido com quotas, foi uma conquista que a mulher conseguiu pelo seu compromisso com a política no país. Aconteceu tanto no MPLA como na UNITA. Se a mulher está tão presente, e apesar de o filme não ser sobre a frente da batalha, preferi focar-me na sobrevivência das famílias em tempos de guerra. As famílias são esquecidas. É extremamente complexo mantê-las unidas e funcionais no meio de uma guerra, que provoca separações, que deixa órfãos, que afasta os pais. A família é uma estrutura que começa a cair na guerra. A rapper angolana Medusa, que dá voz à filha, uma das protagonistas, disse-me que em Angola se trata a avó como “mãe”. A mãe é tratada pelo nome. E no “Nayola” a mãe desaparece, é a avó que assume esse papel.

Tem alguma ligação familiar que o puxe para estes temas?
Essas ligações começam com fotografias do meu pai que combateu na Guiné Bissau. Tenho um álbum feito à mão pela minha mãe, com fotos dele pendurado em árvores com macacos ao lado. É uma imagem algo romântica da guerra colonial porque, na verdade, os soldados portugueses trouxeram objetos para Portugal e os filhos deles, como é o meu caso, cresceram com esses elementos. Não são distantes, mas não sabemos de onde vêm. Nem o seu contexto. Depois, cresce-se e percebe-se que se está ligado a uma guerra injusta contra um povo que queria tomar a sua liberdade e as suas decisões. Ficamos amargurados ao ver que o nosso pai lutou do lado errado. Era uma guerra que nunca poderia ser ganha. O que está errado é o que está por detrás. Claro que estávamos perante uma ditadura fascista e muitos como o meu pai não foram para a guerra porque queriam. Foram obrigados. Quem não foi, foi quem fugiu ou encontrou outras soluções. Todos os portugueses da minha geração cresceram com esta espécie de mistério à volta das suas vidas, sobre países distantes, sem percebermos bem o que fizeram lá os nossos pais. A minha curiosidade é quase a mesma que me surgiu com o cinema de animação. Sobre como era feito, como os bonecos ganham vida. É olhar para estas duas curiosidades com um olhar quase irrealista, de sair à rua e não ver nada daquilo. Acaba por ser uma ligação quase emocional, uma atração por elementos que me são afetivos. Cresceram comigo.

Para encontrar respostas, também.
Sim. As minhas perguntas surgiram mais tarde, quando comecei a ver o meu pai afetado pela guerra, com stress pós-traumático, que retratei no meu filme anterior, o “Estilhaços”.  Comecei a descobrir que, por detrás das imagens encantantórias, estava uma realidade terrível, quase escondida em Portugal. Os soldados que vieram da guerra colonial foram ignorados. Compreendo, havia uma democracia recente, havia um país para construir, era preciso olhar para o futuro. Não deixou de criar um abandono daquelas pessoas todas e das suas famílias. É que nem sequer houve apoio médico para enfrentar estas doenças psicológicas que nem se sabia o que eram. Dizia-se: “O teu pai veio com os nervos lá de Angola”. Eu não sabia o que isso era. Achava que era o nervo do bife que a minha mãe me pedia para tirar. Andávamos à procura dos nervos… mas tiravam-se? Não. Percebíamos, anos mais tarde, que era uma doença crónica, que não se cura, mas que se trata. Houve imensa gente que nunca foi tratada. É um problema e um sofrimento enorme que nunca foi quantificado e falado. Quando mostrei esse filme, houve quem viesse ter comigo a Montemor-o-Novo a dizer que, afinal, o que aconteceu na sua família não foi caso único. É a sensação de viver uma dor sozinho, de que foram os únicos que lá estiveram. Mas depois percebemos que foi uma doença nacional que deixou marcas em várias gerações.

Um angolano que tenha visto o “Nayola”, que reação é que tem?
O filme esteve em Angola há quatro semanas. Estivemos em várias regiões, continua em sala. Nessas apresentações, andámos com uma das atrizes, a Medusa, e a reação tem sido muito emocional. Sentem o filme de forma muito intensa, agradecem-me. Sentem como sendo seu, angolano, especialmente as mulheres. Uma janela de visibilidade para o que passaram em silêncio. Esta dimensão em que não havia comida, um sofrimento normalmente ignorado mesmo na guerra civil. As pessoas dizem que é um filme angolano.

O que é que isso o faz sentir?
Acima de tudo, faz-me sentir muito bem. Esse foi sempre o meu desafio. Há nove anos, a questão de legitimidade não era tão central, agora sim, e ainda bem. Percebi que se não fizesse um filme angolano não valeria a pena. É uma história angolana com personagens angolanas. Sou eu o realizador, mas a narrativa vem de autores africanos. Não fiz o filme sozinho, felizmente, encontrei os atores angolanos certos. Encontrei a Elisangela, que faz spoken word, o Raúl, que combateu na guerra civil. Não foram pessoas que vieram só ler um argumento em Portugal. Nós retrabalhámos os diálogos todos, para se sentirem confortáveis e trazerem contribuições que não estavam no guião. O poema que a Elisangela diz no filme é dela, não foi escrito pelo Agualusa ou pelo Mia. Quisemos criar um momento de intimidade, para um lado mais longe da guerra e mais próxima da humanidade. Essa conversa com uma das personagens é criado por ela e por um relato do Raúl de algo que lhe aconteceu durante a guerra civil, quando achava que ia morrer. O filme é angolano porque os angolanos ajudaram a fazê-lo. As expressões são de lá, reajustámos o texto todo para ser de lá.

"A guerra civil é muito recente, as pessoas ainda não conseguem ter um distanciamento. Mas é uma dor presente, tal como aconteceu com a guerra colonial. Senti que em Angola, voltar à guerra civil, a partir do filme, foi emocional. As pessoas também se riram, nunca tive reações tão intensas como naquele país."

Falemos desses nove anos que demorou a ser feito. Quando se virou para os produtores de países como Bélgica ou Holanda, eles reagiram bem à ideia de estar a fazer um filme africano?
Foi preciso muito tempo para encontrar os parceiros certos, que estão ligados às curtas-metragens, estão ligados à animação pela paixão. Senti-me sempre muito acompanhado e compreendido. Nunca tive de provar nada, depositaram em mim a confiança para decidir. Houve sempre espaço para diálogo. Todos queriam fazer o filme mais genuíno possível. Eu, não sendo angolano e mulher, tinha, à partida, todas as condições para correr mal. Mas a grande vantagem de fazer cinema é que é um trabalho colaborativo. Há realizadores que gostam mais de trabalhar uma equipa numa direção apertada; eu gosto de descobrir o filme com as equipas. Não sei bem qual será o resultado final e esse é o meu gozo. E essa é uma descoberta colectiva. Também é por isso que o filme demorou tanto a fazer. Por exemplo, a Catarina Gil, que é minha assistente de realização, foi a minha garantia do olhar feminino, aprendi muito com ela. Quando havia uma cena em que lhe perguntava como é que ela via e se ela concordava, achava que estava a ir bem. Vemos o mundo através do nosso umbigo, ou seja, é normal que um europeu olhe para África e não veja o continente real. É normal. Vê a partir do seu olhar. Também é verdade que o mais interessante na criação artística é ver o mundo de diferentes formas. Esse é o grande exercício. Poder questionar-me e mudar. Soube-me muito bem. Esse exercício ficou-me, até para a vida pessoal, para me questionar mais. Porque se não pensar, é fácil perpetuar formas de olhar muito pouco progressistas e agarradas a uma herança colonial e machista. Que, aliás, está quase invisível porque não temos disponibilidade e energia para despender esse esforço.

Quanto a esse esforço, a avó no “Nayola” diz que o marido foi morto por portugueses. É das poucas referências a Portugal. Acha que, quando o filme se estrear, vai abrir um certo diálogo no país? Estamos a falar de um tema invisível na sociedade portuguesa, que levanta ainda muitas fricções, como diz?
Muitas vezes, o que nos impede de ver a realidade é a dificuldade de sair dessa visão mais realista. Quando estás a ver um filme, deixas-te conduzir, deixas de estar tão reativo. Em Angola, ajudou o filme ser de animação, a olhar para a guerra civil, a ter uma visão de uma certa positividade e reflexão que lhes traz algum conforto. Tive uma pessoa que se levantou numa sessão, um homem com 20 e poucos anos, que me agradeceu pela partilha e que o tinha ajudado a voltar a fazer a viagem da sua infância. A seguir, saiu. A guerra civil é muito recente, acabou em 2002, as pessoas ainda não conseguem ter um distanciamento. Mas é uma dor presente, tal como aconteceu com a guerra colonial. E que acontecerá com a Ucrânia, também, penso. Senti que em Angola, voltar à guerra civil, a partir do filme, foi emocional. As pessoas também se riram, nunca tive reações tão intensas como naquele país. Dá para libertar o ridículo de andarem todos a lutar contra os outros, quando, na verdade, querem todos a mesma coisa. As razões de início do conflito perdem-se com a continuação da guerra.

Em Portugal, o filme poderá ser recebido com uma maior distância?
Acho que sim. Espero que contribua para compensar alguns estereótipos que temos em relação a África. Falando da nossa relação com Angola, acabou com a independência, muitos portugueses voltaram. O que se fala hoje vem com alguma nostalgia e amargura, sobre um país que está destruído, sobre o sofrimento das pessoas. É um certo lado paternalista que me parece excessivo. Ao mesmo tempo que falo da beleza natural, da ideia romântica de Angola, uma beleza que não se consegue igualar na Europa, também há o lado dos desgraçados, da fome e da guerra. É sempre esta dicotomia. Mas trouxe a Medusa, que é uma rapper, que podia estar em Lisboa ou em Paris a defender os direitos humanos. Está em sintonia com os valores das gerações mais jovens em qualquer parte do mundo. Não se conforma. Sai para a rua à procura de um sentido para a sua vida. E essa é uma riqueza enorme que o país tem: uma juventude comprometida — especialmente as mulheres — que tenta mudar aquele país. E fazem-no todos os dias, talvez até mais do que na Europa. Porque recebemos países que já têm democracia instalada, lá não, é uma luta diária. Se calhar um dia ainda nos vão ensinar como é importante não baixar a guarda e manter-nos empenhados na defesa dos direitos universais.

Tinha mesmo de demorar tanto tempo a construir este filme? Quem esteja agora a pensar em fazer uma longa-metragem, olha para o caso e pode pensar: se o José demorou este tempo todo, o melhor é não me meter nisto…
Demorei nove anos porque me envolvi numa história que não era minha. Nos meus filmes anteriores, parti sempre de narrativas próximas de mim. Quando não conhecemos, ou continuamos em frente, ou fazemos o trabalho de casa: investigar, ler os escritores, ouvir a música. Perceber o movimento do rap, acompanhar o que aconteceu ao Luaty Beirão, quando estávamos a produzir o filme. Estive vivo, não estive parado. Os primeiros cinco anos foram precisos para fazer um filme com alguma densidade. Não queria fazer algo superficial sobre Angola, para isso já foram feitos muitos no passado. A duração, portanto, deve-se a um território desconhecido que tive de conhecer. A mim deu-me muito gozo, mas levou tempo. Mas o tempo de produção foram dois anos, a animação foi toda feita nesse período. Nove anos é a grande escala, com todas as equipas. Os primeiros cinco anos foram de muita investigação, os outros dois foram de transição, a preparar equipas, dividir o filme por partes, uma espécie de pré-produção. Foi a minha primeira longa, precisei desse tempo. Na verdade, se fosse um filme sobre Portugal, provavelmente conseguia fazer em quatro anos.

"Gosto das longas-metragens. Permitem desenvolver personagens e construir uma dimensão mais complexa das histórias. As curtas são cirúrgicas, é preciso ser-se muito eficaz. Aqui não, podemos falar de muitos temas com várias camadas."

Como é que funciona a produção de uma longa-metragem de animação?
Por causa da pandemia, já que iniciámos a produção no mês em que começou tudo a fechar em Portugal, tivemos que cancelar tudo. Tínhamos estado a arranjar casas para toda a gente ao pé do nosso estúdio, em Montemor-o-Novo. Mudámos a forma de trabalho, criámos salas virtuais de encontros diários, todas as semanas falava com todas as equipas dos vários países. Usávamos quadros brancos digitais, olhávamos todos para o mesmo desenho. Discutíamos, desenhávamos ao lado. Houve um trabalho muito virtual. Assutava-me a ideia de fazer a animação toda só num país e depois a intercalação noutro e a seguir a pintura toda num terceiro. Também gosto de pintar e animar, tento evitar ao máximo o processo de industrialização. Torna-nos máquinas e tira-nos motivação e prazer. Não queria que isso acontecesse. Dividimos o filme, tem um passado e um presente, o primeiro é desenho animado digital, o segundo é animação 3D. A viagem da Nayola, por exemplo, passa por terras e pessoas diferentes, é dividida por sequências que foram entregues a outros países. Em vez de concentrarmos os países só numa área de produção, dividimos o trabalho para que cada país fizesse três ou quatro sequências do princípio até ao fim. E com escalas pequenas, quase como se fossem curtas-metragens. Dez a vinte pessoas foram vendo o trabalho a crescer, animadores falavam com intercaladores e depois os pintores.

Mas acompanhava o trabalho diariamente ou fazia um ponto de situação mais tardio?
Dependia das equipas. Com França falávamos quase todos os dias, com a equipa portuguesa, sim, todos os dias. A minha agenda estava cheíssima, trabalhava a partir da plataforma Discord, mas era como se estivesse numa sala das nove da manhã às oito da noite. As pessoas entregaram-se muito ao projeto. A Catarina Gil diz mesmo: este é o nosso filme.

Quer repetir a experiência?
Foi bom, foi muito bom. Senti-me dentro de uma escola, aprendemos uns com os outros. A equipa francesa deu formação de 3D aos nossos animadores, por exemplo. Houve um workshop, foi apresentado o software e durante algumas reuniões havia esclarecimento de dúvidas. Foi mais do que fazer um filme, foi uma escola de formação dos profissionais portugueses e, talvez, também dos estrangeiros. Não é tão comum em França trabalhar com este tipo de diálogo. O realizador impõe a sua visão. O feedback é de prazer. Toda a gente podia trazer algo, não é tão comum assim.

Quanto à montagem financeira, que aqui está na casa dos 3 milhões de euros, é o grande quebra cabeças?
Sim. O ICA dá um milhão de euros de dois em dois anos.

Agora vão aumentar os apoios.
Ah, sim? Ainda bem. Fico muito contente. Aqui, são 500 mil euros por ano para uma longa metragem. Qualquer longa-metragem de imagem real recebe 700 mil. Este apoio para a animação, sendo de dois em dois anos, não é assim tão alto. De qualquer forma, esse financiamento do ICA é uma boa ajuda, também fomos buscar apoio ao Fundo de Apoio ao Turismo e Audiovisual. É importante porque permite-nos filmar cá, é um incentivo para ter várias equipas a produzir. Isso é que ajuda a desenvolver o país a nível cinematográfico. Só que quando olhamos para o orçamento do “Nayola”, onde ficámos com cerca de 40% como produtores, percebe-se que um filme de animação é um conteúdo muito caro e feito ao longo de muito tempo. O dinheiro, parecendo muito, não chega. São precisos parceiros, o que não me parece que seja mau. Ganha-se conhecimento e visibilidade do próprio filme porque vai estrear em diferentes países. Se o tivéssemos feito sozinhos, a probabilidade de se estrear lá fora desceria consideravelmente, até porque não estamos a falar de um filme para crianças em formato blockbuster. É preciso os parceiros concorrerem aos apoios locais, perceber as majorações dos concursos a partir da participação de cada país num filme. Se forem só cargos técnicos de estrangeiros, o apoio pode ser menor. É preciso ter um músico holandês, um sound designer na Bélgica. Não posso só ter pessoas a pintar ou a passar desenhos a limpo. Esse é um exercício de descoberta de novos talentos e de aprender a trabalhar de outras formas.

A sua carreira começou mais a sério durante um estágio franco português feito por, entre outros, por Abi Feijó. Agora temos mais formação em Portugal e as oportunidades de trabalhar internacionalmente são maiores, porque pode ser tudo feito à distância. Isto não pode levar a uma fuga massiva de talentos para fora?
O estágio que fiz aconteceu durante uma altura em que não havia escolas. Estamos a falar dos anos 90, altura em que foram formados seis portugueses e seis bretões [Bretanha, em França]. O trabalho deles foi acelerado. Quando se dá um curso e se formam pessoas, o processo de transformação é mais rápido. Se não, essa transformação só aumenta com as produções feitas. Claro que é preciso fazer o país mudar, a nível legislativo, para que sejam criadas oportunidades de trabalho. Podemos aprender com a China que, nos anos 90, era uma potência de animação que trabalhava para a Europa e os Estados Unidos da América. Produzia-se a grande escala. A China percebeu, a certa altura, que não queria ser uma prestadora de serviço e criou autores e universidades. Mas, mais importante: mudou leis, obrigou as televisões chinesas a ter produção feita lá. Havia uma quota mínima. Os estúdios começaram a ter encomendas e as escolas formaram pessoas. O ciclo fechou-se. Os filmes do Hayao Miyasaki são todos comprados pela televisão japonesa, por exemplo. Agora, claro que não temos a escala da China e do Japão, mas temos a nossa. A produção pode ser muito maior e essa é que é a falha.

"O meu filme é de autor, está a ser vendido, mas não vai mudar a economia do país nos próximos anos. As séries mais comerciais que se vendem de dois em dois anos, é aí que há um crescimento que Portugal ainda não ousou seguir. Mas tem de fazê-lo. Se somos um país forte a exportar calçado, também podemos criar novas áreas de produção nacional com qualidade."

Como se pode contornar essa falha?
O audiovisual em Portugal não tem cadeias que comercializam conteúdo do país, preferem comprar lá fora. Se não invertemos esse ciclo, consumimos os conteúdos dos outros. Temos de começar a exportar séries ou longas-metragens. O meu filme é um trabalho de autor, está a ser vendido, mas não vai mudar a economia do país nos próximos anos. Agora, as séries mais comerciais que se vendem de dois em dois anos, é aí que há um crescimento que Portugal ainda não ousou seguir. Mas tem de fazê-lo. Se somos um país forte a exportar calçado, também podemos criar novas áreas de produção nacional com qualidade. Aí as escolas são importantes, mas é preciso haver produção. Para haver produção, é preciso haver quem compre. Sem esse salto, a animação continuará a ser um espaço de criação para autores sem uma dimensão de escala de exportação. É bom que um país possa ter séries comerciais e filmes de autor, tal como acontece em França.

Quem trabalha em animação, pode fartar-se dela? É que há realizadores de imagem real que, a certa altura, acham que está bom.
Acho que sim. Quando fiz o “Suspeita” estava tão cansado que fui para Cabo Verde de mala às costas. O “Viagem a Cabo Verde” tem essa história, de alguém que muda de país para ir perceber quem é. Uma amiga minha belga foi convidada para trabalhar no “Fuga das Galinhas”, depois foi parar ao primeiro “Toy Story”, passaram doze anos de trabalho, decidiu parar na animação e inscrever-se numa escola de circo. Porque é que isto acontece? Na animação é preciso ser obsessivo, persistente, aguentar um ritmo lento, o trabalho vai-se formando com muitas dificuldades financeiras. Quando terminamos um projeto de 80 minutos que demorou nove anos, que não chega a dez minutos por ano… tudo nos passa pela cabeça. No “Suspeita” estava mais deprimido. Neste, apesar de tudo, estive este longo período a viver coisas novas, sinto-me uma pessoa muito mais rica. Não me senti parado a fazer um filme, senti-me ligado à vida. Sinto-me bem com esses nove anos. Estou com vontade de continuar. Gosto das longas-metragens. Permitem desenvolver personagens e construir uma dimensão mais complexa das histórias. As curtas são cirúrgicas, é preciso ser-se muito eficaz. Aqui não, podemos falar de muitos temas com várias camadas. As personagens têm mais tempo para se revelarem e contradizerem. Para se tornarem mais complexas.

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